segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

A terra da pistolagem dá o troco


A execução de um colaborador da CPI que investigou
os grupos de extermínio do Nordeste leva medo à Câmara.
Dois deputados já pediram proteção à Polícia Federal


Em novembro de 2005, a Câmara dos Deputados aprovou o relatório final da CPI que investigou a ação de grupos de extermínio no Nordeste. O documento detalha o modo como os matadores aterrorizam a população que vive nas cidades de Itambé e Pedras de Fogo, na divisa entre Pernambuco e Paraíba, epicentro da pistolagem no país. A comissão descobrira a identidade de pistoleiros, mandantes e policiais dos dois estados, que tanto participam dos grupos quanto protegem esses bandidos. Assim que se encerraram os trabalhos da CPI, duas testemunhas que colaboraram secretamente com os deputados foram executadas. Nada foi feito, os anos se passaram e, há três semanas, outro colaborador da CPI foi assassinado: o advogado Manoel Mattos, assessor do deputado Fernando Ferro (PT-PE) e ex-vereador de Itambé. A execução do advogado acendeu o sinal amarelo na Câmara. Os deputados Fernando Ferro e Luiz Couto, do PT da Paraíba, que trabalharam na CPI, estão com medo – e resolveram pedir ao ministro da Justiça, Tarso Genro, proteção da PF. "Não paro de receber ameaças", diz Luiz Couto. Até agora, dez dias após o pedido, eles não foram atendidos.


Somente quem não conhece a região deixa de levar a sério ameaças como essa, por uma razão elementar: os matadores cumprem o que prometem. Perdidas nos confins da Zona da Mata, Itambé e Pedras de Fogo são duas pequenas cidades em uma só, separadas somente pela linha imaginária entre os dois estados. Do lado de Pernambuco, a cidade chama-se Itambé. Do lado da Paraíba, Pedras de Fogo. É um lugar castigado pelo sol, dominado pelo medo e assombrado pela presença da morte. Um lugar onde pelo menos 86 pessoas foram executadas nos últimos anos. Um lugar no qual – acredite – se compra uma vida até por 50 reais. "As coisas inimagináveis que ainda acontecem nessa região são uma demonstração do atraso civilizatório do país", afirma Jayme Asfora, presidente da Ordem dos Advogados do Brasil em Pernambuco. "Esses matadores agem em conluio com policiais dos dois estados e com políticos da região. Se a PF não investigá-los, eles vão ficar impunes."

O assassinato do advogado ilustra perfeitamente essa impunidade. Casado, pai de três filhos, Mattos era um político em ascensão, que seria candidato a deputado estadual nas próximas eleições. Construiu a carreira denunciando os matadores e os políticos corruptos da região. Em troca, recebia ameaças de morte em público. A última aconteceu no fim do ano passado, numa churrascaria. Flávio Pereira, sargento da PM, acusado em três inquéritos de ser comandante de um dos grupos que disseminam o terror na cidade, gritou para Mattos, na frente de testemunhas: "Um dia ainda vou te matar! Eu prometo". O advogado foi executado três semanas depois, no dia 24 do mês passado. Ele descansava com os amigos numa casa de praia em Pitimbu, na Paraíba. Às dez e meia da noite, dois homens encapuzados assomaram à varanda, onde Mattos bebia com os amigos, e mandaram todos deitar no chão. O advogado soergueu-se da cadeira e, antes de dizer palavra, recebeu um tiro certeiro no coração, disparado de uma espingarda calibre 12. Mattos caiu sem vida no chão. O matador, conhecido como Zé Parafina, ainda faria mais um disparo, dessa vez na cabeça do advogado. Zé Parafina e o sargento Flávio estão presos, mas, segundo testemunhas ouvidas por VEJA na região, seu grupo ainda está à solta. Quem está escondida é a família do advogado, com medo de ter o mesmo destino dele: o apinhado cemitério de Itambé, o metro quadrado mais disputado do local. "Não tem mais onde enterrar ninguém aqui", avisa seu Paulo, como é conhecido o coveiro da cidade. A morte ali é coisa de rotina.

CONGRESSO EM FOCO

Padre, deputado e adversário do celibato
Parlamentar jurado de morte defende mudanças na Igreja Católica. Favorável ao uso de camisinha, combate a intolerância e a discriminação a homossexuais


Agência Câmara

Edson Sardinha

O deputado Luiz Couto (PT-PB) circula pela Câmara sem despertar muita atenção. Aos 65 anos, tem cabelos grisalhos e barba bem aparada. Cumpre o segundo mandato e conhece muitos colegas de plenário. A história de vida, no entanto, torna o petista da Paraíba um parlamentar diferente.

Filho de trabalhadores rurais sem-terra, Couto ordenou-se padre em 1976 e aproximou-se dos seguidores da Teologia da Libertação, corrente católica com influência marxista. Entrou para o PT em 1976 e elegeu-se deputado estadual duas vezes antes de chegar à Câmara. Nos últimos dias, o religioso petista entrou para a lista dos ameaçados de morte por grupos de extermínio do Nordeste.

Todo sábado e domingo, deixa no guarda-roupa o terno com o broche parlamentar para usar a peça que, segundo ele, melhor lhe cabe: a batina. Celebra missas, batizados e casamentos na paróquia de São José Operário, em João Pessoa. Padre deputado está fora de moda na Câmara. Só há ele e José Linhares (PP-CE) na atual legislatura.

Celibato

Mas o que torna Luiz Couto figura única no Congresso é seu pensamento em relação a temas vistos como tabu dentro da Igreja Católica, como o celibato, o aborto, os homossexuais e o uso do preservativo. Com exceção, em parte, do aborto, suas posições contrariam os mandamentos do Vaticano.

"O comando da Igreja é muito conservador nesse ponto", avalia o padre ao criticar a obrigatoriedade do celibato. "Não tem fundamentação bíblica. Deveria ser optativo", defende.

Luiz Couto lembra que a restrição à vida afetiva e sexual dos religiosos só foi imposta no século XVI, após o concílio de Trento. E tinha lá sua justificativa, explica. "É que naquela época havia abusos nesse sentido. Isso hoje não deveria ser tratado como uma questão maior", acredita.

O padre busca numa passagem bíblica argumentos para sua tese: "Jesus tinha apóstolos solteiros, mas também apóstolos casados. Tanto que uma passagem conta que ele foi à casa da sogra de Pedro. Doente, ela se levantou e passou a servir".

Camisinha e homossexuais

A decisão do Vaticano de proibir os fiéis de usarem preservativos nas relações sexuais também é sinal de atraso, na avaliação de Couto. "Defendo o uso da camisinha como uma questão de saúde pública", diz. Para ele, o veto só favorece a proliferação de doenças sexualmente transmissíveis e distancia a Igreja das ruas.

Contrariando a linha mais conservadora do clérigo, Luiz Couto também sai em defesa dos homossexuais. "Devemos lutar no dia-a-dia contra o preconceito e a intolerância", afirma. O deputado votou a favor do projeto de lei que torna crime a discriminação por causa da orientação sexual.

O projeto de lei da Homofobia passou pela Câmara, mas está parado no Senado, onde enfrenta forte resistência de parlamentares religiosos, que veem na proposta uma ameaça à liberdade de culto (leia mais). "A consciência, a fé e a sexualidade da pessoa têm de ser algo importante em sua orientação de vida", prega.

Aborto

O padre paraibano não foge à polêmica mesmo quando assume uma posição mais alinhada à cúpula do Vaticano. Contrário à prática do aborto, Luiz Couto pondera que o Estado não pode fechar os olhos para a realidade e cobra apoio irrestrito às mulheres que interrompem a gravidez. "Sou contra o aborto por convicção. Mas as pessoas que o praticam devem ter sempre direito à assistência médica", defende.

Apesar de assumir uma posição intermediária em relação ao assunto, o deputado avisa que vai desafiar o comando do partido e votar contra a liberação do aborto caso a proposta seja submetida a votação. O PT já fechou questão sobre o assunto e ameaça de expulsão dois deputados – Luiz Bassuma (PT-BA) e Henrique Afonso (PT-AC) – que trabalham nos bastidores do Congresso para derrubar o projeto de lei (leia mais).

Esquerda "arrogante"

O processo movido pela Secretaria de Mulheres do partido contra Bassuma e Afonso reflete um sinal de intolerância dentro do partido. "É uma questão de consciência e ética. Não pode ser por imposição. Isso é como ditadura. Não é pela repressão que a gente educa. É preciso passar pelo processo de convencimento", critica o deputado, petista desde 1985.

Essa postura "arrogante", segundo ele, é característica da esquerda brasileira. Com atuação política pautada por temas como direitos humanos e reforma agrária, Couto se esquiva do rótulo de esquerdista e critica o maniqueísmo levado às últimas consequências pelos companheiros.

"A esquerda brasileira durante muito tempo foi arrogante, arvorando-se dona da verdade. É preciso defender a construção de uma sociedade mais justa, tirando as pessoas da marginalidade e gerando emprego e renda, mas defendendo o respeito às opiniões diferentes", afirma.

Vidas secas

Nascido no município de Soledade, semi-árido paraibano, em 13 de fevereiro de 1945, Luiz Albuquerque Couto encontrou na educação uma porta para deixar a pobreza. O pai não sabia ler nem escrever, a mãe só conseguiu estudar até a quarta série. O casal, que teve dez filhos, vivia de fazenda em fazenda à procura de trabalho.

Aos 12 anos, o quarto filho de Antônio Joaquim de Couto e Elisa Leopoldina de Albuquerque ajudava o pai e os irmãos mais velhos na construção de uma estrada na região do Cariri. As palavras de desencorajamento dos colegas serviram como ponte para deixar aquela vida.

"Quando eu trabalhava na obra, os colegas ridicularizavam minha vontade de estudar. Diziam: está vendo essa pá? Ela é sua caneta. A terra é o seu caderno'. Eu respondia: vou estudar, sim."

A rotina dura só era quebrada aos domingos, quando a família viajava nove quilômetros a pé para assistir à missa na cidade. "Não entendíamos nada. Era em latim", lembra. Aos 13 anos, com a ajuda de uma tia freira, Luiz Couto entrou para o Seminário Imaculada Conceição, na capital paraibana.
A escolha da Igreja Católica como opção de vida permitiu a Couto saltar da pobreza no sertão para ocupar um espaço tradicionalmente reservado às oligarquias de seu estado.

Fé e política

O seminário de João Pessoa ainda é apontado como o berço da militância política de Couto. De lá, só saiu em 1965 para estudar filosofia na Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

Em 1976, Luiz Couto ordenou-se padre e assumiu a paróquia Sagrado Coração de Jesus, no bairro do Mandacaru. O sacerdote conciliou suas obrigações na igreja com as aulas na Faculdade de Filosofia da UFPB, onde ensinou Metodologia da Ciência, Ética Filosófica, Filosofia do Conhecimento e Lógica até 1994, quando se aposentou.

Os teólogos Leonardo Boff e, principalmente, Joseph Comblin, belga radicado na Paraíba, estão entre as fontes em que Luiz Couto busca inspiração. Os dois estão entre os principais representantes da chamada Teologia da Libertação, doutrina de influência marxista que prega a opção pelos pobres.

Boff foi excomungado da Igreja Católica pelo Papa João Paulo II, enquanto Comblin chegou a ser expulso do país, nos anos 70, por causa de sua militância em favor da reforma agrária e contra a ditadura. Outras duas referências diretas na vida político-religiosa de Luiz Couto são os bispos José Maria Pires, mais conhecido como Dom Pelé, por ser negro, e Marcelo Pinto Carvalheira. "Os dois foram fundamentais na minha formação", reconhece o petista.

Armas desiguais

Jurado de morte por ter denunciado em duas CPIs – uma na Assembléia Legislativa e outra na Câmara – a ação de grupos de extermínio no Nordeste, Luiz Couto se apega a um terço, à Oração de Santa Cruz e à foto da mãe, afixada na parede do gabinete, para escapar da alça de mira do crime organizado. "Os amigos sempre me informam sobre as ciladas", ressalta.

Nos próximos dias, a Polícia Federal deve voltar a garantir a segurança do deputado, interrompida em junho do ano passado. O pedido, feito inicialmente pela bancada do PT na Câmara, foi enviado anteontem (11) ao ministro da Justiça, Tarso Genro. Couto é apontado como o próximo alvo do mandante do assassinato do advogado Manoel Mattos, assassinado com dois tiros no último dia 24, na divisa entre Paraíba e Pernambuco (leia mais). A proteção será estendida ao deputado Fernando Ferro (PT-PE), a quem Manoel assessorava.

CPI do Extermínio

Como relator da CPI dos Grupos de Extermínio, concluída em 2005, Luiz Couto pediu o indiciamento de mais de 320 pessoas, entre políticos, policiais, juízes e promotores. "Esse pessoal começou matando adolescentes que trabalhavam para o tráfico. Depois, homossexuais e defensores dos direitos humanos", relata o deputado.

Além de mapear a ação dos grupos de extermínio, a CPI resultou em um projeto de lei que tipifica o crime de constituir, organizar ou integrar organização paramilitar ou milícia para praticar extermínio de pessoas, com pena de quatro a oito anos de prisão.

Se as investigações não foram adiante, não foi por omissão, assevera. "Dizem que a CPI dá em pizza. Mas a pizza está lá. Muitas vezes o Ministério Público não abre inquérito, o secretário não reconhece a existência dos crimes, e a Justiça é morosa. Aqueles que tomaram conhecimento das denúncias avançaram, tirando policiais corruptos."

A cada ameaça de morte, Luiz Couto diz trabalhar o pensamento para não sucumbir à força do inimigo. "O medo é a grande arma do ameaçador. Não devemos dar força ao medo", afirma. E o padre não confia apenas na religião para manter a serenidade. Diz estar interessado cada dia mais na psicologia e na psicanálise. "São duas ciências que precisam ser mais bem cuidadas, porque estimulam o indivíduo a investir em suas qualidades, em vez de brigar com seus limites", observa.

Piada de padre

Manter o bom-humor também ajuda, ressalta. "Ele sempre anima a nossa rodinha no plenário antes de as votações começarem", conta o deputado Antônio Carlos Biscaia (PT-RJ).

A vocação para contar piadas, Luiz Couto afirma ter herdado do pai e da mãe. O paraibano tem um extenso rosário de piadas, inclusive de freiras e padres, as suas favoritas.

"No interior da Paraíba, a mãe mandou o menino procurar o padre para se confessar porque ele tinha dado uma 'bunda-canastra' [espécie de pirueta]. O padre, um alemão, não entendeu o que era aquilo. Vem cá, meu filho: bunda eu sei o que é, canastra, também. Mas que pecado é esse que você cometeu? Mostra para mim. O garoto saiu do confessionário e salteou no ar. O padre então respondeu: ah, meu filho, vá embora, que isso não é pecado. E mandou chamar a velhinha, que, encabulada, assistia a tudo, pra se confessar. 'Vou, não, seu padre, é que vim desprevenida hoje pra penitência'", conta o deputado sacerdote, antes de cair na gargalhada.
"Dizem que sou um padre piedoso e piadoso", brinca Luiz Couto.

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