segunda-feira, 30 de março de 2009

Impasse no Le Monde Diplomatique

Antonio Martins

Uma série de fatos inesperados, cujo desfecho ainda é incerto, marcou a edição brasileira internet de Le Monde Diplomatique, nos últimos dias. Em 24 de março, a direção do Instituto Paulo Freire (IPF) dispensou, de uma só vez, a equipe que conduziu o jornal nos dois últimos anos. Fomos demitidos, além das redatoras Carolina Gutierrez e Marília Arantes, o editor, Antonio Martins, que introduziu o jornal no Brasil, em 1999. Um dia depois, quando a informação começou a circular, abriu-se uma possibilidade de negociação.
A demissão tem dois aspectos. O primeiro é interno ao IPF: embora traumático, está no âmbito da autonomia da instituição. O segundo implica o futuro de Le Monde Diplomatique no Brasil e, em seus desdobramentos, revelará bastante sobre os princípios e comportamento ético das instituições e pessoas envolvidas.

Lida a cada dia por cerca de 2 mil pessoas, que acessam 7 mil textos em média, a edição internet do Diplô é produto de uma parceria institucional e uma relação de trabalho. Em janeiro de 2007, o Instituto Abaporu, formado pelos fundadores do jornal, associou-se ao Instituto Paulo Freire, num Acordo Ético-Político. Além de deter os direitos sobre a edição brasileira e o acervo dos cerca de 1300 artigos publicados até então, Abaporu reunia saber jornalístico. Faltava-lhe fôlego material: os sete primeiros anos do jornal foram percorridos graças a esforço voluntário e investimentos pessoais de recursos, pelos participantes da aventura. O IPF expressava a herança intelectual e simbólica de seu fundador, vivia uma fase de expansão acelerada, tinha grande lastro financeiro e desejo de explorar outros mares do universo cultural, além da Educação.

Optou-se por não dar à parceria a forma de uma nova instituição. O Acordo Ético-Político cujas linhas essenciais eram as seguintes: a) O IPF assumiria a responsabilidade jurídica e financeira pelo projeto, com ônus e bônus. Manteria a equipe e suas despesas, auferindo as receitas, com publicidade e apoios institucionais; b) Do ponto de vista editorial, as partes teriam papéis iguais. Para garantir, em última instância, este equilíbrio, foi formado um Conselho Gestor, constituído por quatro diretores do Abaporu, quatro do IPF e o economista Ladislau Dowbor.

Jornais nascem por meio de acordos, mas são feitos por gente em carne e osso. Embora reúna um número crescente de colaboradores, a versão digital de Le Monde Diplomatique é animada, há pelo menos um ano e meio, pela equipe que foi integralmente demitida, em 24/3. Carolina (que começou como estagiária), Marília (que atuou quase um ano como voluntária) e eu temos sido meio mambembes, meio visionários. Em outubro de 2007, cansados de apenas traduzir textos franceses e publicar eventualmente um ou outro artigo de lavra própria, bolamos o Caderno Brasil – que logo se transformou no centro de nosso trabalho. A intenção foi criar um espaço que, mantendo o mesmo espírito crítico e busca de profundidade característicos do jornal parisiense, fosse povoado... por brasileiros. O Caderno reúne hoje cerca de uma centena de colaboradores, que publicaram perto de mil artigos. O elenco inclui intelectuais renomados e pensadores emergentes, que a mídia conservadora oculta e a própria imprensa de esquerda tantas vezes não enxerga.

À mesma época, lançamos o Blog da Redação. Alimentado desde então de forma às vezes errática (março marcou uma retomada, até o trauma do dia 24), ele visa abordar temas correntes, em que uma informação inédita, ou um ponto de vista incomum, fazem falta – e não podem esperar a elaboração de um artigo. Também precisa ser um canal para expressão dos colaboradores e dos próprios leitores ativos. Estamos trabalhando ativamente em sua reformulação, ao mesmo tempo em que apoiamos o lançamento de blogs sobre temas específicos. O primeiro vê a crise do capitalismo como oportunidade para questionar o sistema sob a qual vivemos, e intenficar a construção de novas lógicas sociais e relações entre o ser humano e o ambiente. O segundo será alimentado por quatro colaboradores que vivem em Paris, estão surpresos com a efervescência política (especialmente nas universidades) e querem narrá-la.

A terceira invenção editorial de nossa equipe relaciona-se, em certa medida, com o esforço que sempre fizemos para assegurar a existência financeira do Diplô. Por algum motivo, o Instituto Paulo Freire, que tem notável expertise em captar recursos para projetos (muito meritórios), não conseguiu fazê-lo, em relação ao jornal. Nos últimos dois anos, o orçamento mensal do Le Monde Diplomatique eletrônico ficou em torno ou abaixo dos R$ 10 mil. É uma gota d'água, se comparada ao oceano de gastos (sempre com auxílio estatal) de qualquer publicação mainstream, e certamente muito menos que quase todos os outros jornais alternativos. O excelente (embora muito pouco conhecido) Retrato do Brasil, de Raimundo Pereira, por exemplo, custa dez vezes mais.

Em 2007, o ministério da Cultura (MinC) lançou um edital para constituição de Pontões de Cultura. Tinha em vista aperfeiçoar uma experiência rica e inovadora: a rede nacional de Pontos de Cultura, que são parte da impressionante emergência da cultura popular (especialmente periféirica) vivida pelo Brasil. O objetivo dos Pontões seria o de articular esta grande malha (são 800 iniciativas, hoje; e mais de 2 mil, muito em breve), estimulando-a, ao mesmo tempo, a alargar suas perspectivas de mundo e horizontes temáticos.
Alertada por uma colaboradora (a tradutora Patrícia Andrade, que contribuiu decisivamente na elaboração de nosso projeto para o MinC), a Redação julgou que o edital era ouro sobre azul. Nosso ponto de contato com os Pontos seria a Comunicação Compartilhada. Estávamos (estamos!) dispostos a mostrar que é possível somar o horizontalismo e a participação da net com a busca de profundidade, marca do Le Monde Diplomatique.

O projeto foi um dos escolhidos pela comissão julgadora do edital. O Instituto Paulo Freire recebeu, em dezembro de 2008, dotação de R$ 350 mil – dinheiro público. Além de seminários e desconferências presenciais, ele está se expressando na criação de uma Rede Social, ferramenta de comunicação via internet cujas características principais são a decentralização e o compartilhamento. Desde o início de janeiro, estamos empenhados na construção da rede. Montada na ferramenta Ning. ela estava sendo testada por um conjunto de Pontos até 27 de março – quando foi tirado do ar pelo Instituto Paulo Freire1.

Será uma espécie de esquina onde a Cultura e a Política encontram-se e conversam, e o protagonista é a Multidão. Lá, qualquer pessoa poderá apresentar-se às demais; criar seu blog ou difundir um já existente; envolver-se em debates sobre temas específicos ou iniciá-los; publicar textos, vídeos, áudios, peças multimídia. Além de dialogar entre si mesmos, portanto, os Pontos de Cultura estarão em contato permanente com um público novo, com o qual poderão trocar idéias, compartilhar projetos, produzir.

Do contato entre o jornal e os Pontos estão brotando outros frutos. Em janeiro de 2009, Le Monde Diplomatique participou da criação do I Laboratório de Mídias Livres, em São Luís. Dias depois, co-organizou, durante o 9º Fórum Social Mundial (Belém), um seminário sobre a democratização da mídia, na era da Comunicação Compartilhada. Neste evento, jornalistas independentes e o secretário de Políticas e Programas Culturais do MinC, Célio Turino, lançaram um primeiro edital para criação de Pontos de Mídia Livre. Pela primeira vez, o Estado brasileiro (que transfere anualmente bilhões de reais às grandes empresas de mídia vertical) criou um programa específico para apoiar iniciativas como blogs, rádios livres, redes sociais.

Os recursos são, por enquanto, modestos (R$ 40 a 120 mil por projeto selecionado), mas o significado simbólico é enorme. Ao criar um precedente, o edital abre espaço para questionar (e defender o redirecionamento completo) do recursos públicos que subsididam a imprensa. Um bom horizonte seria propor que a Comunicação Compartilhada receba, a cada ano, ao menos o mesmo montante de verbas destinado à mídia vertical. Ao invés de engordarem o caixa de poucas empresas, os recursos seriam utilizados de forma produtiva: financiando milhares de projetos, criando Centros de Produção públicos, promovendo formação em toda a rede de escolas públicas, telecentros, lan-houses. Este debate emergirá com força na I Conferência Nacional de Comunicação, convocada para dezembro.

* * *
Que terá levado o Instituto Paulo Freire a demitir coletivamente a equipe que conduziu este trabalho? Questionados, os três diretores que participaram da reunião do dia 24 não apresentaram uma só razão política, editorial ou técnica. Alegaram que a Redação não se enquadrou nos métodos e normas do IPF. Neste aspecto, talvez estejam certos. Jamais aceitamos limitar nosso trabalho a um expediente das-nove-às-dezoito. Chegávamos e saíamos mais tarde. Convidávamos, para dialogar e produzir conosco, pessoas não pertencentes aos quadros da instituição. Nos atrapalhávamos no preenchimento de inúmeros formulários e agendas.

A direção do IPF tem toda autoridade para julgar que práticas como estas destoam – ou mesmo perturbam – sua cultura institucional.

Também pode, como consequência, não nos considerar desejáveis em seu quadro de funcionários. Só não tem o direito de usar estes fatos como pretexto para se apropriar unilateralmente do Le Monde Diplomatique e do Pontão de Cultura.

Na reunião traumática de 24 de março, argumentei, até o cansaço, que a atitude do Instituto rompia tanto o Acordo Ético-Político com o Instituto Abaporu quanto os princípios mais elementares de lealdade e transparência. Exceto os dirigentes do IPF, nenhum dos integrantes do Conselho de Gestão do jornal foi consultado – ou sequer informado previamente – das demissões. Nada, na rotina de trabalho da redação, sugeria que ela pudesse ocorrer. Ao contrário. Em 20 de março, Paulo Padilha, diretor do IPF, dirigiu uma reunião com o conjunto da equipe que se estendeu por mais de uma hora, sem que aflorasse um único sinal do que se preparava (Zonda Bez, consultor do ministério da Cultura, estava presente). Minutos depois, ao abrir outro encontro, Padilha declarou-se feliz, por ter realizado "uma conversa muito boa" com a Redação do jornal. No mesmo dia, outra diretora, Salete Camba, e a coordenadora de Comunicação do Instituto, Thaís Chita, estabeleceram, comigo, uma agenda de trabalho que deveria levar, em breve, ao lançamento de uma nova versão da página internet do Diplô.

O mais espantoso ocorreu no dia 23. Viviane Querubim, uma espécie de intermediária entre a equipe e a direção do IPF, participou de uma reunião em que discutimos com Janaína Rocha, da TV Brasil, a possibilidade de aproveitar, na programação da emissora, vídeos postados na futura Rede Social. Foi toda sorrisos e beijinhos.

* * *

Menos de 24 horas depois, ao receber chocado a notícia das demissões, propus a abertura de um diálogo. O ato seria suspenso. O Conselho Gestor seria ouvido, em busca de uma repactuação. O Acordo Ético-Político seria refeito. O Instituto Paulo Freire deixaria de contratar a Redação. Mas não reteria, sozinho, os frutos do esforço comum. Cheguei a esboçar fórmulas para fazê-lo. Inútil.

No dia seguinte, a situação alterou-se ligeiramente, o que autoriza alguma esperança. Pela manhã, enviei mensagem eletrônica a amigos que participaram ou acompanharam de perto nossa trajetória, nos últimos anos, relatando sumariamente o ocorrido. A direção do IPF tomou conhecimento do teor e propôs uma nova conversa. No transcurso deste diálogo, aventou-se a hipótese de a repactuação, que eu havia proposto na véspera, ocorrer... após a volta ao Brasil de Moacir Gadotti, diretor-geral do IPF, atualmente no exterior. Frisei que é antidemocrático e desigual impor um fato consumado, enfraquecer o interlocutor e depois convidar para o diálogo.

Todos nós, pessoas e instituições, cometemos erros. Uma forma de enxergar os outros, disse alguém, é atentar para a capacidade que têm de corrigir equívocos -- ou a tendência para ser tragado por eles. Segundo o que disseram os diretores do IPF, estão em Moacir Gadotti, agora, os poderes de mudar o norte desta história. Um fato é sintomático: sempre presente no dia-a-dia do Instituto, ele deixou de comparecer à reunião em que as demissões foram anunciadas.

Estará ciente de todos os antecedentes e consequências dos atos do dia 24? Terá reservado a si mesmo tempo e espaço para refletir sobre eles? Seria ótimo saber que sim. Porque o IPF continuará seu caminho; as pessoas que introduziram Le Monde Diplomatique no Brasil, e que garantiram sua existência e ampliação nos últimos dois anos, também. Falta saber o que encontro entre estas duas trajetórias revelará sobre os que as estão trilhando.

1-Um ponto delicado do impasse envolve as senhas de administração do site Le Monde Diplomatique, do Blog da Redação e da Rede Rocial. Até 24/3, a Redação mantinha uma política liberal em relação a elas. Ao menos catorze pessoas possuíam, por exemplo, senhas do site. Confiava-se em sua responsabilidade. Alarmado com as demissões abruptas daquele dia, e temeroso de novas ações unilaterais, que afetassem um trabalho de dez anos, bloqueei as entradas de algumas pessoas vinculadas ao Instituto. Em 25/3, assumi o compromisso de desbloqueá-las na manhã seguinte, mediante garantia, dada por diretores do IPF, de que não haveria alterações de conteúdo. O IPF, porém, obteve as senhas por outros meios – o que já produziu os primeiros danos. Na manhã de 27/3, os nomes dos integrantes da Redação foram retirados do site (
http://www.diplo.org.br). Carolina Gutierrez e Marília Andrade foram eliminadas, além disso, da própria lista em que aparecem as centenas de autores de textos. Esta exclusão foi revertida após protestos. Até as 13h de 28/3, porém, a Redação continuava desaparecida, e a Rede Social (cujo endereço é http://diplonarede.ning.com), bloqueada.

Um outro mundo é possível. um outro brasil é necessário!

Nenhum comentário: