Pois bem, hoje o trânsito esteve um pouco mais caótico do que o normal em Belo Horizonte. Esse caos, como de costume, veio acompanhado de muito barulho, fosse de buzinas ou de reclamações. Em sua raiz, porém, para além do barulho e da carência tanto de uma engenharia de tráfego quanto de reformas adequadas no sistema de transportes da cidade, estava presente um silêncio. Estava presente o silêncio histórico de uma sociedade apática, acomodada e mal acostumada à democracia. O velho silêncio dos bestializados e dos filhos do pai dos pobres. O tão falado silêncio da sociedade brasileira do qual tanto se reclama, desde a sofisticada tradição dos intérpretes do Brasil até os panos de fundo e lugares-comuns de discussões mais descontraídas sobre o que seria esse mesmo Brasil.
O problema é que o silêncio sempre pode advir tanto de uma dificuldade de falar quanto de uma incapacidade de ouvir. No caso do trânsito caótico desta quinta-feira, dia 13 de maio (!) de 2010, mais do que nunca esse silêncio não é fruto da dificuldade de falar. Desde o início da semana, movimentos ligados à luta por moradia, ou melhor, pessoas ligadas à luta por moradia encontram-se acampadas na Praça Sete. Fruto de uma organização maior que já dura certo tempo e que se materializa em ocupações pacíficas de áreas que claramente não cumprem os ditames constitucionais acerca do uso da propriedade imóvel, esse acampamento, igualmente pacífico, tem por objetivo uma audiência com o governador do Estado. Até o presente momento, essa audiência, nos termos requeridos por aqueles e aquelas que se encontram acampando, não foi concedida. O que até agora prevaleceu foi mais uma vez o silêncio, mais uma vez o silêncio como incapacidade de ouvir, como dificuldade imensa de se abrir às práticas democráticas já presentes no seio da sociedade brasileira.
Reconstruções historiográficas recentes e mais refinadas dos pontos de vista epistemológico e metodológico têm mostrado que é esse mesmo silêncio que está à base dos famosos estereótipos da sociedade pacata (?) brasileira, uma sociedade que tem, sim, lutado ao longo do tempo, ainda que da maneira fragmentada como ocorre em qualquer sociedade do mundo, pelo controle do seu próprio destino, mas cujas lutas têm sido transformadas em silêncio exatamente pelas dificuldades de audição daqueles que as interpretam e contra quem elas se voltam. Uma vez mais, é de silêncio que se trata, de silêncio como negação da audiência, como negação do ouvido, e, portanto, como olvido das exigências internas à construção da democracia.
Não é muito o que aqueles e aquelas que estão acampados e acampadas pedem. O pedido é para que sejam recebidos, escutados. Mas talvez por ser só isso é que seja um pedido tão grande e tão difícil de conceber.
O apelido da Constituição de 1988 como Constituição cidadã não é de hoje que tem sido usado com uma marcante dimensão retórica. Como qualquer lugar retórico, se, por um lado, tem sua força, por outro lado traz também consigo os riscos dos usos pervertidos e perversos. Qualquer que seja o caso, é necessário lembrar que, no mesmo discurso em que se consagra a Constituição cidadã, a ela também se refere como Constituição coragem. É no mínimo estranho, talvez sintomático, que esse segundo apelido raríssimas vezes tenha sido recordado. Coragem pode dizer muita coisa, e, por isso mesmo, pode ao mesmo tempo dizer nada. Mas, quanto à democracia, coragem diz exatamente sobre a possibildade de dizer. Não apenas de dizer, mas de dizer e ser ouvido.
Peço para que repassem esta mensagem. Os que concordam, acrescentando argumentos ao que aqui certamente aparece de forma parcial e imperfeita. Os que não concordam, dizendo que não concordam e por que não concordam, pois é fundamental poder não concordar, poder dizer que não se concorda e ser ouvido quanto a isso. Qualquer que seja o caso, por favor, divulguem. Ainda que não seja este e-mail, mas que seja este caso. O caso de um silêncio que não é ausência de fala e de grito, mas que é um silêncio como não-audiência, um silêncio como aquilo que não se escuta.
Se tantas vezes assumimos uma postura crítica, como se deve de fato fazer, em face da sociedade civil brasileira, parece ser no mínimo coerente que participemos dos embates concretos que nela se desenvolvem e que vêm justamente - se derivações da palavra justo, ou correlatas, puderem ser aqui usadas - se contrapor a visões arraigadas de um povo supostamente ausente de seus próprios caminhos. Um povo que, definitivamente, não está tanto mais à espera do país do futuro ou do messias político redentor da História, mas se encontra comprometido com a construção do projeto constituinte do Estado Democrático de Direito, ainda que a isso não dêem esse nome. Um projeto que, como projeto, se é verdade que se lança inevitavelmente ao futuro, não é menos verdade que já começou.
Que seja concedida a audiência.
Um abraço,
David Francisco Lopes Gomes
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