A Ocupação Dandara, hoje Comunidade Dandara, começou muito antes da minha chegada no local onde geograficamente está situada: Bairro Céu Azul, região Nova Pampulha, em Belo Horizonte, MG. Na proporção em que fui me envolvendo com Dandara fui conhecendo melhor sua história de concepção, seus precedentes, seu projeto, suas estratégias. Então me dei conta de sua grande dimensão: “ampliar a participação popular organizada nas lutas econômicas e políticas desde o nível local até o nível nacional”, o que é um dos objetivos estratégicos das Brigadas Populares, legítimo movimento social que ajuda a organizar os pobres na luta pelos seus direitos.
Um aspecto, logo nos primeiros dias de participação na Ocupação, me chamou atenção: a) a “aliança” dos movimentos sociais: Brigadas Populares, MST e o Fórum de Moradia do Barreiro; b) A proposta de uma Ocupação Rururbana (a troca de experiências entre sem-terra e sem-teto); c) A abertura para acolher os apoiadores (religiosos, instituições, comunidades, igrejas....), o que foi desencadeando uma rede de solidariedade e a necessidade de convocar as pessoas para planejar o apoio e cuidar dos métodos tendo em vista o objetivo da ocupação que não era simplesmente conquistar uma casa para morar.
Eu estava no último ano do Curso de Direito e depois de haver feito todos os “estágios oficiais” que o curso exigia, de participar de grupo de pesquisa sobre Direitos Humanos, sobretudo o Direito à Moradia, iluminado pela experiência de ocupação da Comunidade do Morro do Taquaril, em Belo Horizonte, onde fiz a parte prática de minha pesquisa, dei-me conta que estava numa escola prática e interdisciplinar de luta por direitos.
Não se tratava de um morro ou aglomerado como os que eu já havia “passado”, como foi o caso do Morro Nova Conquista/Palmital (em Santa Luzia), A Vila Mãe dos Pobres (no Céu Azul), Morro do Vidigal (no Rio de Janeiro) e o Morro do Taquaril (em Belo Horizonte) com todas as dificuldades de planejamento urbanístico e de localização que estas realidades apresentavam. Agora estava diante de uma Ocupação onde os pobres escolheram uma das áreas “nobres” da Capital. Região da Pampulha em Belo Horizonte. Por que não? Ousadia e consciência dos direitos! Um jeito concreto de arrastar o princípio da função social da propriedade da Constituição brasileira e trazer para a vida de um povo que necessita de moradia, direito social fundamental, também constitucionalmente garantido.
Aprendi no Direito (CPC art. 926) que “o possuidor (da propriedade) tem direito a ser mantido na posse em caso de turbação e reintegrado no (caso) de esbulho”. No primeiro caso o possuidor poderá entrar com uma “ação de manutenção de posse” e, para o segundo caso, “ação de reintegração de posse”. A ação judicial que tem o povo da Dandara como “réu” e a Construtora Modelo, que se diz proprietária e possuidora da área, como autora.
Logo que a autora da ação tomou conhecimento da Ocupação Dandara, entrou com uma “ação de reintegração de posse”. Sentiu-se, portanto, esbulhada (roubada, privada da posse). Só que para a doutrina majoritária e jurisprudencial brasileira, “posse é fato”. Como comprovar isto quando se trata de uma propriedade que há mais de 30 anos estava abandonada e sem cumprir a função social, requisito indispensável pela Constituição brasileira, Lei Magna, (art. 5º XXIII) para garantir o direito de posse e propriedade?
Outra questão, também defendida pela doutrina majoritária é que “o direito de propriedade não pode sobrepor-se ao direito à moradia”. A moradia é um direito social humano, assegurado constitucionalmente, (art. 6º CF/88), embora milhões de brasileiros, após mais de 20 anos de uma Constituição que lhe garante isto, não têm acesso a uma moradia digna.
A luta da Dandara vem me mostrando “quão grudadas ainda estão as leis no papel” e quão distantes estão as decisões judiciais das necessidades dos pobres. Quanto mais alta a instância judicial, mais longe está da dor sofrida pelo povo por causa das injustiças sociais. Vou percebendo que há mais de 20 anos atrás uma geração lutou e muitos morreram para termos escrita uma Constituição cidadã e democrática, que garantisse direitos humanos sociais e fundamentais e que agora, nossa geração é chamada a trazer esta constituição para a vida do povo. Precisamos dar a conhecer nossas leis aos injustamente marginalizados. Ajudá-los a lutar para transformar a própria história de dor e injustiças tendo em vista garantir a efetividade de nossas leis, interpretá-las com humanidade e revogar as imoralidades que legitimam a criminalização dos pobres e dos movimentos sociais populares. Este processo, vejo emergir na Dandara!
Fui percebendo aos poucos e hoje estou certa de que a Ocupação Dandara é uma “escola” onde todas as pessoas que, direta ou indiretamente, se envolvem com ela estão aprendendo. Lugar de humanização. Uma terra sagrada onde se deve retirar as sandálias, descalçar-se, aguçar o ouvido e abrir o coração para, através da luta daquele povo, deixar-se humanizar.
Vejo-me o tempo todo em uma verdadeira “escola” de direitos, onde a luta pelo Direito à moradia desencadeou um processo de luta por muitos outros direitos, todos fundamentais, como a saúde, a educação, alimentação, liberdade de ir e vir, direito à paz e ao sossego, ao respeito, ao lazer. Todos, tantas vezes brutalmente desrespeitados naquele local e tão resistentemente reivindicados.
Passado um ano de minha simples presença na Dandara me vem uma forte pergunta como quem busca conversão: o que mudou em mim? O que tem crescido em meu processo de humanização? Qual é o legado de Dandara para minha vida? Então, percebo que muito mais que mudanças, muitas coisas se confirmaram para/em mim.
Primeiro, a convicção interna de que o chamado do Deus da Vida é pessoal e o compromisso com os pobres supõe ousadia e liberdade. Supõe assumir as conseqüências da opção, pois o grito dos pobres é tão urgente que não pode esperar nossas consultas hierárquicas e estruturais. O Grito de Dandara não me esperou consultar a provincial, a superiora, a comunidade... era um grito de Deus para mim, um apelo de emergência. Rasgou meu espaço interno e lançou-me uma vez mais para fora dos muros que cercam a casa onde “moro”.
Outra confirmação é que devo chegar junto aos pobres como companheira de luta. Não como a irmã, a advogada ou com outro título qualquer. Assumir isto na hora certa se for preciso, mas pela defesa da luta. (Isso fiz algumas vezes na Dandara diante de alguns policiais e suas truculências no abuso do poder), mas a postura tem que ser a de quem desce, retira as sandálias, deixa-se sujar pela terra e queimar-se pelo sol, partilhando alegrias e aflições com os pobres que lutam. A de quem busca aprender junto e, coletivamente, encontrar as saídas para fortalecer a luta e a organização popular.
A atitude básica tem que ser a de facilitadora do processo, de quem promove, de quem não tem nem a resposta e nem o método pronto. Chegar com o coração aberto para escutar e valorizar o que brota da vida.
Possibilitar a promoção das pessoas. Ajudar a que as lideranças internas desabrochem e assumam a coordenação do processo de libertação do povo. A Coordenação interna tem que aparecer e ser reconhecida com igual respeito e dignidade como são recebidos os advogados/as, os desembargadores, os religiosos/as, os apoiadores. Lutar para que sejam superados os preconceitos como foi no dia do julgamento na Corte Superior (?) do Tribunal de Justiça do Estado de MG em que o povo de Dandara ficou de fora simplesmente porque era da Dandara. Discriminação intolerável!
Tenho aprendido que o trabalho em parcerias e redes está muito além dos projetos de comunidades intercongregacionais, sem retirar a devida importância disto para a Vida Religiosa atual, mas que, como Vida Religiosa precisamos ser articuladores da solidariedade e isto podemos fazer desde o lugar onde está o nosso coração. Precisamos superar os preconceitos e somar com todas as iniciativas que fortalecem a soberania, o poder popular e construa oposição ao neoliberalismo e ao capitalismo que é uma máquina de moer vidas. Ocupar os espaços públicos junto com o povo, reivindicar e recriar as nossas leis para que sejam mais humanas e efetivas em suas aplicações na defesa da justiça social, da dignidade humana e planetária.
Estou certa que temos que ir às ruas com o povo, participar de suas manifestações e reivindicações. Sair do lugar confortável que muitas vezes a Vida Religiosa nos oferece. Perguntar-nos: Por que não estou envolvida com a luta pela moradia, pela educação pública, pela saúde pública, pelo transporte coletivo, pela valorização dos professores, pelo limite da propriedade privada, pela defesa dos ribeirinhos, dos atingidos por barragens e grandes usinas hidrelétricas? Por que não estou na luta em defesa dos direitos humanos, pelos projetos de políticas públicas, pela defesa da juventude? Da mulher que sofre violências e explorações de todo tipo? Não será porque utilizamos poucos os espaços públicos? Pertencemos à classe dos que utilizam os benefícios privados? Estou convencida de que nestes espaços de luta podemos nos encontrar com o Deus de Jesus, o Deus dos pobres.
Também tenho me encontrado na Dandara com um pequeno grupo de Vida Religiosa profética. Ali, sem precisar morar em uma mesma comunidade “inter”, formamos uma comunidade com as nossas presenças. Somamos... sofremos juntos, nos alegramos, duvidamos, passamos por medos, sorrimos e choramos com o povo. Tenho aprendido que inserção está para além do lugar geográfico onde moramos. Está no coração. Onde nossos pés pisam e onde nossas mãos tocam. Para onde, durante o dia e muitas vezes durante a noite, vai boa parte dos nossos pensamentos e de nossas energias. Por que quando pensamos inserção logo pensamos na estrutura, na construção da casa para morarmos ou alugar (junto dos pobres, é claro!), se os pobres ainda lutam pelo pedaço de terra, pelo direito de se organizar e se expressar?
Elencaria muitas outras coisas acrescentadas em minha vida através de Dandara, mas fico por fim, com a grande convicção de que a grande saída para superarmos as opressões em nosso país e em nosso mundo é a organização popular. E nós, Vida Religiosa, temos que descer para aprender com o povo pobre que se organiza e que luta pela construção de instrumentos de participação e controle popular sobre o Estado.
Povo que luta para apoderar-se e participar das esferas de decisões políticas, jurídicas e religiosas. Enfim, participação e controle de todas as decisões que de alguma maneira reflitam na vida de cada um e cada uma. Assumir, afinal, o Poder Popular, pois é a nossa Constituição brasileira que afirma: “Todo poder emana do povo...” (& único, art. 1º). Creio que Jesus de Nazaré teria esta postura hoje. Ele que contou com os pequenos e sofredores como principais parceiros na missão.
Por fim, para responder à questão “o que mudou em minha vida pessoal a partir de Dandara?” respondo com convicção: sinto-me mais livre e mais humana, embora consciente do muito que ainda preciso crescer nestas dimensões. Tenho conhecido um Deus Companheiro ao lado de muitos companheiros e companheiras de luta e creio que a opção pelos pobres da maneira como tenho vivido em Dandara tem me levado a fazer verdadeiras experiências deste Deus. Experiência que passa, necessariamente, pela paixão morte e ressurreição. Tudo isto supõe crises, dores e alegrias e eu tenho vivido isto. Eu escutei, desci e vi muitos “gritos” do povo de Dandara, mas também eu escutei, desci e vi “um arco-íris sobre Dandara”. Sigo em frente como povo e com o povo, porque continuo vendo “arco-íris” sobre as Dandaras da vida.
Belo Horizonte, 08 de maio de 2010. Para conhecer mais sobre Comunidade Dandara, vá visitá-la e consulte www.ocupacaodandara.blogspot.com
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