quinta-feira, 8 de março de 2012

O estigma da maconha e o preconceito contra os negros


Por Bobo Tafari
A criminalização da planta Cannabis Sativa_ único vegetal cuja existência é proibida por lei_ talvez seja o maior exemplo de uma decisão exclusivamente política. Tal restrição não possui base em nenhum estudo científico comprovado e foi historicamente utilizada para o controle de populações urbanas pobres, denominadas “classe perigosa” _ no Brasil, compostas por africanos e seus descendentes, caracterizando claramente um caso de Racismo Institucional.

Embora a temática droga esteja presente cotidianamente na vida das pessoas, a grande maioria compartilha de pontos de vista baseados em informações distorcidas, tal fato deve-se ao esforço de órgãos governamentais fortemente influenciados por grupos econômicos comprometidos com a ideologia estadunidense e com a não divulgação de resultados de pesquisas_ mesmo aquelas encomendadas pelo próprio Estado_ que não ratifiquem a nocividade das drogas em geral, e especificamente da maconha. “A repressão às drogas e a uma suposta criminalidade organizada, serve de pretexto para a produção de leis que se afastam de princípios garantidores da cidadania, em claro desrespeito a normas constitucionais, sem que sofram maiores questionamentos, quer por parte do conjunto da sociedade, quer por parte dos operadores jurídicos”.

A lei 11.343, de 23 de Agosto de 2006, institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas_ Sisnad, cujas funções são prescrever medidas para a prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas, estabelecer normas para a repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas, define crimes e dá outras providências.

Talvez, o primeiro equívoco desta lei esteja na própria definição do seu objeto, Drogas, que, de acordo com o enunciado, seria toda a substância inclusa em uma lista a ser atualizada pelo poder executivo da União, sem nenhum parâmetro pré-estabelecido claramente por nenhum organismo de saúde do Estado_ ANVISA_ alocando em uma mesma categoria generalizante substâncias diversas tanto em seus princípios ativos como em seus efeitos. Pesquisas científicas, tanto internacionais quanto nacionais relativas ao uso da Cannabis Sativa, não comprovam que seu uso implique dependência_ fato que aponta ainda mais para o caráter arbitrário da inclusão do vegetal na “lista” de substâncias ilícitas_ nem provoque obrigatoriamente danos sociais, como a violência, a criminalidade, acumulação de capital por meio de operações ilegais, corrupção de funcionários do Estado, decorrentes da atual proibição de circulação de tais produtos.

O primeiro enunciado dos 11 princípios do Sisnad refere-se ao “respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana, especialmente quanto à sua autonomia e à sua liberdade”, uma clara contradição com a realidade, em se tratando de uma restrição à liberdade de escolha, prevista em lei, inclusive com sansões aos contraventores desconsiderando a existência de controles informais do uso. “A simples posse de drogas para uso pessoal, ou seu consumo em condições que não envolvam perigo concreto para terceiros, são condutas que se inserem no campo da intimidade e da vida privada, em cujo âmbito é vedado ao Estado_ e, portanto, ao Direito_ penetrar, de acordo com o conteúdo do inciso X do artigo 5° da Constituição Federal. Assim como não se pode criminalizar e punir a tentativa de suicídio e a autolesão, não se podem criminalizar ou punir condutas que, menos danosas que aquelas, podem encerrar, no máximo, um simples perigo de autolesão”.

Não é levado em consideração pela Lei 11. 343, apesar de constar no enunciado do seu segundo princípio_ “o respeito à diversidade e as especificidades populacionais existentes” _ o conjunto de práticas e representações que orienta o uso da Cannabis entre os mais diversos grupos étnicos, religiosos e culturais da sociedade. Para os Rastafari_ representantes da Igreja Copta da Etiópia, uma das mais antigas congregações Cristãs do mundo, cujas práticas estão relacionadas com vertentes religiosas primitivas tais como a judaica_ a maconha é um instrumento litúrgico- sacramental e seu uso está justificado em livros milenares como a Bíblia, e o Kebra Nagast, logo, a proibição generalizada ao cultivo e utilização da maconha constitui a violação do inciso VI, do artigo 5° da Constituição Federal do Brasil que “garante a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias”.

A repressão à maconha constitui um exemplo explicito de Racismo Institucional, uma vez que, várias pesquisas científicas apontam o racismo como fator histórico determinante para a perseguição ao vegetal, como instrumento de controle e extermínio das populações que dela fazem uso tradicionalmente_ africanos, nativos e seus descendentes_ violando o inciso IV do 3° capitulo da Constituição Federal do Brasil cujo objetivo é “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. A intensidade da ação policial, inversamente proporcional ao estrato social a qual pertence o infrator, contraria o princípio democrático de aplicação imparcial da lei. “O direito ao tratamento especial dirigido às parcelas mais vulneráveis da população, levando em consideração as suas necessidades específicas”_ citado no inciso VII, do art. 19_ é aplicado pelos agentes do Estado na forma de chacinas, invasões e prisões arbitrárias das populações das periferias e favelas de todo o Brasil.

A grande maioria dos funcionários do Estado responsáveis pela aplicação direta da lei, os policiais, não tem nem conhecimento da sua existência ou das modificações implementadas, recorrendo à utilização de procedimentos anticonstitucionais, como privação da liberdade sem a configuração de crime_ que contraria o enunciado contido no inciso 2, do artigo 48, da lei 11.343, ou até mesmo a punições sumárias, por meio de agressões físicas, humilhações públicas, subtração de objetos de valor. Tais funcionários do Estado, freqüentemente são responsabilizados pela Justiça por envolvimento com tráfico de substanciais ilícitas, e são peça fundamental da engrenagem que movimenta o mercado das “drogas”, cuja alta lucratividade deriva da ilegalidade do empreendimento, que ao adicionar ao preço do produto custos de potenciais perdas provocadas por eventuais apreensões, contribui para a elevação dos preços, funcionando como um dos mais poderosos incentivos à produção e ao comércio de tais mercadorias. Como aponta o pesquisador Edward Macrae_ professor adjunto da FFCH/UFBA e pesquisador associado do CETAD/UFBA_ em seu texto sobre o controle social do uso de substâncias psicoativas, as drogas são mercadorias cuja proibição vem possibilitando lucros extraordinários e consolidando uma poderosa economia ilegal. Segundo relatório da ONU, em 2004, essa atividade econômica movimentou R$ 750 Bilhões, que não seriam viáveis em uma atividade econômica oficialmente reconhecida.     

Aparentemente a principal diferença entre esta lei e suas versões anteriores seria a descriminalização do porte de droga para consumo pessoal, uma vez que as sanções impostas para essa conduta não conduzem a nenhum tipo de prisão. No entanto a ausência de parâmetros explícitos e pré-estabelecidos para a distinção entre usuário e traficantes, juntamente com a não observância da especificidade das diferentes substâncias, coloca duvidas a essa interpretação. A condição de usuário depende da interpretação do juiz_ supostamente não-usuário_ que definirá de acordo com parâmetros pessoais, qual seria a quantidade necessária para uso. Ora, “estudos farmacológicos já comprovaram que os efeitos provocados pelas diferentes substâncias psicoativas variam grandemente, sendo que a maconha constitui uma substância sui generis do ponto de vista farmacológico, uma vez que, não se enquadra adequadamente como estimulante, nem como depressor, nem como alucinógeno... e uma mesma pessoa consumindo doses equivalentes da mesma amostra de maconha, pode ter experiências subjetivas bastante diversas de situação para situação”. Outro fato, é a inclusão de dois verbos_ transportarem e, tiver consigo_ antes exclusivos da conduta de tráfico na conduta de usuário _como visto no atual artigo 28 do Cap.3 que discorre sobre os crimes e as penas, atrelando ainda mais a tipificação de tal conduta à interpretação do agente público.

No artigo 5° da Lei 11. 343 consta como objetivo do Sisnad a promoção e socialização de conhecimentos sobre drogas no país, entretanto o artigo 15, que criaria o Observatório Brasileiro de Informações sobre Drogas, que funcionaria como instrumento central de coleta de informações para a analise do fenômeno e melhorar a desempenho da lei, foi vetado, prejudicando a efetivação do inciso 2 do art.19, que prevê “a adoção de conceitos objetivos e fundamentação científica como forma de orientar as ações dos serviços públicos comunitários e privados e de evitar preconceitos e estigmas das pessoas e dos serviços que as atendam”.

O preconceito racial contra os negros, legitimado e institucionalizado pelo Estado, enquanto fator estruturante das sociedades ocidentais assume variadas formas e incorpora-se ao cotidiano dos indivíduos, contribuindo para a marginalização, estigmatização e isolamento do indivíduo “desviante” em redes fechadas de sociabilidade. No Brasil, como em outros lugares do mundo, a utilização recreativa da Cannabis Sativa assumiu contornos étnicos bastante explícitos, embora, a partir de meados séc. 19, passasse a ser associada a grupos estigmatizados da e pela sociedade. Introduzida no Brasil pelos negros africanos que serviram de mão-de-obra ao sistema colonial escravista, o uso da maconha “foi associado por estudiosos de cultos afro-brasileiros, juntamente com a religião, como elementos de resistência a desafricanização”.

Os efeitos da maconha sugeridos pela literatura médico-policial a serviço de setores interessados na sua proibição, guardam inúmeras semelhanças com uma outra elaboração “científica”. A eugenia, teoria que professa a existência e a superioridade de uma raça branca, Ariana, sobre as demais, relega aos não-brancos e seus descendentes características tais como degeneração física e mental que os levaria a desenvolver a loucura, idiotia, agressividade, sensualidade desenfreada, entre outras; coincidentemente, ao nos remetermos às campanhas “preventivas” ao uso de “drogas” iremos observar um reforço desses estereótipos, embora, sem referência a grupos étnicos específicos, uma vez que, racismo passou a ser crime com punição prevista no Código Penal.

No entanto, mesmo a comprovação científica da inexistência da raça, biológica, e da suposta potencialidade degenerativa decorrente do uso da Cannabis Sativa foi suficiente para superar os seus efeitos sócio-culturais. A proibição do uso da maconha no Brasil caminha lado a lado com o processo de abolição da escravatura e marginalização dos negros, agora ex-escravos, na recém proclamada República Federativa do Brasil. Excluídos da competição objetiva por empregos na indústria nascente, restaram as atividades de menor prestígio social e remuneração econômica, empurrando-os para o banditismo e constituição de aglomerados residenciais nos morros à margem do espaço urbano, as chamadas favelas, que freqüentemente são invadidas pelo braço armado do Estado sob o pretexto de repressão ao tráfico de “drogas”. Na década de 30, os negros serão vítimas freqüentes da “lei”, é oriunda dessa época a Lei contra a Vadiagem , que previa o encarceramento do indivíduo “apreciador do ócio” , e em 1934, com o estabelecimento do Estado Novo o porte da maconha passa a ser penalizado com punição prevista em lei.

Inúmeras seriam as justificativas para uma investigação aprofundada do fenômeno social da repressão ao canabismo como mais uma forma de violência do Estado contra a população negra neste país, são exemplos: a variação da intensidade da repressão policial, que se dá em razão inversa ao extrato social que o usuário pertence_ e os negros têm historicamente, ocupado as posições mais baixas_ expondo-o a extorsões, agressões físicas e psicológicas e muitas vezes, dependendo do lugar onde seja abordado, ao risco de morte, em contraposição a tolerância ao uso da maconha em locais na qual a circulação de pessoas da classe média e média alta é freqüente, como faculdades, praias localizadas em bairros “nobres”, entre outros.

A imprensa que teve um papel decisivo na construção de uma imagem negativa dos canabistas_ até aquele momento, meados dos anos 50, pertencentes, em sua maioria, a estratos populares dos centros urbanos_ ao apresentarem a prática do canabismo como um desvio de caráter, “desqualificando por completo a validade do conjunto de práticas e representações que orientava o uso da Cannabis entre grupos de negros, índios e trabalhadores pobres do Norte e Nordeste” , recicla o discurso e aponta agora o traficante como principal inimigo da sociedade e grande mal a ser extirpado, seja com a sua eliminação por grupos de “justiceiros” _ policiais encapuzados_ ou com um sistema carcerário mais “duro”, tendo os presídios dos EUA, onde a segregação racial é respaldada pela constituição,  como grande modelo a ser seguido. Fato que não é citado pela grande mídia é que os “traficantes” são apenas mais uma peça da enorme engrenagem que envolve não só os moradores dos morros, que muitas vezes sustentam famílias inteiras com o comércio de “drogas”, mas também funcionários do alto escalão do Estado_ senadores, deputados, etc_ e a polícia. O espectro negativo relacionado às drogas constitui obstáculo para a adoção da demanda dos usuários pelos formuladores das políticas, que temem a reprovação da maior parte dos votantes e conseqüentemente a não renovação do mandato. Com isso os usuários encontram-se sub- representados na, já fragmentada, arena de discussão política.

Por isso faz-se necessário que a sociedade civil e os Movimentos Sociais Organizados, principalmente o Movimento Negro, pressionem os nossos representantes/ legisladores a descriminalizar o plantio de Maconha como forma de dar um duro golpe no tráfico de drogas_ que surge a partir da proibição_ e nos racistas que dominam o Estado e utilizam o tráfico de drogas como instrumento para autorizar a chacina de milhares de jovens negros e negras.

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