O antropólogo Kabengele Munanga fala sobre o mito da democracia racial
brasileira, a polêmica com Demétrio Magnoli e o papel da mídia e da
educação no combate ao preconceito no país.
Por Camila Souza Ramos e Glauco Faria
Fórum
- O senhor veio do antigo Zaire que, apesar de ter alguns pontos de
contato com a cultura brasileira e a cultura do Congo, é um país bem
diferente. O senhor sentiu, quando veio pra cá, a questão racial? Como
foi essa mudança para o senhor?
Kabengele - Essas coisas não são
tão abertas como a gente pensa. Cheguei aqui em 1975, diretamente para
a USP, para fazer doutorado. Não se depara com o preconceito à primeira
vista, logo que sai do aeroporto. Essas coisas vêm pouco a pouco,
quando se começa a descobrir que você entra em alguns lugares e percebe
que é único, que te olham e já sabem que não é daqui, que não é como
“nossos negros”, é diferente. Poderia dizer que esse estranhamento é
por ser estrangeiro, mas essa comparação na verdade é feita em relação
aos negros da terra, que não entram em alguns lugares ou não entram de
cabeça erguida.
Depois, com o tempo, na academia, fiz disciplinas
em antropologia e alguns de meus professores eram especialistas na
questão racial. Foi através da academia, da literatura, que comecei a
descobrir que havia problemas no país. Uma das primeiras aulas que fiz
foi em 1975, 1976, já era uma disciplina sobre a questão racial com meu
orientador João Batista Borges Pereira. Depois, com o tempo, você vai
entrar em algum lugar em que está sozinho e se pergunta: onde estão os
outros? As pessoas olhavam mesmo, inclusive olhavam mais quando eu
entrava com minha mulher e meus filhos. Porque é uma família
inter-racial: a mulher branca, o homem negro, um filho negro e um filho
mestiço. Em todos os lugares em que a gente entrava, era motivo de
curiosidade. O pessoal tentava ser discreto, mas nem sempre escondia.
Entrávamos em lugares onde geralmente os negros não entram.
A
partir daí você começa a buscar uma explicação para saber o porquê e se
aproxima da literatura e das aulas da universidade que falam da
discriminação racial no Brasil, os trabalhos de Florestan Fernandes, do
Otavio Ianni, do meu próprio orientador e de tantos outros que
trabalharam com a questão. Mas o problema é que quando a pessoa é
adulta sabe se defender, mas as crianças não. Tenho dois filhos que
nasceram na Bélgica, dois no Congo e meu caçula é brasileiro. Quantas
vezes, quando estavam sozinhos na rua, sem defesa, se depararam com a
polícia?
Meus filhos estudaram em escola particular, Colégio
Equipe, onde estudavam filhos de alguns colegas professores. Eu não ia
buscá-los na escola, e quando saíam para tomar ônibus e voltar para
casa com alguns colegas que eram brancos, eles eram os únicos a ser
revistados. No entanto, a condição social era a mesma e estudavam no
mesmo colégio. Por que só eles podiam ser suspeitos e revistados pela
polícia? Essa situação eu não posso contar quantas vezes vi acontecer.
Lembro
que meu filho mais velho, que hoje é ator, quando comprou o primeiro
carro dele, não sei quantas vezes ele foi parado pela polícia. Sempre
apontando a arma para ele para mostrar o documento. Ele foi instruído
para não discutir e dizer que os documentos estão no porta-luvas, senão
podem pensar que ele vai sacar uma arma. Na realidade, era suspeito de
ser ladrão do próprio carro que ele comprou com o trabalho dele. Meus
filhos até hoje não saem de casa para atravessar a rua sem documento.
São adultos e criaram esse hábito, porque até você provar que não é
ladrão... A geografia do seu corpo não indica isso.
Então, essa
coisa de pensar que a diferença é simplesmente social, é claro que o
social acompanha, mas e a geografia do corpo? Isso aqui também vai
junto com o social, não tem como separar as duas coisas. Fui com o
tempo respondendo à questão, por meio da vivência, com o cotidiano e as
coisas que aprendi na universidade, depoimentos de pessoas da população
negra, e entendi que a democracia racial é um mito. Existe realmente um
racismo no Brasil, diferenciado daquele praticado na África do Sul
durante o regime do apartheid, diferente também do racismo praticado
nos EUA, principalmente no Sul. Porque nosso racismo é, utilizando uma
palavra bem conhecida, sutil. Ele é velado. Pelo fato de ser sutil e
velado isso não quer dizer que faça menos vítimas do que aquele que é
aberto. Faz vítimas de qualquer maneira.
Revista Fórum - Quando
você tem um sistema como o sul-africano ou um sistema de restrição de
direitos como houve nos EUA, o inimigo está claro. No caso brasileiro é
mais difícil combatê-lo...
Kabengele - Claro, é mais difícil.
Porque você não identifica seu opressor. Nos EUA era mais fácil porque
começava pelas leis. A primeira reivindicação: o fim das leis racistas.
Depois, se luta para implementar políticas públicas que busquem a
promoção da igualdade racial. Aqui é mais difícil, porque não tinha lei
nem pra discriminar, nem pra proteger. As leis pra proteger estão na
nova Constituição que diz que o racismo é um crime inafiançável. Antes
disso tinha a lei Afonso Arinos, de 1951. De acordo com essa lei, a
prática do racismo não era um crime, era uma contravenção. A população
negra e indígena viveu muito tempo sem leis nem para discriminar nem
para proteger.
Revista Fórum - Aqui no Brasil há mais dificuldade
com relação ao sistema de cotas justamente por conta do mito da
democracia racial?
Kabengele - Tem segmentos da população a favor
e contra. Começaria pelos que estão contra as cotas, que apelam para a
própria Constituição, afirmando que perante a lei somos todos iguais.
Então não devemos tratar os cidadãos brasileiros diferentemente, as
cotas seriam uma inconstitucionalida de. Outro argumento contrário, que
já foi demolido, é a ideia de que seria difícil distinguir os negros no
Brasil para se beneficiar pelas cotas por causa da mestiçagem. O Brasil
é um país de mestiçagem, muitos brasileiros têm sangue europeu, além de
sangue indígena e africano, então seria difícil saber quem é
afro-descendente que poderia ser beneficiado pela cota. Esse argumento
não resistiu. Por quê? Num país onde existe discriminação antinegro, a
própria discriminação é a prova de que é possível identificar os
negros. Senão não teria discriminação.
Em comparação com outros
países do mundo, o Brasil é um país que tem um índice de mestiçamento
muito mais alto. Mas isso não pode impedir uma política, porque basta a
autodeclaração. Basta um candidato declarar sua afro-descendê ncia. Se
tiver alguma dúvida, tem que averiguar. Nos casos-limite, o indivíduo
se autodeclara afrodescendente. Às vezes, tem erros humanos, como o que
aconteceu na UnB, de dois jovens mestiços, de mesmos pais, um entrou
pelas cotas porque acharam que era mestiço, e o outro foi barrado
porque acharam que era branco. Isso são erros humanos. Se tivessem
certeza absoluta que era afro-descendente, não seria assim. Mas houve
um recurso e ele entrou. Esses casos-limite existem, mas não é isso que
vai impedir uma política pública que possa beneficiar uma grande parte
da população brasileira.
Além do mais, o critério de cota no
Brasil é diferente dos EUA. Nos EUA, começaram com um critério fixo e
nato. Basta você nascer negro. No Brasil não. Se a gente analisar a
história, com exceção da UnB, que tem suas razões, em todas as
universidades brasileiras que entraram pelo critério das cotas, usaram
o critério étnico-racial combinado com o critério econômico. O ponto de
partida é a escola pública. Nos EUA não foi isso. Só que a imprensa não
quer enxergar, todo mundo quer dizer que cota é simplesmente racial.
Não é. Isso é mentira, tem que ver como funciona em todas as
universidades. É necessário fazer um certo controle, senão não adianta
aplicar as cotas. No entanto, se mantém a ideia de que, pelas pesquisas
quantitativas, do IBGE, do Ipea, dos índices do Pnud, mostram que o
abismo em matéria de educação entre negros e brancos é muito grande. Se
a gente considerar isso então tem que ter uma política de mudança. É
nesse sentido que se defende uma política de cotas.
O racismo é
cotidiano na sociedade brasileira. As pessoas que estão contra cotas
pensam como se o racismo não tivesse existido na sociedade, não
estivesse criando vítimas. Se alguém comprovar que não tem mais racismo
no Brasil, não devemos mais falar em cotas para negros. Deveríamos
falar só de classes sociais. Mas como o racismo ainda existe, então não
há como você tratar igualmente as pessoas que são vítimas de racismo e
da questão econômica em relação àquelas que não sofrem esse tipo de
preconceito. A própria pesquisa do IPEA mostra que se não mudar esse
quadro, os negros vão levar muitos e muitos anos para chegar aonde
estão os brancos em matéria de educação. Os que são contra cotas ainda
dão o argumento de que qualquer política de diferença por parte do
governo no Brasil seria uma política de reconhecimento das raças e isso
seria um retrocesso, que teríamos conflitos, como os que aconteciam nos
EUA.
Fórum - Que é o argumento do Demétrio Magnoli.
Kabengele - Isso é muito falso, porque já temos a experiência, alguns
falam de mais de 70 universidades públicas, outros falam em 80. Já
ouviu falar de conflitos raciais em algum lugar, linchamentos raciais?
Não existe. É claro que houve manifestações numa universidade ou outra,
umas pichações, "negro, volta pra senzala". Mas isso não se caracteriza
como conflito racial. Isso é uma maneira de horrorizar a população,
projetar conflitos que na realidade não vão existir.
Fórum -
Agora o DEM entrou com uma ação no STF pedindo anulação das cotas. O
que motiva um partido como o DEM, qual a conexão entre a ideologia de
um partido ou um intelectual como o Magnoli e essa oposição ao sistema
de cotas? Qual é a raiz dessa resistência?
Kabengele – Tenho a
impressão que as posições ideológicas não são explícitas, são
implícitas. A questão das cotas é uma questão política. Tem pessoas no
Brasil que ainda acreditam que não há racismo no país. E o argumento
desse deputado do DEM é esse, de que não há racismo no Brasil, que a
questão é simplesmente socioeconômica. É um ponto de vista refutável,
porque nós temos provas de que há racismo no Brasil no cotidiano. O que
essas pessoas querem? Status quo. A ideia de que o Brasil vive muito
bem, não há problema com ele, que o problema é só com os pobres, que
não podemos introduzir as cotas porque seria introduzir uma
discriminação contra os brancos e pobres. Mas eles ignoram que os
brancos e pobres também são beneficiados pelas cotas, e eles negam esse
argumento automaticamente, deixam isso de lado.
Fórum – Mas isso
não é um cinismo de parte desses atores políticos, já que eles são
contra o sistema de cotas, mas também são contra o Bolsa-Família ou
qualquer tipo de política compensatória no campo socioeconômico?
Kabengele - É interessante, porque um país que tem problemas sociais do
tamanho do Brasil deveria buscar caminhos de mudança, de transformação
da sociedade. Cada vez que se toca nas políticas concretas de mudança,
vem um discurso. Mas você não resolve os problemas sociais somente com
a retórica. Quanto tempo se fala da qualidade da escola pública? Estou
aqui no Brasil há 34 anos. Desde que cheguei aqui, a escola pública
mudou em algum lugar? Não, mas o discurso continua. "Ah, é só mudar a
escola pública." Os mesmos que dizem isso colocam os seus filhos na
escola particular e sabem que a escola pública é ruim. Poderiam eles,
como autoridades, dar melhor exemplo e colocar os filhos deles em
escola pública e lutar pelas leis, bom salário para os educadores,
laboratórios, segurança. Mas a coisa só fica no nível da retórica.
E tem esse argumento legalista, "porque a cota é uma
inconstitucionalida de, porque não há racismo no Brasil". Há juristas
que dizem que a igualdade da qual fala a Constituição é uma igualdade
formal, mas tem a igualdade material. É essa igualdade material que é
visada pelas políticas de ação afirmativa. Não basta dizer que somos
todos iguais. Isso é importante, mas você tem que dar os meios e isso
se faz com as políticas públicas. Muitos disseram que as cotas nas
universidades iriam atingir a excelência universitária. Está comprovado
que os alunos cotistas tiveram um rendimento igual ou superior aos
outros. Então a excelência não foi prejudicada. Aliás, é curioso falar
de mérito como se nosso vestibular fosse exemplo de democracia e de
mérito.
Mérito significa simplesmente que você coloca como ponto
de partida as pessoas no mesmo nível. Quando as pessoas não são iguais,
não se pode colocar no ponto de partida para concorrer igualmente. É
como você pegar uma pessoa com um fusquinha e outro com um Mercedes,
colocar na mesma linha de partida e ver qual o carro mais veloz. O
aluno que vem da escola pública, da periferia, de péssima qualidade, e
o aluno que vem de escola particular de boa qualidade, partindo do
mesmo ponto, é claro que os que vêm de uma boa escola vão ter uma nota
superior. Se um aluno que vem de um Pueri Domus, Liceu Pasteur, tira
nota 8, esse que vem da periferia e tirou nota 5 teve uma caminhada
muito longa. Essa nota 5 pode ser mais significativa do que a nota 7 ou
8. Dando oportunidade ao aluno, ele não vai decepcionar.
Foi isso
que aconteceu, deram oportunidade. As cotas são aplicadas desde 2003.
Nestes sete anos, quantos jovens beneficiados pelas cotas terminaram o
curso universitário e quantos anos o Brasil levaria para formar o tanto
de negros sem cotas? Talvez 20 ou mais. Isso são coisas concretas para
as quais as pessoas fecham os olhos. No artigo do professor Demétrio
Magnoli, ele me critica, mas não leu nada. Nem uma linha de meus
livros. Simplesmente pegou o livro da Eneida de Almeida dos Santos,
Mulato, negro não-negro e branco não-branco que pediu para eu fazer uma
introdução, e desta introdução de três páginas ele tirou algumas frases
e, a partir dessas frases, me acusa de ser um charlatão acadêmico, de
professar o racismo científico abandonado há mais de um século e fazer
parte de um projeto de racialização oficial do Brasil. Nunca leu nada
do que eu escrevi.
A autora do livro é mestiça, psiquiatra e
estuda a dificuldade que os mestiços entre branco e negro têm pra
construir a sua identidade. Fiz a introdução mostrando que eles têm
essa dificuldade justamente por causa de serem negros não-negros e
brancos não-brancos. Isso prejudica o processo, mas no plano político,
jurídico, eles não podem ficar ambivalentes. Eles têm que optar por uma
identidade, têm que aceitar sua negritude, e não rejeitá-la. Com isso
ele acha que eu estou professando a supressão dos mestiços no Brasil e
que isso faz parte do projeto de racialização do brasileiro. Não tinha
nada para me acusar, soube que estou defendendo as cotas, tirou três
frases e fez a acusação dele no jornal.
Fórum - O senhor toca na questão do imaginário da democracia racial, mas as pessoas são formadas para aceitarem esse mito...
Kabengele - O racismo é uma ideologia. A ideologia só pode ser
reproduzida se as próprias vítimas aceitam, a introjetam, naturalizam
essa ideologia. Além das próprias vítimas, outros cidadãos também, que
discriminam e acham que são superiores aos outros, que têm direito de
ocupar os melhores lugares na sociedade. Se não reunir essas duas
condições, o racismo não pode ser reproduzido como ideologia, mas toda
educação que nós recebemos é para poder reproduzi-la.
Há negros
que introduziram isso, que alienaram sua humanidade, que acham que são
mesmo inferiores e o branco tem todo o direito de ocupar os postos de
comando. Como também tem os brancos que introjetaram isso e acham mesmo
que são superiores por natureza. Mas para você lutar contra essa ideia
não bastam as leis, que são repressivas, só vão punir. Tem que educar
também. A educação é um instrumento muito importante de mudança de
mentalidade e o brasileiro foi educado para não assumir seus
preconceitos. O Florestan Fernandes dizia que um dos problemas dos
brasileiros é o “preconceito de ter preconceito de ter preconceito”. O
brasileiro nunca vai aceitar que é preconceituoso. Foi educado para não
aceitar isso. Como se diz, na casa de enforcado não se fala de corda.
Quando você está diante do negro, dizem que tem que dizer que é moreno,
porque se disser que é negro, ele vai se sentir ofendido. O que não
quer dizer que ele não deve ser chamado de negro. Ele tem nome, tem
identidade, mas quando se fala dele, pode dizer que é negro, não
precisa branqueá-lo, torná-lo moreno. O brasileiro foi educado para se
comportar assim, para não falar de corda na casa de enforcado. Quando
você pega um brasileiro em flagrante de prática racista, ele não
aceita, porque não foi educado para isso. Se fosse um americano, ele
vai dizer: "Não vou alugar minha casa para um negro". No Brasil, vai
dizer: "Olha, amigo, você chegou tarde, acabei de alugar". Porque a
educação que o americano recebeu é pra assumir suas práticas racistas,
pra ser uma coisa explícita.
Quando a Folha de S. Paulo fez
aquela pesquisa de opinião em 1995, perguntaram para muitos brasileiros
se existe racismo no Brasil. Mais de 80% disseram que sim. Perguntaram
para as mesmas pessoas: "você já discriminou alguém?". A maioria disse
que não. Significa que há racismo, mas sem racistas. Ele está no ar...
Como você vai combater isso? Muitas vezes o brasileiro chega a dizer ao
negro que reage: "você que é complexado, o problema está na sua
cabeça". Ele rejeita a culpa e coloca na própria vítima. Já ouviu falar
de crime perfeito? Nosso racismo é um crime perfeito, porque a própria
vítima é que é responsável pelo seu racismo, quem comentou não tem
nenhum problema.
Revista Fórum - O humorista Danilo Gentilli
escreveu no Twitter uma piada a respeito do King Kong, comparando com
um jogador de futebol que saía com loiras. Houve uma reação grande e a
continuação dos argumentos dele para se justificar vai ao encontro
disso que o senhor está falando. Ele dizia que racista era quem acusava
ele, e citava a questão do orgulho negro como algo de quem é racista.
Kebengele - Faz parte desse imaginário. O que está por trás que está
fazendo uma ilustração de King Kong, que ele compara a um jogador de
futebol que vai casar com uma loira, é a ideia de alguém que ascende na
vida e vai procurar sua loira. Mas qual é o problema desse jogador de
futebol? São pessoas vítimas do racismo que acham que agora ascenderam
na vida e, para mostrar isso, têm que ter uma loira que era proibida
quando eram pobres? Pode até ser uma explicação. Mas essa loira não é
uma pessoa humana que pode dizer não ou sim e foi obrigada a ir com o
King Kong por causa de dinheiro? Pode ser, quantos casamentos não são
por dinheiro na nossa sociedade? A velha burguesia só se casa dentro da
velha burguesia. Mas sempre tem pessoas que desobedecem as normas da
sociedade.
Essas jovens brancas, loiras, também pulam a cerca de
suas identidades pra casar com um negro jogador. Por que a corda só
arrebenta do lado do jogador de futebol? No fundo, essas pessoas não
querem que os negros casem com suas filhas. É uma forma de racismo.
Estão praticando um preconceito que não respeita a vontade dessas
mulheres nem essas pessoas que ascenderam na vida, numa sociedade onde
o amor é algo sem fronteiras, e não teria tantos mestiços nessa
sociedade. Com tudo o que aconteceu no campo de futebol com aquele
jogador da Argentina que chamou o Grafite de macaco, com tudo o que
acontece na Europa, esse humorista faz uma ilustração disso, ou é uma
provocação ou quer reafirmar os preconceitos na nossa sociedade.
Fórum - É que no caso, o Danilo Gentili ainda justificou sua piada com
um argumento muito simplório: "por que eu posso chamar um gordo de
baleia e um negro de macaco", como se fosse a mesma coisa.
Kabengele - É interessante isso, porque tenho a impressão de que é um
cara que não conhece a história e o orgulho negro tem uma história. São
seres humanos que, pelo próprio processo de colonização, de escravidão,
a essas pessoas foi negada sua humanidade. Para poder se recuperar, ele
tem que assumir seu corpo como negro. Se olhar no espelho e se achar
bonito ou se achar feio. É isso o orgulho negro. E faz parte do
processo de se assumir como negro, assumir seu corpo que foi recusado.
Se o humorista conhecesse isso, entenderia a história do orgulho negro.
O branco não tem motivo para ter orgulho branco porque ele é vitorioso,
está lá em cima. O outro que está lá em baixo que deve ter orgulho, que
deve construir esse orgulho para poder se reerguer.
Fórum - O
senhor tocou no caso do Grafite com o Desábato, e recentemente tivemos,
no jogo da Libertadores entre Cruzeiro e Grêmio, o caso de um jogador
que teria sido chamado de macaco por outro atleta. Em geral, as pessoas
– jornalistas que comentaram, a diretoria gremista – argumentavam que
no campo de futebol você pode falar qualquer coisa, e que se as pessoas
fossem se importar com isso, não teria como ter jogo de futebol. Como
você vê esse tipo de situação?
Kabengele - Isso é uma prova
daquilo que falei, os brasileiros são educados para não assumir seus
hábitos, seu racismo. Em outros países, não teria essa conversa de que
no campo de futebol vale. O pessoal pune mesmo. Mas aqui, quando se
trata do negro... Já ouviu caso contrário, de negro que chama branco de
macaco? Quando aquele delegado prendeu o jogador argentino no caso do
Grafite, todo mundo caiu em cima. Os técnicos, jornalistas,
esportistas, todo mundo dizendo que é assim no futebol. Então a gente
não pode educar o jogador de futebol, tudo é permitido? Quando há
violência física, eles são punidos, mas isso aqui é uma violência
também, uma violência simbólica. Por que a violência simbólica é aceita
a violência física é punida?
Fórum - Como o senhor vê hoje a
aplicação da lei que determina a obrigatoriedade do ensino de cultura
africana nas escolas? Os professores, de um modo geral, estão
preparados para lidar com a questão racial?
Kabengele - Essa lei
já foi objeto de crítica das pessoas que acham que isso também seria
uma racialização do Brasil. Pessoas que acham que, sendo a população
brasileira uma população mestiça, não é preciso ensinar a cultura do
negro, ensinar a história do negro ou da África. Temos uma única
história, uma única cultura, que é uma cultura mestiça. Tem pessoas que
vão nessa direção, pensam que isso é uma racialização da educação no
Brasil.
Mas essa questão do ensino da diversidade na escola não é
propriedade do Brasil. Todos os países do mundo lidam com a questão da
diversidade, do ensino da diversidade na escola, até os que não foram
colonizadores, os nórdicos, com a vinda dos imigrantes, estão tratando
da questão da diversidade na escola.
O Brasil deveria tratar
dessa questão com mais força, porque é um país que nasceu do encontro
das culturas, das civilizações. Os europeus chegaram, a população
indígena – dona da terra – os africanos, depois a última onda
imigratória é dos asiáticos. Então tudo isso faz parte das raízes
formadoras do Brasil que devem fazer parte da formação do cidadão. Ora,
se a gente olhar nosso sistema educativo, percebemos que a história do
negro, da África, das populações indígenas não fazia parte da educação
do brasileiro.
Nosso modelo de educação é eurocêntrico. Do ponto
de vista da historiografia oficial, os portugueses chegaram na África,
encontraram os africanos vendendo seus filhos, compraram e levaram para
o Brasil. Não foi isso que aconteceu. A história da escravidão é uma
história da violência. Quando se fala de contribuições, nunca se fala
da África. Se se introduzir a história do outro de uma maneira
positiva, isso ajuda.
É por isso que a educação, a introdução da
história dele no Brasil, faz parte desse processo de construção do
orgulho negro. Ele tem que saber que foi trazido e aqui contribuiu com
o seu trabalho, trabalho escravizado, para construir as bases da
economia colonial brasileira. Além do mais, houve a resistência, o
negro não era um João-Bobo que simplesmente aceitou, senão a gente não
teria rebeliões das senzalas, o Quilombo dos Palmares, que durou quase
um século. São provas de resistência e de defesa da dignidade humana.
São essas coisas que devem ser ensinadas. Isso faz parte do patrimônio
histórico de todos os brasileiros. O branco e o negro têm que conhecer
essa história porque é aí que vão poder respeitar os outros.
Voltando a sua pergunta, as dificuldades são de duas ordens. Em
primeiro lugar, os educadores não têm formação para ensinar a
diversidade. Estudaram em escolas de educação eurocêntrica, onde não se
ensinava a história do negro, não estudaram história da África, como
vão passar isso aos alunos? Além do mais, a África é um continente, com
centenas de culturas e civilizações. São 54 países oficialmente. A
primeira coisa é formar os educadores, orientar por onde começou a
cultura negra no Brasil, por onde começa essa história. Depois dessa
formação, com certo conteúdo, material didático de boa qualidade, que
nada tem a ver com a historiografia oficial, o processo pode funcionar.
Fórum - Outra questão que se discute é sobre o negro nos espaços
de poder. Não se veem negros como prefeitos, governadores. Como
trabalhar contra isso?
Kabengele - O que é um país democrático?
Um país democrático, no meu ponto de vista, é um país que reflete a sua
diversidade na estrutura de poder. Nela, você vê mulheres ocupando
cargos de responsabilidade, no Executivo, no Legislativo, no
Judiciário, assim como no setor privado. E ainda os índios, que são os
grandes discriminados pela sociedade. Isso seria um país democrático. O
fato de você olhar a estrutura de poder e ver poucos negros ou quase
não ver negros, não ver mulheres, não ver índios, isso significa que há
alguma coisa que não foi feita nesse país. Como construção da
democracia, a representatividade da diversidade não existe na estrutura
de poder. Por quê?
Se você fizer um levantamento no campo
jurídico, quantos desembargadores e juízes negros têm na sociedade
brasileira? Se você for pras universidades públicas, quantos
professores negros tem, começando por minha própria universidade? Esta
universidade tem cerca de 5 mil professores. Quantos professores negros
tem na USP? Nessa grande faculdade, que é a Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas (FFLCH), uma das maiores da USP junto com a
Politécnica, tenho certeza de que na minha faculdade fui o primeiro
negro a entrar como professor. Desde que entrei no Departamento de
Antropologia, não entrou outro. Daqui três anos vou me aposentar. O
professor Milton Santos, que era um grande professor, quase Nobel da
Geografia, entrou no departamento, veio do exterior e eu já estava
aqui. Em toda a USP, não sou capaz de passar de dez pessoas conhecidas.
Pode ter mais, mas não chega a 50, exagerando. Se você for para as
grandes universidades americanas, Harvard, Princeton, Standford, você
vai encontrar mais negros professores do que no Brasil. Lá eles são
mais racistas, ou eram mais racistas, mas como explicar tudo isso?
120 anos de abolição. Por que não houve uma certa mobilidade social
para os negros chegarem lá? Há duas explicações: ou você diz que ele é
geneticamente menos inteligente, o que seria uma explicação racista, ou
encontra explicação na sociedade. Quer dizer que se bloqueou a sua
mobilidade. E isso passa por questão de preconceito, de discriminação
racial. Não há como explicar isso. Se você entender que os imigrantes
japoneses chegaram, nós comemoramos 100 anos recentemente da sua vinda,
eles tiveram uma certa mobilidade. Os coreanos também ocupam um lugar
na sociedade. Mas os negros já estão a 120 anos da abolição. Então tem
uma explicação. Daí a necessidade de se mudar o quadro. Ou nós mantemos
o quadro, porque se não mudamos estamos racializando o Brasil, ou a
gente mantém a situação para mostrar que não somos racistas. Porque a
explicação é essa, se mexer, somos racistas e estamos racializando.
Então vamos deixar as coisas do jeito que estão. Esse é o dilema da
sociedade.
Revista Fórum – como o senhor vê o tratamento dado pela mídia à questão racial?
Kabengele - A imprensa faz parte da sociedade. Acho que esse discurso
do mito da democracia racial é um discurso também que é absorvido por
alguns membros da imprensa. Acho que há uma certa tendência na imprensa
pelo fato de ser contra as políticas de ação afirmativa, sendo que
também não são muito favoráveis a essa questão da obrigatoriedade do
ensino da história do negro na escola.
Houve, no mês passado, a
II Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial. Silêncio
completo da imprensa brasileira. Não houve matérias sobre isso. Os
grandes jornais da imprensa escrita não pautaram isso. O silêncio faz
parte do dispositivo do racismo brasileiro. Como disse Elie Wiesel, o
carrasco mata sempre duas vezes. A segunda mata pelo silêncio. O
silêncio é uma maneira de você matar a consciência de um povo. Porque
se falar sobre isso abertamente, as pessoas vão buscar saber, se
conscientizar, mas se ficar no silêncio a coisa morre por aí. Então
acho que o silêncio da imprensa, no meu ponto de vista, passa por essa
estratégia, é o não-dito.
Acabei de passar por uma experiência
interessante. Saí da Conferência Nacional e fui para Barcelona,
convidado por um grupo de brasileiros que pratica capoeira. Claro,
receberam recursos do Ministério das Relações Exteriores, que pagou
minha passagem e a estadia. Era uma reunião pequena de capoeiristas e
fiz uma conferência sobre a cultura negra no Brasil. Saiu no El Pais,
que é o jornal mais importante da Espanha, noticiou isso, uma coisa
pequena. Uma conferência nacional deste tamanho aqui não se fala. É um
contrassenso. O silêncio da imprensa não é um silêncio neutro, é um
silêncio que indica uma certa orientação da questão racial. Tem que não
dizer muita coisa e ficar calado. Amanhã não se fala mais, acabou.
Essa matéria é parte integrante da edição impressa da Fórum de agosto. Nas bancas.
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