terça-feira, 5 de abril de 2011

Ninguém manda na polícia

CHAME O LADRÃO
Ninguém manda na polícia

Por Mauro Malin em 29/3/2011


"Ninguém manda na polícia": assim o professor da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (Uerj) Jorge da Silva, coronel da reserva da
Polícia Militar do Rio com extenso currículo na área de segurança
pública e direitos humanos, resume cinco décadas de vivências
profissionais e reflexões acadêmicas.

"Seja Polícia Militar, Polícia Civil, a polícia faz o que quer. Na
Constituição de 88 perderam a oportunidade de resolver isso. Ao
contrário. Criaram um monstro: constitucionalizaram as polícias, coisa
que não existia anteriormente. Os estados podiam organizar suas
polícias dessa ou daquela forma. Deram às polícias uma autonomia que
não se cumpre em benefício do Estado nem da população. São corporações
que vivem para si mesmas, e para quem fizer o que elas querem."

A conversa prossegue. "Você sabe qual é a definição de líder, não é?",
pergunta entre risos Silva. A resposta sai após alguma hesitação, já
se sabendo que está a caminho algum desafio ao senso comum: "Alguém
que tem ascendência sobre os outros, que comanda, que...". "Nada
disso, você está errado! Líder é aquele que segue a maioria... As
pessoas imaginam que líder é aquele a quem a maioria segue. Não. Líder
é aquele que segue o que a maioria quer. Na área da polícia é mais ou
menos isso. Só lidera a polícia quem faz o que ela quer."

"Mas o coronel (Carlos Magno Nazareth) Cerqueira não fez o que a
maioria queria, quando comandou a PM" (1983-86 e 1991-94, governos de
Leonel Brizola no Rio de Janeiro).

"Você sabe muito bem que o coronel Cerqueira não liderou a polícia,
porque a polícia não quis ser liderada por ele. A rejeição a ele e a
mim foi sempre muito grande. Nós não conseguimos liderar nada, porque
nós queríamos um outro caminho. O que eles queriam era sair por aí
matando, fazendo arbitrariedades, e nós tentávamos controlar. Quem
tenta controlar a polícia está feito. Não lidera nada".

Cerqueira, assassinado em 1999 por um sargento que também foi morto,
queria uma polícia militar inteligente, que deixasse para trás a
concepção do povo como inimigo interno. Foi derrotado. Ele e muitos
outros, nas polícias civil e militar de vários estados do Brasil. Os
adeptos da truculência dão as cartas. Herança em linha direta da
ditadura. Em muitos casos, a violência é ferramenta de "trabalho".
Caso notório, sobre o qual, depois de Tropa de Elite 2, é
desnecessário estender-se: "milícias" no Rio de Janeiro.

"Matadores do 18" (18º Batalhão da PM-SP)

Outro episódio exemplar (no mau sentido). Reportagem de André
Caramante na Folha de S. Paulo (25/3):

"Relatório da Polícia Civil paulista aponta grupos de extermínio
formados por PMs como responsáveis pelo assassinato de 150 pessoas na
capital entre 2006 e 2010.

[...] A investigação, a cargo do DHPP (Departamento de Homicídios e
Proteção à Pessoa), aponta dois grupos de extermínio de PMs: um da
zona norte, outro da zona leste.

Cerca de 50 PMs são suspeitos de formar e unir os grupos para assumir
o controle do tráfico de drogas e explorar jogos de azar.

O grupo da zona norte é conhecido como ‘Matadores do 18’, pois os
acusados atuavam no 18º Batalhão. Esses PMs são suspeitos da morte, em
2008, do coronel José Hermínio Rodrigues, comandante da PM na área.

[...] Doze mortes atribuídas ao grupo de extermínio ‘Os Highlanders’,
que decapitava as vítimas, não estão no relatório. Esse terceiro grupo
jogava os corpos em Itapecerica da Serra, na Grande São Paulo, segundo
investigações. O relatório da Polícia Civil computou só mortes na
capital."

Exterminadores goianos

Veja-se também o que acontece agora em Goiás. Depois da repercussão de
denúncias a respeito de um grupo de extermínio constituído por
oficiais (inclusive o subcomandante, coronel Carlos Cézar Macário, e
um tenente-coronel, Ricardo Rocha Batista) e soldados da PM, a sede do
jornal O Popular, de Goiânia, foi alvo de tentativa de intimidação por
parte da Rotam (Ronda Ostensiva Tático Metropolitana), versão local da
Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar) paulista. Trinta PMs em oito
viaturas passaram em frente ao prédio do jornal com as sirenes
ligadas. O comandante da Rotam foi destituído e a tropa proibida de ir
às ruas, à espera de uma reestruturação.

A jornalista Cileide Alves, editora-chefe do O Popular, descreveu
esses episódios gravíssimos neste Observatório em "Barra-pesada no
jornalismo goiano". Foram relacionadas 117 mortes apenas entre 2003 e
2005. O grupo, apontam as autoridades federais, tinha mais de dez anos
de existência.

Na quinta-feira (24/3), a PM-GO revelou que policiais militares foram
emboscados na periferia da capital por bandidos que os desarmaram e
torturaram. Em certo momento, um dos bandidos teria dito: "A partir de
agora Goiânia não será mais a mesma". Pouco depois, o comando da
segurança pública anunciou que a Rotam voltaria às ruas, sem dizer
quando.

A peleja dos direitos humanos contra a lei do cão

No domingo (27/3), o jornal O Popular publicou entrevista com a
secretária nacional de Direitos Humanos da Presidência da República,
Maria do Rosário Nunes (republicada no blogue Educar sem violência). O
título foi "Julgamento de PMs pode ser federalizado". A secretária
menciona que o jurista Dalmo Dallari, colaborador deste Observatório,
teve papel decisivo na aceitação da denúncia contra o grupo de
extermínio goiano.

O jornal abriu no Facebook um canal para manifestação de leitores.
Predominaram questionamentos – formalistas, se poderia dizer – às
posições de Maria do Rosário (ver "Face a Face"). Pouco ou nada a
respeito da gravidade e da torpeza dos crimes de que são acusados os
policiais.

Note-se, a propósito, quão ilusória é a ideia de que redes sociais na
internet e conexos vieram ao mundo para abrigar apenas pessoas
imbuídas das melhores e mais cândidas intenções cívicas. Revolução
tecnológica não muda ideologias, afinidades, idiossincrasias,
preconceitos, falta de caráter. Como já se disse tantas vezes: o que
existe no "mundo real" existe no "mundo virtual".

Major Araújo, paladino do corporativismo

Um dos corifeus do corporativismo policial-militar goiano é o deputado
estadual Major Araújo. Eis o resumo da trajetória do deputado
publicado no saite da Assembleia Legislativa de Goiás:

"Júnio Alves Araújo, conhecido como Major Araújo, é presidente
reeleito da Associação dos Oficiais da Polícia e Corpo de Bombeiros
Militar de Goiás (Assof), desde 2005. Liderou a comissão integrada
pelas associações militares que negociou com o Governo a aprovação do
Plano de Carreira de sua categoria e o regime de subsídio como nova
forma de remunerar os militares goianos. A implantação do regime de
subsídio recompôs o salário dos policiais e bombeiros militares,
corrigindo distorções históricas.

Representante da Polícia Militar de Goiás e do Corpo de Bombeiros,
Major Araújo foi eleito suplente de vereador de Goiânia, em 2008.
Major Araújo assumiu a titularidade do cargo de vereador em setembro
de 2009, até sua posse como deputado estadual.

Esta foi a segunda vez que tentou se eleger deputado estadual. Na
última campanha eleitoral [2010], foi escolhido pelo candidato a
governador Marconi Perillo (PSDB) para ser o responsável pela
mobilização de todas as associações e entidades de Segurança Pública
em torno da candidatura tucana."

Major Araújo tomou posição veemente em defesa dos PMs presos na
operação da Polícia Federal. Algumas de suas manifestações no Twitter
são reproduzidas abaixo, pelo método de copiar e colar, ou seja, sem
retoques. Os tópicos estão, claro, em ordem cronológica invertida.
Ressaltem-se as palavras agressivas dirigidas à imprensa e a
jornalistas:

DepMajorAraujo

** Não permitiremos que ‘cobras’ se camuflem de jornalista destruir
Goiás. Essa classe é muito importante para contar com certos tipos....

** Enquanto voces vendem seus jornais, a sociedade clama por segurança.

** Parabéns a vocês imprensa marrom, ou melhor vermelha de sangue e de
vergonha. A sociedade não pagará por suas vaidades.

** Enquanto interesses escusos são atendidos, policiais e cidadão de
bem são mortos por bandidos.

** Massagear o ego de alguns não traz a certeza de que precisamos. A
imprensa tem um papel importante, mas tem que séria e para a
sociedade.

** O cidadão merecem ter segurança.Tenho certeza que alguns ditos
jornalistas não são capazes de faze-los. Precisamos de nossas tropas
de elite

** Não podemos permitir que a sociedade goiana sofra, enquanto pseudos
intelectuais se escondem em seus condominios fechados.

** Enquanto isso a sociedade goiana clama por socorro! Pelo amor de
Deus, a ROTAM precisa estar nas ruas.

** Acredito que isso deve ser motivo de orgulho para muitos veículos
de comunicação. Há editores que devem estar soltando foguetes.

** Os PMs foram rendidos suas armas e coletes foram roubados e o pior:
Todos foram algemados. Entre as viaturas estava um tenente Cmt.
Patrulha

** Duas viaturas do 28 CIA foram abordam um carro roubado e foram
surpreendidos por 7 meliantes fortemente armados.

** Está aí o que muitos queriam. Estão tentando ridicularizar a PM.
Nem os bandidos estão respeitando."

Um governador silente

No estágio atual das coisas, um dos fatores que poderiam restabelecer
minimamente algum tipo de controle sobre a Polícia Militar de Goiás
seria um pronunciamento firme do governador do estado, Marconi Perilo,
em defesa da ordem democrática. Perilo se manifestou no dia em que a
Rotam tentou intimidar O Popular (3 de março; "o estado democrático de
direito será mantido em Goiás") e depois não disse mais nada a
respeito do assunto.

Agora, leitor distraído, se você até aqui não estabeleceu uma conexão
esclarecedora a respeito da discrição do governador, volte alguns
parágrafos e releia a minibiografia do Major Araújo. E saiba também
que o coronel Macário, ex-subcomandante da PM-GO preso na "Operação
Sexto Mandamento", foi nomeado para a função após a posse de Marconi
Perilo, em 1 de janeiro.

É difícil ser jornalista sob permanente hostilidade dos encarregados
de zelar pela segurança pública.

Ninguém manda na polícia.

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