Por Hamilton Octavio de Souza, Júlio Delmanto, Lúcia Rodrigues, Otávio Nagoya e Tatiana Merlino
A juíza Kenarik Boujikian Felippe conta, nesta entrevista exclusiva para Caros Amigos,
o que acontece nas entranhas do judiciário criminal e do sistema
carcerário, onde a discriminação contra os pobres, contra os negros e
contra as mulheres, expressa a constante violação de direitos
consagrados na atualidade.
Para
ela, todos os métodos de tortura utilizados no período da Ditadura
Militar continuam a existir hoje, dentro e fora das delegacias e das
prisões: “Essa é uma questão relevante para a construção do Estado
democrático de direito que ainda não está construído no Brasil.
Enquanto nós não resolvermos essa questão do período da repressão, nós
não vamos conseguir caminhar para outra situação de dignidade de todas
as pessoas”.
Fundadora
e ex-presidente da Associação dos Juízes para a Democracia (AJD),
militante de ONG que atua com mulheres encarceradas, Kenarik tem sido
importante referência na luta pelos direitos humanos no Brasil. Casada,
mãe de três fi lhos – Marcelo, Mariana e Isabel – ela denuncia aqui os
entulhos autoritários que ainda estão sendo mantidos pelo atual regime,
inclusive pelo Judiciário. Vale a pena ler.
Hamilton Octavio de Souza - Fale um pouco da sua vida, onde você nasceu, estudou, morou, sobre sua família, seus pais, até você se tornar juíza.
Kenarik
Boujikian Felippe - Eu não nasci no Brasil, vim para o Brasil com 3
anos. Nasci em uma aldeia de armênios que fi ca na Síria. Então, meu
documento de naturalidade é da Síria. Eu vim para o Brasil com 3 anos,
morei aqui em São Paulo até uns 10 anos, e fui morar no
interior em razão do trabalho do meu pai, que era comerciante em São
José do Rio Preto. Depois nós voltamos para São Paulo e só saí no tempo
em que eu entrei na magistratura, quando obrigatoriamente começa a
carreira em outras cidades. Fui para Piracicaba, morei pouco tempo lá,
mas a minha vida é basicamente em São Paulo.
Tatiana Merlino - Por que seus pais vieram para o Brasil?
Bom, tem duas
versões. Uma é a questão que se fala muito, que é a questão do sonho da
América, a possibilidade de dar outro tipo de vida para os filhos. A
outra, é que supostamente meu pai fazia parte de algum movimento de
independência. Ao contrário da minha família, que plantava, ele
trabalhava com construção, ele e meu avô. Achavam que ele eventualmente
sabia onde poderia ter armas guardadas na igreja, porque ele trabalhava
com construção.
Hamilton Octavio de Souza – Havia uma perseguição forte aos armênios.
Sim, e eu acho que
talvez também a minha história com os movimentos de direitos humanos
deve ter algum link aí com a questão dos genocídios dos armênios, o
primeiro genocídio do século.
Tatiana Merlino – Seu pai nunca confirmou qual era a versão verdadeira?
Meu pai morreu muito
cedo, ele tinha 49 anos (quando morreu), eu tinha 15, 16 anos na época,
então, ele nunca falou. Eles falavam mais da versão da América. Ele
nunca me confirmou efetivamente sobre isso, quem falou sobre isso foi
minha mãe. Eu estudei, aqui em São Paulo, um tempo na escola Armênia,
logo que eu vim para o Brasil. Depois, quando eu fui para o interior,
fui estudar em um colégio estadual, em São José do Rio Preto. Depois
voltei, circulei por algumas escolas e acabei me formando em magistério
no colégio Santa Inês, que é um colégio salesiano, no Bom Retiro,
bairro onde eu morei quando cheguei ao Brasil e onde minha mãe mora até
hoje. Depois eu fui fazer faculdade de Direito. Eu tinha dúvidas do que
queria fazer. Queria fazer Jornalismo e Direito, antes tinha uma outra
opção que passava pela cabeça, que eram Ciências Sociais.
Tatiana Merlino - Você tem algum professor que tenha te inspirado, alguém que atuasse na área de direitos humanos?
Nesse aspecto é o
professor (José Gaspar Gonzaga) Francesquini, que acho que até hoje dá
aula lá na PUC-SP. Ele dava aula de Direito Civil, era uma pessoa
extremamente sensível e fui trabalhar com questão carcerária graças a
ele. Ele, na época, era juiz da Vara de Execuções Criminais, e
perguntou se os alunos não queriam ser voluntários para realizar um
trabalho, pois havia um caos absoluto na questão da assistência
judiciária dos presídios. Acho que só eu aceitei e fui ser voluntária.
Um pouco do que me inspirou foi a postura dele, uma grande pessoa, uma
grande figura humana, um grande juiz da Vara Execuções Criminais, um
dos mais conhecidos e respeitados Para mim, a ligação com o professor
Francesquini vem muito da oportunidade que ele me deu de conhecer essa
outra realidade do sistema carcerário. Isso pra mim foi um ganho
gigantesco na minha vida.
Hamilton Octavio de Souza - Como foi essa experiência?
Primeiro é conhecer
que existe esse mundo, porque na faculdade de direito você não consegue
imaginar nada do que acontece, o que significa aquilo em termos
práticos, de processo. E aí pôr o pé dentro do sistema é um choque em
um primeiro momento. É algo inesperado, o cheiro é inesperado, tudo é
diferente. As pessoas não sabem o que significa passar um dia dentro de
uma prisão. E pra mim foi importante conhecer também a falta de
estrutura do sistema de justiça em relação a esses que são os mais
vulneráveis na minha concepção. Então, esse tipo de trabalho, de você
pelo menos ouvir a pessoa e ir atrás para ver se pode fazer alguma
coisa, para mim foi uma lição de vida, e, em termos técnicos,
evidentemente também. Meu trabalho era voluntária na área de Direito.
Lúcia Rodrigues - Você chegou a advogar profissionalmente?
Sim, advoguei. Antes
de ser juíza, fui procuradora do Estado, trabalhei na assistência
judiciária, em 88. Em 87, eu fui advogada da FUNAP, onde eu fiz o
estágio de direito nas penitenciárias.
Tatiana Merlino - Você
tem uma militância na área de Direitos Humanos, faz parte de uma ONG de
questão carcerária de mulheres, pode falar sobre isso?
Você está se
referindo ao Grupo de Estudo e Trabalho - Mulheres Encarceradas. Eu
faço parte desse grupo que é uma rede, e trabalho na rede em razão de
pertencer à Associação Juízes para a Democracia. Agora eu tenho uma
militância, mas a militância não me tira uma atuação de Direitos
Humanos como juíza, não me tira das relações da vida. Você pode ter a
militância, mas a questão dos Direitos Humanos é uma coisa global, não
é só de uma atividade ou uma coisa direcionada.
Otávio Nagoya - Você acha que o Estado trata diferente os direitos do homem e da mulher presa?
Trata completamente
diferente. Um exemplo bem gritante, claro e incontestável é a questão
da visita íntima. Os homens tinham há décadas aqui, em São Paulo, e as
mulheres não tinham o direito de receber os seus companheiros, amigos.
Esse grupo surgiu em uma conversa após uma palestra na OAB para
discutir sistema carcerário, e no final eu falei que o Estado tratava
diferente as presas dos presos. E aí um grupo de pessoas que eu já
conhecia começou a conversar mais sobre isso. Foi quando surgiu o
grupo. A gente começou a trabalhar com esse tema, o encarceramento
feminino no Brasil, que assim como nos demais países tem um índice
pequeno de participação em termos de população carcerária. A taxa de
mulheres presas no Brasil é de mais ou menos 6%. Por outro lado, a
gente vê que está acontecendo um fenômeno mundial de aumento do número
de mulheres presas em razão, basicamente, de envolvimento com tráfico
de entorpecentes. No Brasil nós temos um problema de dados. Hoje, o
Ministério da Justiça faz um recorte de gênero, mas há uns cinco anos
atrás não tinha. Não tem como ter políticas públicas se não se conhece
nem qual é o seu mundo de trabalho, qual o percentual.... Eu acho que a
mulher é sempre penalizada, seja presa, seja companheira de um preso,
porque, se é ela que vai visitar, passa pela revista vexatória. Em dia
de visita elas estão lá, não abandonam os companheiros. Mas vai em uma
fila de um dia de visita em uma penitenciária feminina, não tem muito
homem, são poucos. Tem mais
a irmã, a mãe que
leva os filhos... Na penitenciária masculina tem uma fila gigantesca de
mulheres. Elas são muito abandonadas pelos homens. Nós tivemos aqui
várias campanhas, inclusive estaduais, para mulheres, teve o mutirão
ginecológico, e as mulheres presas nem entraram na história. É um plano
para todas as mulheres do Estado, e as presas não entraram, é como se
elas não existissem.
Hamilton Octavio de Souza - Elas são 6% do total da população do total de presos. É isso? E em números absolutos, quanto representam?
Hoje nós temos uma
população aproximada de 450 mil presos. Acho que dá mais ou menos 25
mil se não me engano, alguma coisa assim, 30 mil.
Hamilton Octavio de Souza - Qual é o perfil dessa mulher?
Jovem. A maioria tem
filhos, assume a chefia de família... Todas praticamente são pobres. O
percentual de mulheres negras presas é um pouco maior do que as negras
fora muro. Muitas trabalham, e quando trabalham dentro do sistema, esse
é um dado de uma pesquisa que eu acho muito curioso, ela pode fazer o
que quiser com o seu dinheiro. Mas eu perguntei: “o que vocês fazem com
o dinheiro?”. A maioria das mulheres respondeu: “A gente reverte para a
família”. E o que os homens fazem? “Ah,eu gasto comigo”.
Hamilton Octavio de Souza - No processo judicial, há discriminação? Existe algum momento em que a justiça trata de forma desigual a mulher e o homem?
Eu não conheço nenhum
trabalho que tenha dito efetivamente isso, mas todo mundo que é da área
de Direito fala que as mulheres são tratadas com um rigor maior.
Existem algumas consequências práticas da falta dessas políticas
públicas. Por exemplo, quem está em cadeia pública, provavelmente não
vai ter uma defensoria pública quando fizer seus pedidos. Se o maior
número de mulheres do Estado estão em uma cadeia pública, evidentemente
ela vai ter menos estrutura para cuidar dos seus direitos.
Júlio Delmanto - Mas
no caso da visita das mulheres, da revista, a forma como é feita não é
ilegal na verdade? Tem aquele procedimento do banquinho.
Eu acho, eu acho que
sim. É, existem outros procedimentos, esse do banquinho... Tem lugares
que são terríveis. Por exemplo, uma juíza me falou que ela baixou uma
portaria não permitindo mais revista vexatória, por conta do caso de
uma mulher que era muito obesa e disse: “eu quero visitar meu marido,
mas eu não consigo mais passar por essa situação toda vez que eu vou
visitá-lo”. Ela relatou para a juíza como que era a revista e disse:
“nenhum homem tinha me tocado, só o meu marido, e chegando lá eu tenho
que passar por essa situação...”. A juíza constatou que eles usavam
luva de pedreiro pra fazer a revista. Não se pode considerar isso uma
coisa normal, rotineira. É ilegal, é desumano, fere todas as
convenções, fere a nossa Constituição.
Hamilton Octavio de Souza - A quem compete fiscalizar ou alterar esse tipo de situação?
Bem, primeiro a
obrigação é do Executivo, e ele não implementou de forma correta. É de
responsabilidade dos governos estaduais, mas se não for respeitado é o
Judiciário que tem que garantir. Por exemplo, aquela juíza, naquele
caso concreto da revista vexatória, baixou uma portaria para a
secretaria.
Lúcia Rodrigues - Em
relação a essas violações que acontecem cotidianamente dentro dos
presídios, das cadeias públicas, tem outra questão também que é a
tortura. Como é que você vê esses casos? São recorrentes? Como é que
chega essa questão para você?
Quem trata da
execução do processo aqui em São Paulo é um outro juiz, que é o juiz da
Vara de Execução. Agora, nós sabemos que a tortura ocorre no país não
só dentro do sistema prisional como fora. E é impressionante. Teve um
processo de tortura faz alguns anos, e na época, por uma questão de
estudo, só por isso, eu quis fazer um levantamento lá no Fórum para
saber dos processos de tortura. Eu fiquei chocada com os números. A
gente sabe que o número é pequeno, que não se pune, que não se apura,
todo mundo sabe, mas na hora que você vê os números, eu falei: “Mas não
é possível, nós estamos aqui em São Paulo”. A lei de tortura já tinha
cinco anos (a lei é de 1997) de existência, mas não havia nem cinquenta
processos. Isso é nada, eu recebo muito mais processos por mês do que
esses cinquenta. Não há registro dos casos, não há apuração
dos casos, não há estrutura para as pessoas que fazem esse tipo de denúncia. A questão da tortura é uma questão mal resolvida.
Lúcia Rodrigues - A não punição dos torturadores da ditadura militar implica na perpetuação da tortura hoje.
Todos os métodos
utilizados no período da repressão são exatamente os mesmos métodos
utilizados hoje, e essa é uma questão relevante para a construção do
Estado democrático de Direito que ainda não está construído no Brasil.
Enquanto nós não resolvermos essa questão do período da repressão, nós
não vamos conseguir caminhar para outra situação de dignidade de todas
as pessoas. Tem uma pesquisa que eu acho muito interessante, que foi
feita em vários países por uma pesquisadora americana. Ela fez um
levantamento em vários países que passaram por períodos autoritários.
Nos países em que os crimes praticados durante esse período autoritário
foram apurados, os crimes de violação aos direitos humanos diminuíram.
Então eu acho que essa pesquisa diz, com todas as letras, não só para o
passado, mas como para o presente e para o futuro, que isso tem que ser
resolvido.
Lúcia Rodrigues - Por
isso a importância da ADPF, que está querendo fazer uma leitura sobre a
Lei de Anistia, que não tem crime conexo entre torturador e preso
político, não dá para ter essa conexão de crimes. Essa conexão é uma
interpretação errônea, não é?
Sim. A ADPF foi proposta pela OAB.
Hamilton Octavio de Souza - O que é ADPF?
Ação declaratória de
preceito fundamental. Significa que alguém quer que o Supremo faça uma
leitura de algum preceito constitucional à luz da Constituição.
Hamilton Octavio de Souza – Uma interpretação?
É. É um instituto
relativamente novo, nós não temos um número grande deste tipo de ação
no Supremo Tribunal Federal. A ordem entrou com essa ação e a AJD
entrou com um pedido de amicus curia, é um instituto que
permite que o ingresso no processo para ajudar a corte fornecendo
elementos. Agora, a opção da AJD pelo ingresso não é um método de
trabalho, nós não temos essa política, essa é uma ação
excepcionalíssima. A gente só ingressou pelo que representa a ação em
termos de democracia para o país. Será um marco, em termos do Estado,
admitir através de um de seus poderes, que é o poder Judiciário, que
aqueles indivíduos que praticaram atos inumanos no período de repressão
não são beneficiados pela Lei de Anistia. É um marco para a democracia.
O processo teve início em 2008, está na Procuradoria Geral da República
desde fevereiro
deste ano e existe
expectativa que, agora em outubro, o procurador dê, enfim, o seu
parecer e devolva o processo para o Supremo Tribunal Federal, para que
ele possa decidir.
Lúcia Rodrigues - Eu
queria que você explicasse o que é o crime conexo. Por que não é
considerado um crime conexo quem tortura e quem participou da
resistência à Ditadura militar?
Quando da lei da
anistia, o artigo 1º fala em crimes políticos e conexos. E eu não sei
por qual motivo, exatamente. Eu não consigo detectar, isso ficou
adormecido e parado, sem muitas ações na época para se questionar isso.
Recentemente, o STF deu uma decisão que eu considero muito importante,
que é do caso da extradição do Manoel Cordeiro. A extradição foi pedida
pela Argentina e pelo Uruguai. Ele era um torturador da chefia da
operação Condor. Nesse caso específico, o tribunal declarou que os atos
praticados por esse indivíduo, no âmbito da operação Condor, não
poderiam ser caracterizados como crime político. Então nós já temos um
passo significativo e toda jurisprudência do Supremo. Aí resta a
questão do crime conexo, e esse é o objetivo da ADPF, que pede que o
STF diga que esses crimes praticados pelos torturadores, assassinos,
não são conexos com os crimes políticos. Não existe nenhuma relação de
espécie nenhuma, de motivação entre a tortura e os atos e crimes que
foram praticados com determinada motivação.
Hamilton Octavio de Souza - Qual é a situação do Brasil em relação aos outros países da América Latina?
É importante dizer
que existe uma expectativa desse caso não só em relação aos
brasileiros, ao povo brasileiro, mas existe na ordem regional, na
América Latina, todos os outros países estão tomando suas ações para
não deixar impune o que aconteceu nas ditaduras. Em todos os países
isso está sendo enfrentado pelo poder Judiciário, muitas vezes, por
outros poderes, o Legislativo, o Executivo. No Brasil eu não vejo o
Legislativo tendo uma atuação nesse aspecto, não vejo o Executivo
fazendo alguma
coisa de mais concreto em relação a isso.
Lúcia Rodrigues - Por
que o governo Lula não faz nada de mais concreto, se é um governo
teoricamente de esquerda? E tem um ministro dos Direitos Humanos que
foi torturado, inclusive.
Eu não sei se o
governo Lula é um governo de esquerda. Eu não concordo quando se diz
que é um governo de esquerda, e nem sei se até é teoricamente. Ele foi
eleito por uma base grande de esquerda, isso sim, mas ele não é um
governo exatamente de esquerda. Tanto que, em termos de Executivo, o
que é que foi feito em relação a essa matéria? Ele tem que assumir, ele
é o presidente, foi ele quem recebeu milhões de votos. Como é que ele
não assume uma coisa dessas? Deixa cada ministério falar o que acham
sobre esse tema. Então, nesse processo nós temos essa tensão dentro do
governo. E tensão eu acho que pode existir, mas tem que ter alguém que
diga se é A ou B. Alguém tem que dizer isso. Quem seria? Só pode ser o
presidente.
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