23/10/2009 15:48
Protestos expõem insatisfação das periferias em face às diversas formas de violência a que são submetidas
Protestos expõem insatisfação das periferias em face às diversas formas de violência a que são submetidas
19/10/2009
Patrícia Benvenuti
da Reportagem
O
helicóptero sobrevoa e flagra as chamas que tomam conta de pneus,
entulhos e até de um ônibus em uma avenida interditada. O estampido dos
tiros e das bombas se mistura ao barulho de sirenes histéricas de
viaturas. Muito corre-corre. A cena descrita narra mais um confronto
entre policiais e moradores em uma favela de São Paulo.
Só neste
ano, foram pelo menos dez grandes protestos em diversas regiões de
periferia da capital paulista, que resultaram em enfrentamentos com a
polícia e um saldo de destruição de casas e pertences familiares,
pessoas presas e feridas.
Orquestradas, ou não, para coincidirem
com os programas policialescos dos finais de tarde, o fato é que essas
manifestações parecem expressar a revolta dos moradores contra as
tantas formas de exclusão e violência de que são testemunhas diárias.
O caso de Heliópolis
A
manifestação mais recente aconteceu em Heliópolis, na zona sul de São
Paulo, a maior favela paulistana, com cerca de 100 mil habitantes. Na
noite de 31 de agosto, a estudante Ana Cristina Macedo foi assassinada
enquanto voltava do curso supletivo, alvejada por um tiro que partiu de
um guarda civil metropolitano de São Caetano do Sul, no ABC paulista,
que perseguia um grupo suspeito de roubar um carro.
Baleada no
momento em que tentava se esconder atrás do carro, Ana Cristina só foi
socorrida pelos guardas civis, segundo os moradores, depois da
autorização de um policial militar que chegou ao local. Segundo
relatos, os guardas teriam segurado a estudante pelos braços e pernas e
jogado seu corpo dentro da viatura. A jovem ainda chegou com vida ao
hospital, falecendo em seguida.
Sob gritos de "assassinos", os
moradores atiraram pedras contra policiais e contra o veículo que foi
motivo da suposta troca de tiros. Os manifestantes também montaram
barricadas com pneus e pedaços de madeira, além de terem incendiado e
apedrejado carros e ônibus. Com apoio do Grupo de Operações Especiais
(GOE) e do Grupo de Repressão a Roubos e Assaltos (Garra), a polícia
lançou bombas de efeito moral e tiros de borracha para conter o
protesto.
Intensificação
Para a urbanista e relatora especial
da Organização das Nações Unidas para o Direito à Moradia Adequada,
Raquel Rolnik, "a intensificação dos confrontos tem a ver, de um lado,
com a retomada de investimentos em infraestrutura e urbanização, em
grande escala, afetando as comunidades e, por outro, com uma atitude
mais truculenta, menos negociadora, por parte da prefeitura e governo
do Estado na relação com os moradores", argumenta.
Opinião
semelhante tem o integrante da União dos Movimentos de Moradia (UMM)
Benedito Roberto Barbosa, que atribui o aumento dos protestos à
interferência agressiva do poder público nas comunidades, atingidas de
forma crescente por grandes intervenções urbanas. "As obras chegam e
não levam em conta que aí tem uma comunidade", pontua.
Como
exemplo, Barbosa cita o projeto de ampliação da Marginal do Tietê,
cujas obras devem remover cinco favelas do entorno, na zona norte.
Revoltados, os moradores da Favela do Sapo, localizada na Água Branca,
organizaram um protesto contra uma ordem de despejo emitida para 450
famílias e contra a inserção de apenas as cem famílias mais antigas da
comunidade em programas habitacionais. Para o restante, foi oferecido
apenas o chamado "cheque-despejo", com valores entre 1,5 mil e 8 mil
reais.
A mesma situação foi vivenciada pelos moradores de
Paraisópolis, na zona sul, onde dezenas de famílias foram despejadas e
tiveram suas casas demolidas para dar espaço a obras de "revitalização"
da favela. Sem direito à indenização, foi oferecido o financiamento de
um novo imóvel e, para as famílias que não tivessem renda suficiente,
um "cheque-despejo" de cinco mil reais, um cômodo em um albergue ou uma
passagem de retorno para suas cidades de origem.
Esse tipo de
política, para Barbosa, traz consequencias negativas não apenas para os
moradores, mas para todo o conjunto da sociedade. "A Prefeitura chega
com uma proposta de oferecer uma indenização pífia para as famílias,
porque isso nem é indenização, é uma vergonha. Então as pessoas vão
morar nas margens dos rios e dos mananciais, aumentando os problemas
ambientais da cidade", explica.
Raquel Rolnik também critica as
medidas, que evidenciam falta de vontade política para solucionar as
questões habitacionais. "As desapropriações e despejos forçados não
resolvem o problema da falta de moradia. O exemplo do 'cheque-despejo',
da prefeitura de São Paulo, é um caso emblemático no qual o poder
público empurra o problema com a barriga, sem desenvolver estratégias
adequadas para mitigar suas raízes", analisa.
Além destes casos,
Barbosa alerta para outras obras que devem ser a causa de mais
tensionamentos. Uma delas é a construção de um parque linear na zona
leste, como compensação ambiental para a ampliação da Marginal do
Tietê, que pretende desalojar cerca de 12 mil famílias dos bairros de
São Miguel Paulista e Itaim Paulista.
Na zona sul, a construção
de um túnel de 4,5 quilômetros que ligará a Avenida Jornalista Roberto
Marinho à Rodovia dos Imigrantes será responsável pelo despejo de
aproximadamente oito mil famílias. "É um confronto anunciado, vai ter
conflito", prevê Barbosa, que atenta também para a relação entre a
força do mercado imobiliário e o discurso repressivo que estigmatiza os
moradores. "Como tem amplo apoio do setor imobiliário, a Prefeitura
remove as famílias e ainda diz isso, que [quando ocorrem manifestações]
todos são bandidos", completa.
Violência policial
A violência
policial sistemática nas comunidades também funciona como um
catalisador de tensões nas periferias. Para o coordenador auxiliar do
Núcleo Especial de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública
do Estado de São Paulo Antonio Maffezoli Leite, os conflitos são o
resultado final do descontentamento da população de áreas pobres com o
tratamento recebido pelas forças de segurança do Estado.
“Pegando
o último caso de Heliópolis, em que há perseguição de um suposto
bandido que viria de São Caetano, com tiroteio. Fato que jamais
aconteceria em um bairro rico. O Rio de Janeiro tem vários casos
recentes. Isso acaba só demonstrando uma forma que já é histórica das
polícias não só de São Paulo, de como elas veem e tratam os moradores
de comunidades carentes" analisa.
As ações da polícia na
periferia, de acordo com o Maffezoli, refletem a maneira como a
sociedade, em geral, encara seus pobres. "A sociedade brasileira, com
esse sistema de desigualdade social, acaba segregando uma grande
parcela dela para os guetos, e essas pessoas não são vistas como iguais
a todas as outras. As forças de segurança, quando têm que intervir em
qualquer coisa, simples ocorrências do cotidiano, acabam usando uma
força totalmente desproporcional e uma atuação sem controle", critica.
O
defensor público aponta, ainda, que a falta de investigações para
abusos policiais e a impunidade, na imensa maioria dos casos,
contribuem para a agitação da comunidade. "Normalmente, em casos que
envolvem excessos policiais, as investigações são extremamente
superficiais e acabam não chegando em lugar nenhum. É exceção que uma
armação e um excesso feitos pela polícia acabem sendo desvendado",
assegura.
Para o integrante da União de Movimentos de Moradia, é
preciso estar atento à repressão nas favelas, na medida em que são
graves e crescentes as denúncias sobre abusos policiais. "Acompanhamos
com preocupação por causa da violência da polícia, é um desrespeito com
as pessoas. A periferia de São Paulo hoje está sitiada, qualquer coisa
é motivo para a polícia entrar e matar as pessoas", afirma.
Integração
Para
Raquel Rolnik, o fim dos conflitos só cessarão com o fim da separação
entre favela e cidade, possibilitada por uma série de medidas que
regularizem as comunidades que hoje estão isoladas e sem acesso pleno a
serviços públicos. "[Isso] envolve, necessariamente, as ruas estarem no
cadastro da prefeitura; o caminhão de lixo da prefeitura entrar no
local; todos receberem o carnê do IPTU, mesmo que seja isento do
pagamento; regras de uso e ocupação do solo, sobre onde pode haver
casas ou comércio etc", explica a urbanista.
Simultaneamente ,
Maffezoli indica a necessidade de aproximação entre moradores e
policiais, a fim de destruir estereótipos. "A polícia comunitária é um
pouco isso. O policial está inserido naquele contexto, ele conhece todo
mundo, se envolve com aquilo e não é uma força inimiga, uma força
externa que chega em um determinado local em algum momento do conflito,
vendo aquelas pessoas como inimigas", argumenta.
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Postado por Pedro Otoni no Agência de Notícias Brigadista em 10/29/2009 10:00:00 AM
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