Plínio
de Arruda Sampaio1 (FSP, 05/12/2009)
REFORMA-SE
algo que não está funcionando a contento. Altera-se então a
forma de alguma coisa, sem alterar sua substância. Por isso mesmo,
uma mesma coisa pode ser reformada várias vezes. Com a estrutura agrária
acontece exatamente o mesmo. Todas as vezes em que ela emperra a realização
do projeto de algum grupo social importante, esse grupo propõe uma
reforma agrária.
Na
época moderna, o motivo principal das reformas agrárias foi a rigidez
da estrutura agrária herdada da Idade Média porque impedia o pleno
funcionamento do mercado capitalista e das instituições capitalistas
no campo. De modo geral, essas reformas agrárias foram distributivistas
- promoviam a desapropriação de grandes latifúndios e seu parcelamento
em lotes familiares.
Nos
anos 50 do século passado foi esse tipo de reforma agrária que entrou
na agenda política do país, proposta apresentada pelas demais forças
progressistas, racionalizada pela CEPAL, sob o argumento do atraso do
setor agrícola e dos seus efeitos no processo inflacionário, e incorporada
pelos governos que "compraram" a ideia do presidente Kennedy,
o qual viu a possibilidade de evitar a propagação da Revolução Cubana
num processo moderado de distribuição das terras dos latifúndios
latino-americanos.
A
proposta de reforma agrária deu ensejo a um intenso debate teórico
em torno do problema da terra. O golpe de 1964 encerrou o debate, o
qual só foi reaberto 20 anos depois, agora sustentado por novas
organizações populares e novos partidos de esquerda. Muitos intelectuais
- inclusive os que hoje a renegam - encarregaram-se de justificá-la
teoricamente.
Não se tratava mais da reforma de 1964, porque os militares, nos seus 20 anos de governo, haviam realizado a modernização do campo sem distribuição massiva de terra, porém a um preço social e ecológico altíssimo. Tratava-se de corrigir essas distorções. Portanto, tratava-se agora de reforma agrária social, destinada a humanizar o capitalismo agrícola e a preservar o meio ambiente.
Não se tratava mais da reforma de 1964, porque os militares, nos seus 20 anos de governo, haviam realizado a modernização do campo sem distribuição massiva de terra, porém a um preço social e ecológico altíssimo. Tratava-se de corrigir essas distorções. Portanto, tratava-se agora de reforma agrária social, destinada a humanizar o capitalismo agrícola e a preservar o meio ambiente.
Hoje
o governo Lula praticamente enterrou esse tipo de reforma agrária.
Por isso os movimentos populares foram levados a radicalizar sua pressão
sobre a terra. Além das ocupações, promoveram marchas, fechamento
de estradas, danificação de pedágios e, ultimamente, danificação
de instalações e plantações de propriedade de grandes agronegócios.
Em uma sociedade anestesiada, incapaz de sensibilizar-se por argumentos
racionais, que se move unicamente pressionada por gestos ostensivos,
tais atitudes se justificam pelo estado de necessidade, pois não há
outra forma de chamar a atenção para o descaso criminoso do governo
com a população rural.
Qual
a leitura a ser feita então a respeito de fatos como a derrubada de
laranjais da fazenda Cutrale; a danificação das mudas de transgênicos
na Syngenta; a ocupação dos latifúndios do banqueiro Dantas no Pará?
Esses
e outros gestos publicitários visam bloquear um processo de reforma
agrária atualmente em plena marcha e, ao mesmo tempo, propor um projeto
alternativo de reforma. O processo de reforma a ser bloqueado está
sendo executado aceleradamente.
Origina-se na contrarrevolução neoliberal dos anos 90 e na nova divisão internacional do trabalho que dela decorreu.
Origina-se na contrarrevolução neoliberal dos anos 90 e na nova divisão internacional do trabalho que dela decorreu.
Essa
nova divisão alterou o lugar da economia brasileira no mercado capitalista
internacional e isto está a exigir a transformação rápida da sua
atual estrutura agrária, a fim de que os grandes agronegócios internacionais
montem uma formidável economia exportadora de quatro produtos altamente
demandados pelas economias que lideram a nova fase do capitalismo -
soja, álcool de cana de açúcar, carne e madeiras.
O
grande capital internacional assumiu por conta própria a realização
dessa reforma e a está implementando, mediante a compra de terras
e de empresas agrícolas, de que é exemplo a compra da Usina Santa
Elisa pelo grupo Dreiffyus.
Por
ação e por omissão, o governo Lula apóia entusiasticamente essa
nova reforma agrária. Por omissão, quando paralisa o raquítico programa
de assentamentos da "reforma agrária social"; por ação:
quando edita leis que permitem legalizar 67 milhões de hectares de
terras griladas na Amazônia, a fim de que os grileiros (convertidos
em proprietários legais) as vendam aos grandes agronegócios para produção
de soja e para criação de gado nessas terras; quando realiza pesados
investimentos na transposição das águas do rio São Francisco, a
fim de criar uma economia exportadora de frutas tropicais, comandada
pelos grandes agronegócios e destinada a países do hemisfério norte;
quando prorroga a entrada em vigor de leis que protegem as florestas.
Requisito
indispensável para o êxito dessa reforma agrária dos ricos é
calar os movimentos sociais do campo, especialmente aquele que, aqui
e no exterior, simboliza a luta da população pobre pela terra: o MST.
O capital transnacional não vai aonde pode correr riscos.
O
serviço que os intelectuais hoje dedicados a desmoralizar o MST prestam
a essa nova reforma agrária consiste em fornecer argumentos pseudamente
racionais para justificar a criminalização desse movimento.
A
outra reforma agrária - a dos movimentos autênticos do campo e das
forças sociais progressistas - visa contrarrestar a reforma concentradora
dos agronegócios e atender às necessidades de 6 milhões de famílias
pobres do campo. Trata-se de consolidar a agricultura familiar - que
responde tanto pela maior porcentagem da produção de alimentos quanto
da oferta de empregos no campo e de desapropriar todos os imóveis de
tamanho superior a 1.000 hectares, a fim de redistribuir essas terras
à população rural sem terra.
O MST e a CPT - Comissão Pastoral da Terra - (órgão da CNBB) levantaram essa bandeira, cabendo às forças progressistas que ainda restam na nação empunhá-la e levá-la adiante.
A estrutura agrária que se formará nesse processo criará a base material requerida para viabilizar um rigoroso processo de zoneamento agroecológico da produção e um programa de descentralização do abastecimento alimentar da população. A prioridade que deverá ser dada a esses objetivos não é incompatível com o aproveitamento da demanda externa pelas "commodities" agrícolas porque o país possui uma enorme quantidade de terras.
Os desertores da reforma agrária, que hoje se ocupam de intrigar a opinião pública contra o MST, não conseguem separar o fato social do movimento político: o MST é um movimento político socialista que, diante do fato social representado pelo conflito fundiário, organiza a luta de uma das partes do conflito - a população rural sem terra - do mesmíssimo modo que a CNA; a bancada ruralista; os partidos da direita; a grande mídia (com matérias escandalosamente facciosas); e os intelectuais a serviço desses interesses organizam a luta da outra parte no conflito: o agronegócio.
O MST e a CPT - Comissão Pastoral da Terra - (órgão da CNBB) levantaram essa bandeira, cabendo às forças progressistas que ainda restam na nação empunhá-la e levá-la adiante.
A estrutura agrária que se formará nesse processo criará a base material requerida para viabilizar um rigoroso processo de zoneamento agroecológico da produção e um programa de descentralização do abastecimento alimentar da população. A prioridade que deverá ser dada a esses objetivos não é incompatível com o aproveitamento da demanda externa pelas "commodities" agrícolas porque o país possui uma enorme quantidade de terras.
Os desertores da reforma agrária, que hoje se ocupam de intrigar a opinião pública contra o MST, não conseguem separar o fato social do movimento político: o MST é um movimento político socialista que, diante do fato social representado pelo conflito fundiário, organiza a luta de uma das partes do conflito - a população rural sem terra - do mesmíssimo modo que a CNA; a bancada ruralista; os partidos da direita; a grande mídia (com matérias escandalosamente facciosas); e os intelectuais a serviço desses interesses organizam a luta da outra parte no conflito: o agronegócio.
Para
que o debate sobre as duas reformas agrárias seja racional, é preciso
pôr de lado a impostura da imparcialidade.
Este
analista toma partido - está do lado dos sem-terra - e é deste ponto
de vista que interpreta racionalmente a realidade do campo. Quem diz
não estar de lado nenhum, mas do lado do Brasil, não está dizendo
a verdade: o Brasil não tem lado no conflito agrário, porque é impossível
realizar uma reforma que atenda ao mesmo tempo quem quer a concentração
e quem quer a desconcentração da propriedade rural.
Contudo
há uma crítica a ser feita à ocupação da fazenda da Cutrale.
Segundo a empresa, os ocupantes destruíram 7.000 pés de laranja. Erraram:
deviam ter destruído 70 mil (o que nem seria muito notado numa fazenda
de 1 milhão de pés) a fim de chamar mais a atenção para o fato de
que essa fazenda ocupa ilegalmente terras públicas com a conivência
do Poder Judiciário.
Muito
mais do que 70 mil são as vidas de crianças estão sendo destruídas
pelo desemprego agrícola; pelos salários escandalosamente baixos dos
trabalhadores rurais; pela precariedade das habitações rurais - fonte
de doenças que destroem vidas.
O MST está certíssimo na sua tática de luta. Só lhe falta proclamar com maior vigor e clareza a cumplicidade de Lula na reforma agrária do agronegócio e cobrar mais apoio dos partidos de esquerda, das igrejas, da universidade, dos ecologistas (que precisam sair de cima do muro e assumir a luta camponesa), bem como exigir do Poder Judiciário e do Ministério Público, cujos juízes e promotores permitem o protelamento indefinido ações de desapropriação e não fiscalizam as violências policiais cometidas contra os lavradores nas reintegrações de posse, o cumprimento de suas obrigações.
O MST está certíssimo na sua tática de luta. Só lhe falta proclamar com maior vigor e clareza a cumplicidade de Lula na reforma agrária do agronegócio e cobrar mais apoio dos partidos de esquerda, das igrejas, da universidade, dos ecologistas (que precisam sair de cima do muro e assumir a luta camponesa), bem como exigir do Poder Judiciário e do Ministério Público, cujos juízes e promotores permitem o protelamento indefinido ações de desapropriação e não fiscalizam as violências policiais cometidas contra os lavradores nas reintegrações de posse, o cumprimento de suas obrigações.
O
MST deve cobrar: a população rural é credora e não devedora.
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