livrando-nos dos fuzilamentos, mesmo assim, não há um adulto pensante
neste País que alguma vez não tenha achado que pode ser assaltado com
todas suas conseqüências, inclusive o fuzilamento por policiais
perseguindo bandidos ou por balas perdidas entre eles."
Sem conceituação não há revolução! : www.bempublico.com.br/novo.
Dissonância intelectiva dos mestres: http://www.abn.com.br/
Enviado por Cristovam Buarque - 3.1.2009 | 5h03m
Fuzilamento ou embrutecimento
Em sua autobiografia, o escritor russo Victor Serge escreveu que nos
idos de 1933, na URSS stalinista, "não havia um único adulto pensante
que alguma vez não tenha achado que podia ser fuzilado". Neste 2008,
no Brasil, não existe um único adulto pensante que alguma vez não
tenha achado que está embrutecido, moral ou intelectualmente, ou
ambos. Perdemos a capacidade de sentir e sofrer com o que se passa ao
redor, ainda mais de usar o sentimento para lutar por mudanças na
realidade.
Embrutecemo-nos diante da desigualdade, da corrupção, da incoerência
na política, do atraso educacional, sobretudo com da violência
generalizada. E ficamos sem entender o porquê destas deficiências,
apesar do crescimento, da democracia, da eleição de partidos e de
líderes portadores de esperança.
Até algum tempo atrás, sentíamos e tínhamos propostas: democracia,
desenvolvimento, socialismo. O embrutecimento não ocorria porque
explicávamos, propúnhamos e a esperança nos aliviava.
Depois de termos conseguido desenvolver e fazer do Brasil uma potência
mundial na economia, termos eleito um presidente vindo das camadas
mais pobres, com um discurso radicalmente diferente de todos os
anteriores, substituindo outro que também vinha da esquerda, só nos
resta o embrutecimento intelectual ao olharmos ao redor e percebermos
que nada mudou na estrutura social do País. Continua a exclusão
social, a violência urbana, a instabilidade financeira e fiscal. Ainda
mais grave, faltam bandeiras, os partidos ficaram iguais, os políticos
também.
Quem não se sentiu bruto uma outra vez ou quase sempre ao olhar de
dentro do ar-condicionado do carro para os meninos pobres perdidos,
pedindo esmolas, cheirando cola, ou simplesmente deitados na calçada
ao lado dos pais? Salvo alguns que nem ao menos sentem, não há quem
não se sinta bruto uma ou outra vez ao saber que, no Brasil, 60
crianças abandonam a escola a cada minuto do ano letivo. Que apesar
de, felizmente, haver políticas públicas, de transferência de pequenas
rendas, a concentração de renda não muda, a desigualdade não diminui e
a pobreza não reduz a níveis que aliviem nossa brutalidade. O
sentimento de embrutecimento vem da aceitação do noticiário diário
sobre queima das florestas, morte de jovens, consumo de drogas,
miséria, atraso, corrupção.
Ao lado do embrutecimento moral que nos permite viver na sociedade
brasileira como ela é, há um embrutecimento intelectual que nos impede
de entender a realidade ou nos faz usar uma lógica esdrúxula toda vez
que tomamos decisões. Não conseguimos entender a nossa estrutura de
classes, tanto que inventamos o conceito de "carros populares"; nem a
estrutura de nossa economia, tanto que falamos em meio ambiente e
gastamos bilhões de reais do setor público para aumentar as vendas de
automóveis; nem o funcionamento de nosso sistema judiciário, tanto que
temos surpresas com as prisões de pobres que roubam manteiga e a
libertação de ricos que roubam bilhões; não entendemos mais como
funciona a política, tanto que as posições de um dia não valem no
outro, o prometido na eleição não vale no governo.
O embrutecimento termina nos dando saudades do tempo descrito por
Victor Serge. Havia naquele tempo, pelo menos, o sentimento heróico do
risco do fuzilamento. Talvez a democracia seja nossa única conquista,
livrando-nos dos fuzilamentos, mesmo assim, não há um adulto pensante
neste País que alguma vez não tenha achado que pode ser assaltado com
todas suas conseqüências, inclusive o fuzilamento por policiais
perseguindo bandidos ou por balas perdidas entre eles.
Difícil escolher entre o risco do fuzilamento ou o risco do
embrutecimento. O primeiro tira a vida de um ser humano, o outro a
dignidade de ser humano. O primeiro exige coragem física, o segundo
rouba a coragem intelectual e moral.
Que 2009 chegue sem o risco e sem o embrutecimento. E que o fim do
embrutecimento nos dê a lucidez para entender a realidade e
formularmos alternativas, e uma ética que nos faça ter coragem
intelectual e moral.
Cristovam Buarque é professor e senador pelo PDT-DF
Nenhum comentário:
Postar um comentário