sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

As revoluções reaparecem no século 21

A revolta popular derrubou Mubarak, mas o aparato de Estado se mantém intocável e aposta todas as suas fichas em desmobilizar o povo

16/02/2011

Editorial Ed. 416
 
A velha toupeira segue ativa e as revoluções reaparecem no século 21, novamente causando surpresas pela energia que liberam e pela força do exemplo que não respeita fronteira. Retomam como um processo, onde cada vitória amplia os horizontes e coloca problemas mais complexos aos seus protagonistas.


É cedo para prever os desdobramentos dos processos revolucionários desencadeados na Tunísia e no Egito, mas algumas conclusões já podem ser feitas. A primeira é a dimensão do impacto causado pela multidão determinada a derrubar um governo, despertando a solidariedade mundial, avançando aceleradamente na auto-organização independente, produzindo diariamente novas lideranças. Só o processo das experiências históricas dos próximos meses dirá quais perspectivas se abrirão. Mas já não restam dúvidas: estamos diante de revoluções populares.


Situação revolucionária


Os clássicos ensinam que uma situação revolucionária se constitui quando os de cima não podem dominar como antes e os de baixo já não querem ser dominados como antes. Foi o que assistimos nos últimos dias. A multidão reunida na praça Tahrir (ou Libertação) no centro do Cairo fortalecia sua autoestima a cada dia. As ordens policiais para acabar com a ocupação da praça eram impotentes. O decreto de toque de recolher apenas ampliou a mobilização. Em pouco tempo as manifestações se espalharam nas grandes cidades como Alexandria, Suez, Port Said, se estendendo a todos os cantos do país. Nos últimos dias que antecederam a queda de Mubarak, o movimento operário entrou em cena e a explosão de greves alterou a correlação de forças. Trabalhadores do canal de Suez, da saúde, dos transportes e telecomunicações do Cairo entraram em greve, paralisando a nação. Toda essa força social acarretou divisões nas fileiras do Exército.


A confraternização popular foi decisiva para soldados rasos e a oficialidade média descumprirem ordens de repressão. Como narrou Robert Fisk: “Os soldados que conduzem os tanques, em uniforme de combate, sorridentes e às vezes aplaudindo os passantes não fizeram qualquer esforço para apagar das laterais dos tanques os grafites ali pintados com tinta spray. ‘Fora Mubarak! Caia fora, Mubarak!’ e ‘Mubarak, seu governo acabou’ aparecem grafitados em praticamente todos os tanques que se veem pelas ruas do Cairo”.


Porém, existe ainda um terceiro elemento para caracterizar uma situação revolucionária: o súbito agravamento das condições de vida das massas. O Egito encerrou 2010 com desemprego a 20%. Em 2007, o mesmo número era de 10,1%. Já a inflação chegou a 11,9 % em 2010, enquanto em 2007 estava em 6,5%. Mais uma vez, foi porque se sentiram ameaçadas ao verem suas condições materiais de existência se deteriorarem ainda mais que as grandes multidões se levantaram no Egito. Não se trata do agravamento contínuo das desigualdades sociais, mas de súbitas mudanças que abrem as condições para a disposição revolucionária. Nos últimos anos, o desespero social na região é tamanho que se tornou quase habitual a autoimolação de jovens em protesto contra as condições de existência. Basta lembrar que o estopim da atual onda de lutas foi o autossacrifício, pelo fogo, em 17 de dezembro de 2010, do jovem tunisiano Mohamed Bouazizi, informático desempregado, de 26 anos, após ser esbofeteado e humilhado pela polícia, que confiscou suas mercadorias de camelô.



Bandeiras populares avançam


Confirmando as revoluções do século 20, o processo desencadeado na Tunísia e no Egito ganha força em torno de bandeiras democráticas e populares que se desdobram em reivindicações salariais e econômicas. Derrubado o governo Mubarak, o imperialismo e a burguesia egípcia pressionam pela desmobilização popular. E o maior desafio se coloca. Haverá organização política capaz de apontar uma perspectiva de poder?


Embora venha perdendo espaço na juventude, a principal força social organizada no Egito segue sendo a Irmandade Muçulmana. É certo que um sindicalismo classista e independente se conformou nas grandes mobilizações contra o apoio, em 2000, do governo egípcio a Israel, e à invasão do Iraque, em 2003; nas greves de trabalhadores no Delta do Nilo, após dezembro de 2006; nas chamadas mini-intifadas, em Borollos e Muhalla, em 2008. Contudo, ainda é cedo para analisar a força dessas organizações.


Não nos esqueçamos da Revolução Iraniana. Ainda que a unidade se dê contra o regime ditatorial e o imperialismo que o sustenta, o antagonismo entre a esquerda e os grupos islâmicos fundamentalistas irá se colocar ao longo do processo. Por maior que seja a consciência social e o sentimento anti-imperialista adquiridos no processo, são inevitáveis os confrontos entre os projetos do integralismo islâmico e das organizações de esquerda. A história recente tem demonstrado que a ascensão do islamismo fundamentalista acarreta o desaparecimento da esquerda secular nos países muçulmanos.



O papel dos militares no Egito


As forças armadas têm sido a força dominante no Egito desde a queda da Monarquia em 1952. A influência dos EUA foi decisiva nas últimas décadas. Ocupando o 10º posto entre as forças militares do mundo, possuem um contingente de 468 mil militares e um orçamento de 3,4% do PIB. Receberam nas últimas três décadas cerca de 30 bilhões de dólares em ajuda dos EUA, além de enviar seus oficiais para estudar em colégios militares ianques. Documentos do Departamento de Estado de 2009, divulgados pela WikiLeaks, descrevem um encontro entre um general dos EUA e o Alto Comando egípcio, revelando o grau de cumplicidade: “O presidente Mubarak e seus líderes militares veem o nosso programa de assistência militar como a pedra angular da nossa relação e consideram os bilhões de dólares como compensação intocável para fazer e manter a paz com Israel e em troca os militares dos EUA gozam de prioridade de acesso ao Canal de Suez e ao espaço aéreo egípcio”.
O Exército egípcio controla diversas empresas. Segundo algumas estimativas, os militares chegam a controlar por volta de 30% da economia do país.


Todo este cenário demonstra que os comandos militares não possibilitarão nenhuma mudança estrutural e cerrarão fileiras para sustentar a relação com os EUA e Israel.


A revolta popular derrubou Mubarak, mas o aparato de Estado se mantém intocável e aposta todas as suas fichas em desmobilizar o povo.



O imperialismo derrotado


A derrubada revolucionária de Mubarak é uma contundente derrota histórica dos EUA e de Israel na região, mesmo que a Junta Militar egípcia proclame a disposição de manter os repudiados tratados de paz com Israel e assegurar-lhe o fornecimento de gás (o Egito é responsável pelo fornecimento de quase metade do gás consumido em Israel). Recordemos que durante a guerra do Golfo (1990-1991), o Egito se posicionou ao lado dos EUA, contra o Iraque. Em 1993, participou da mediação do acordo entre Israel e a Organização de Libertação da Palestina (OLP), assinado em 1993 e criticado por grupos palestinos como o Hamas e países como a Síria.


Ainda é cedo para prever os desdobramentos das revoluções na Tunísia e no Egito, mas o século 21 mostra sua força e desmente os céticos que apostavam no f m das revoluções.

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