quinta-feira, 26 de março de 2009

EZLN-Passos de uma rebeldia.

Emilio Gennari







E Z L N

Passos de uma rebeldia.









Ao reproduzir... cite a fonte.





As três flores da esperança



Liberdade. Diz Durito que a liberdade é como o amanhecer. Alguns o esperam dormindo, mas outros acordam e caminham durante a noite para alcançá-lo. Eu digo que nós zapatistas somos viciados em insônia e deixamos a história desesperada.

Luta. O Velho Antônio dizia que a luta é como um círculo. Pode começar em qualquer ponto, mas nunca termina.

História. A história não passa de rabiscos escritos por homens e mulheres no solo do tempo. O poder traça o seu rabisco, o elogia como escrita sublime e o adora como se fosse a única verdade. O medíocre limita-se a ler os rabiscos. O lutador passa o tempo todo preenchendo páginas. Os excluídos não sabem escrever...ainda.

EZLN, 18 de maio de 1996.



















Índice:



Apresentação 04


Introdução 05

1. Das origens do Exército Zapatista de Libertação Nacional à preparação do levante 06

2. Do início da rebelião ao diálogo com o governo 10

3. Os rumos da paz... e da guerra 15

4. Os Municípios Autônomos em Rebeldia 20

5. A resposta do poder 24

6. O tortuoso caminho da paz 31

7. Da marcha à Cidade do México à traição dos Acordos de San Andrés 34

8. A criação dos Caracóis 39

9. A construção da autonomia e os caminhos da Sexta Declaração da Selva Lacandona 44

10. A «outra campanha» 51


Bibliografia 57





Apresentação.


Quando as primeiras notícias das ações do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) começam a correr pelo mundo, não são poucas as pessoas que vêem este levante como uma loucura.

Desafiando todas as teorias e as análises que apontavam para o fim da luta armada na América Latina, os indígenas do Estado de Chiapas, no sudeste mexicano, mostram o firme desejo de construir uma sociedade onde haja tudo para todos.

Após séculos de marginalização e discriminação, o seu “Basta!” surpreende tanto os poderosos, como a esquerda acostumada ao conforto dos gabinetes e das intervenções que em nada questionam os limites impostos pelo sistema capitalista.

Doze anos depois, a prática e a leitura da realidade com as quais o EZLN tece seu diálogo com o México e com o mundo são, ao mesmo tempo, um testemunho e um convite a se aproximar deste movimento, a conhecer melhor suas formas de luta, a abrir os olhos diante do que está acontecendo em nosso continente e, sobretudo, a perceber que não precisamos da permissão de ninguém para ser livres.

O esforço de reconstruir as etapas desta historia não tem a menor intenção de apresentar um modelo a ser seguido.

Ao aproximar o leitor dos vários aspectos do levante chiapaneco, as próximas páginas pretendem apenas fazer com que mais gente conheça os passos pelos quais a luta dos oprimidos vai abrindo caminhos na noite de seus sofrimentos e nela traça as trilhas da esperança.

Ao ampliarmos os horizontes do nosso olhar, temos mais elementos para questionar e entender o nosso quotidiano, refletir melhor sobre os rumos de nossos movimentos e perceber que, apesar do silêncio cúmplice dos meios de comunicação, não estamos sós nesta longa jornada.

Além das entrevistas com os próprios integrantes do EZLN, o resgate das fases que marcam os 12 anos do levante zapatista tem como base as cartas, as mensagens e os comunicados divulgados pelos rebeldes dando uma ênfase especial às seis Declarações da Selva Lacandona. Através delas é possível perceber não só como os zapatistas lêem os acontecimentos de um determinado período da história do México, mas, sobretudo, as mudanças de posições e propostas em sua relação com os movimentos organizados da sociedade civil.

Ao encerrar a apresentação desta segunda edição do livro que amplia a análise dos acontecimentos até maio de 2006, a coruja Nádia quer que os leitores partilhem um dos sentimentos que animam o seu trabalho de pesquisa e análise deste importante momento de luta. Diz ela que a maior satisfação não vem do saber que todas as primeiras cópias do seu estudo sobre o EZLN foram vendidas em menos de um ano e há mais pessoas interessadas em conhecer a história deste movimento. O que enche mesmo seu coração de alegria é poder constatar que, dia após dia, em Chiapas, os mais pobres entre os pobres continuam desafiando as tramas dos poderosos e seu exemplo ajuda a manter acesa a chama da esperança no coração dos homens e mulheres que, nos quatro cantos do mundo, enfrentam a dura realidade da exploração para construir uma sociedade onde haja tudo para todos.

Com todas estas pessoas de várias cores, etnias e religiões, a nossa representante do reino das aves renova os votos de que a rebeldia zapatista continue sendo um convite aberto a construir no quotidiano da história os passos deste novo amanhecer.

Emilio Gennari

Brasil, maio de 2006.


Introdução.

Chove. As nuvens carregadas que cobrem a cidade parecem antecipar a chegada da noite. As pessoas se fecham em suas próprias casas enquanto o intenso cair das gotas promete expor os graves problemas sociais que os dias ensolarados costumam esconder. O cinza escuro do concreto molhado aumenta o desânimo e uma pesada sensação de impotência convida a se conformar, a não reagir, a deixar acontecer.

Mergulhados neste turbilhão de sensações, os olhos acompanham parados o respingar das gotas nos vidros e não percebem o aproximar-se de uma forma escura que, enfrentando as intempéries, pousa levemente nas grades. Encharcada e com uma pequena mochila nas costas, a coruja abre as asas para chamar a atenção e provocar uma resposta rápida.

Após várias tentativas, finalmente o olhar se dirige em sua direção enquanto as mãos, estupefatas e incrédulas, abrem a janela tanto quanto basta para deixar a ave entrar. Irritada com a chuva que molha o chão da sala, a língua investe sem cerimônias:

- “Nádia, você ficou louca?!? Onde já se viu sair voando num tempo desse?”

Silenciosa, a ave esboça um pequeno vôo até à mesa onde deposita cuidadosamente o fardo que pesava em suas costas. Disfarçada e vagarosamente ajeita penas e plumas como quem se prepara para responder à altura da bronca recebida:

- “Os bípedes da sua espécie esperam pra fazer as coisas quando os ventos sopram todos a seu favor. Mas, enquanto se mantêm imóveis, os problemas aumentam, se tornam mais complexos e suficientemente assustadores para convencê-los de queé melhor deixar tudo do jeito que está, já que as coisas podem piorar ainda mais...”, diz a ave entre a ironia e a reprovação.

Sentado diante dela, o corpo se acomoda na cadeira enquanto o cérebro procura, preguiçoso, uma forma de responder à inesperada investida:

- “Bom...a crise tem sido tão brava que está difícil juntar as pessoas para lutarem por seus direitos; e... também faltam meios, o dinheiro anda curto, o desânimo e a decepção ameaçam quantos ainda querem lutar...e...você sabe...”

Com a asa levantada para o alto, Nádia interrompe bruscamente a defesa que estava sendo esboçada e, assumindo a expressão de quem conhece profundamente as lamentações costumeiramente usadas em tempos difíceis, não deixa por menos:

- “Já sei de cada uma destas queixas e poderia acrescentar outras tantas, mas ficar lamentando não leva a lugar algum. Pois, fique sabendo que as dificuldades são como as montanhas: só se aplainam quando avançamos sobre elas. Do contrário, acabamos nos encolhendo e o medo apaga em nós a dignidade que deveria nos fazer reagir diante daquilo que, de tanto marcar presença, passa a ser visto como algo natural e, portanto, impossível de ser mudado”.

- “Belas palavras...! Resta saber se tem alguém que faz isso que você está falando?”.

- “É um desafio...?”, pergunta a coruja com olhar maroto.

- “É!”, retruca a língua convencida de que vai ganhar a parada.

Nádia suspira e, apontando a asa para as folhas de rascunho amontoadas num canto da mesa, responde:

- Bom... Você pediu... Então, não me resta outra escolha a não ser contar o que vi na minha última viagem a um Estadodo sudeste mexicano, situado na fronteira com a Guatemala e conhecido pelo nome de Chiapas. Por aquelas bandas, os povos indígenas vêm sustentando uma luta desigual contra um exército regular, grupos de paramilitares fortemente armados e uma elite que adorariam transformá-los em peças de folclore, força de trabalho barata, migrantes sem terra e sem paz ou, para os mais rebeldes, em defuntos”.

- “Você não está sendo meio trágica?”, indaga a língua enquanto a direita pega a caneta e aproxima os papéis nos quais irá transcrever o relato.

A ave pisca os olhos e, sentando-se ao lado do dicionário que lhe serve de encosto, diz:

- “Em primeiro lugar, você precisa saber que, em Chiapas, as contradições e os contrastes assumem aspectos gritantes. Por exemplo, o seu território hospeda cerca de 82% de toda planta petroquímica do México e suas hidroelétricas produzem 20% da energia que o país precisa. Ainda assim, somente um terço das casas chiapanecas têm luz elétrica e a grande maioria das demais não possui sequer um lampião a gás.

Mas isso é só o começo. Considerado o maior produtor nacional de milho, Chiapas detém também 35% da produção mexicana de café. De suas florestas saem madeiras nobres e preciosas fontes de matérias primas para as indústrias de biotecnologia, ao mesmo tempo em que as fazendas ostentam cerca de 3 milhões de cabeças de gado. Apesar de toda esta riqueza, 54 em cada 100 moradores estão desnutridos, e, nas regiões de montanha e selva, este mal ameaça a vida de 80% da população. A miséria que senta à mesa da maior parte das famílias indígenas e camponesas cobra o altíssimo preço de uma morte a cada 35 minutos.

Outra grande fonte de renda é o turismo que se desenvolve em torno das construções dos antigos povos maias. Para atender às suas demandas, Chiapas conta com uma média de 7 quartos de hotel para cada mil turistas, enquanto oferece só 0,3 leitos de hospital para cada mil chiapanecos.

Se isso não bastasse, já faz anos que a educação vem sendo considerada como a pior do país: de cada 100 crianças que freqüentam o ensino primário, 72 não terminam a primeira série e mais da metade das escolas não oferece nada além da terceira série do primeiro grau. Além do descaso das autoridades, a deserção escolar nas áreas indígenas se deve fundamentalmente à necessidade de incorporar as crianças nas atividades que garantem a sobrevivência das famílias. Em qualquer comunidade, é comum encontrá-las carregando lenha ou milho, cozinhando ou lavando roupas durante as horas em que deveriam estar na escola.1

Bom, não é necessário ser economista para entender que, neste Estado, os abundantes recursos naturais e o enorme potencial de desenvolvimento convivem, lado a lado, com profundas contradições sociais das quais se alimentam para garantir o enriquecimento de um seleto grupo de proprietários.

Estes, por sinal, só têm olhos para as novas e velhas possibilidades de investimento, e, sobretudo, para as jazidas de petróleo, gás e urânio, ainda não exploradas. O único problema é que grande parte desta riqueza está exatamente nas áreas ocupadas pelas comunidades indígenas. Trocado em miúdos, para os senhores do dinheiro, os povos originários destas terras não passam de um empecilho que precisa ser removido, na lei ou na marra.

- “Mas como é que tamanha pobreza pode enfrentar a força de quem conta com o apoio de políticos, governantes, meios de comunicação e, pelo visto, de forças armadas? Disso só pode se esperar um rotundo fracasso...”, comento desconcertado.

- “E seria isso mesmo - retruca Nádia ensaiando um sorriso sério - não fosse por um aspecto que abunda em terras indígenas: um profundo sentimento de dignidade alicerçado numa história de luta e resistência que percorre os séculos. Esta peça-chave vai transformar a ameaça de extermínio num levante armado que deixa marcas profundas na história do México e do mundo”.

- “De que jeito isso vai acontecer?”, pergunto tentando apressar os tempos.

- “Acalme-se! - responde a coruja enquanto se levanta deixando atrás de si a poça d'água formada pelas gotas que pingam de sua plumagem. Este não é assunto a ser resolvido com poucas palavras. Por isso, preste muita atençãoà primeira etapa do meu relato na qual vou tratar...”

  1. Das origens do Exército Zapatista de Libertação Nacional à preparação do levante.

- “Você disse... zapatista...?!? Que bicho é este?”

Nádia sacode a cabeça e, emitindo um longo suspiro, procura colocar cada coisa em seu devido lugar:

- “Zapatista vem de Emiliano Zapata, um dos líderes da revolução que varreu o México a partir de 1910. É a memória e o espírito de rebeldia deste homem que indígenas e guerrilheiros vão incorporar à sua luta contra os poderosos. Mas vamos por partes.

Nas origens do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) está a geração que participa dos movimentos que marcam o final da década de 60. Pressionada pelas demandas expressas pelos estudantes e pelas bases da sociedade mexicana, a elite responde com a repressão policial que atinge o seu ponto mais alto no massacre de 02 de outubro de 1968, na Praça das Três Culturas, na cidade de Tlatelolco. O assassinato de centenas de pessoas que participavam daquela manifestação de protesto cria uma espécie de divisor de águas no interior da esquerda e dos setores progressistas.

Sob o peso desta derrota, parte das lideranças se integra ao sistema, outra se engaja em movimentos sociais urbanos ou camponeses, funda novos partidos de esquerda, enquanto alguns dos antigos líderes optam pela guerrilha urbana. Entre os que fazem esta opção, há pequenos grupos que iniciam um processo de acumulação de forças bem diferente do que é trilhado pelos demais.

Desde o início de 1969, estabelecem que sua luta não visa uma ação rápida que busca tomar o poder, mas sim agir de acordo com as pretensões do povo, sem se importar com o quanto isso demore. 2 Esta opção coloca em segundo plano a preocupação de amontoar grandes quantidades de armas e prioriza a formação de pessoas capazes de levar adiante a luta caminhando passo a passo com a sociedade civil.

O fato de não recorrer a assaltos a bancos, seqüestros ou outras formas de expropriação violenta se deve, entre outras coisas, à avaliação de que o povo não entenderia estes gestos e acabaria se distanciando dos que buscam levar a luta a outros níveis de enfrentamento. Desta forma, a reação aos acontecimentos que marcam o final da década de 60 nasce em silêncio, nele cresce e se mantém viva driblando a repressão do Estado e ampliando seus horizontes de forma gradual e segura.

Em 17 de novembro de 1983, um grupo muito pequeno destes militantes chega a Chiapas. Ao todo, são cinco homens e uma mulher, sendo que três são indígenas e os três restantes mestiços. Este destacamento tem o objetivo de aprender a viver no ambiente hostil da montanha que, de inimigo, poderia se transformar em poderosa arma de defesa contra o exército mexicano.

De acordo com seus integrantes, o período de 1983 a 1985 é marcado por uma grande solidão. Nenhum acontecimento a nível nacional ou internacional leva a crer que vale a pena enfrentar tamanho sacrifício, ao contrário, a revolução ganha cada vez mais as feições de um sonho distante a ponto de o pequeno grupo guerrilheiro ter consciência de que não chegará a ver a sua realização. Por outro lado, as dificuldades de adaptação à vida em montanha ensinam ao EZLN a cultivar a esperança, a fazê-la brotar em meio à dor e a vivenciar aqueles momentos com um elevado grau de desprendimento.

Com o tempo, o destacamento guerrilheiro começa a contatar as comunidades indígenas e a estabelecer com elas um acordo tácito pelo qual os zapatistas treinariam os jovens dos povoados tornando-os aptos a defenderem seus locais de origem das ações dos jagunços e, em troca, estes ajudariam a garantir os suprimentos necessários para a vida na selva.

Sem recorrer a ações criminosas e sem contar com nenhuma ajuda do exterior, o trabalho é levado adiante única e exclusivamente com os poucos recursos que as comunidades dispõem. Quanto às armas, o Subcomandante Marcos explica claramente como são obtidas: uma pequena parte vem do trabalho de formiga, de comprar aqui e aí; uma outra fonte importante é a polícia mexicana e o Exército, naquela queé a sua luta contra o narcotráfico. Quando eles prendem os narcotraficantes e tomam suas armas, só uma pequena parte delas é entregue às autoridades, porque o resto vai para o mercado negro. Nós compramos deles os AK-47, M-16 e outros armamentos. Eles achavam que estavam vendendo as armas para um grupo de narcotraficantes sobre o qual, em seguida, se lançariam para prendê-lo, tirar-lhe as armas e voltar a vendê-las; um bom negócio, claro. A terceira fonte são os jagunços dos latifundiários que são treinados pelos oficiais da segurança pública e do Exército. E há uma quarta fonte de aprovisionamento que são as armas que os camponeses têm na maior parte do México, escopetas de caça e outras coisas mais rudimentares. 3

Pouco a pouco, os indígenas se tornam maioria no interior do EZLN e isso começa a influenciar a sua vida interna. Na medida em que os contatos exigem que se aprenda a língua das várias etnias, os símbolos e os sentidos que estes têm na comunicação, os guerrilheiros percebem a necessidade de estabelecer um diálogo com as comunidades, com suas culturas milenares, suas formas de luta e sua organização comunitária. Ou seja, trata-se de aprender a ouvi-los e a viver com eles.

- “Quer dizer que para dar conta do recado bastou aplicar o que já existia em seu meio...”, comento cortando a conversa sem fazer cerimônias.

Nádia sacode a cabeça dando a entender que se trata de um processo mais complexo:

- “Apesar da posse coletiva da terra, das decisões serem tomadas por consenso em demoradas assembléias e do fato de que ser indígenas não é só ter nascido em um determinado lugar, mas é, sobretudo, escolher diariamente a vida em comunidade e se responsabilizar pelo outro, cada povoado continua fechado em si mesmo, sem nenhuma relação com os demais e agindo de acordo com usos e costumes que nem sempre promovem relações de igualdade. Neste contexto, a inserção do EZLN não pode se dar como assimilação pura e simples de idéias, práticas, valores e formas de interpretar a realidade, mas sim como um lento processo no qual, ao incorporar a cultura indígena e ao dialogar com ela, é possível começar a criar a vivência de novas relações tanto entre as pessoas como nos campos da política e da própria economia”.

- “Seria muito pedir um exemplo?”

-“Entre as coisas que começam a mudar, está a posição da mulher no interior das comunidades. Ao falar sobre isso, Tacho, um dos comandantes do EZLN, mostra como o contato com os guerrilheiros dá a elas um papel de destaque na tarefa de tecer novas relações: Quando começamos a falar com as pessoas dos povoados, tínhamos que prestar muita atenção na hora de escolher com quem abrir o jogo: precisávamos saber quem era, como se chamava, o que queria. Sobretudo por causa das bebedeiras. Alguns gostam muito de beber e, às vezes, se embebedavam com os criadores de gado ou com os comerciantes; era difícil, tínhamos que prestar muita atenção. Foi aí que começamos a perceber que era necessário fazer participar as mulheres. Demos formação para as mulheres que eram uma espécie de enviado político e, como já estavam conosco algumas companheiras indígenas e camponesas, descíamos com elas nas comunidades e, de noite, em segredo, reuníamos as mulheres fora do povoado. Faziam de conta que iam buscar o milho, procurar lenha, mas, na realidade, iam para uma reunião. Foram elas que começaram a convencer os maridos a parar de beber. Em seguida, quando tínhamos duas, três, quatro companheiras numa comunidade, dávamos a elas a tarefa de escolher com quem trabalhar. Crescíamos pouco a pouco, até que, finalmente, um povoado inteiro estava conosco.4

Em outras palavras, nos contatos entre o EZLN e as comunidades, as trocas acontecem em ambas as direções. O Exército Zapatista se transforma, mas também as comunidades começam a passar por um processo de mudança. A convivência faz com que seja possível avaliar as formas de participação política existentes, o impacto e os limites das lutas já realizadas, leva a perceber os mecanismos pelos quais a elite estimula o clientelismo e a submissão, a formar novas lideranças e a possibilitar que as pessoas aprendam a tomar coletivamente não só as decisões sobre os aspectos imediatos de sua vida quotidiana, mas também as que vão delinear o seu futuro em médio e longo prazo.

Apesar dos esforços despendidos, o trabalho é lento e os contatos permanecem esporádicos. As coisas começam a mudar entre o final de 1988 e ao longo dos três anos seguintes em função do desenrolar dos acontecimentos. O primeiro deles diz respeito às fraudes nas eleições para a Presidência da República de 1988, nas quais Carlos Salinas de Gortari, do Partido Revolucionário Institucional (PRI), é declarado vencedor. Nos ambientes indígenas mais politizados, a derrota de Cuauhtémoc Cárdenas, do Partido da Revolução Democrática (PRD), é recebida como o fim da possibilidade de uma transição pacífica para um governo no qual a democracia não seja apenas uma doce ilusão.

A tudo isso se deve acrescentar a violenta queda dos preços internacionais do café, que provoca uma rápida deterioração das condições de vida de milhares de camponeses, a ocorrência de epidemias que, em poucas semanas, matam centenas de crianças das comunidades indígenas, e as investidas dos jagunços que castigam as regiões norte e selva de Chiapas com uma verdadeira onda de assassinatos.

Outro elemento importante é a percepção clara de que o Exército mexicano não é tão forte e preparado como se acreditava. Uma incursão na selva, realizada oficialmente para procurar plantios de maconha, revela-se um desastre para as forças governamentais. A montanha e o clima se encarregam de desestruturar os soldados que até pouco tempo atrás eram tidos como invencíveis.

Mas a gota d'água vem com a reforma de Salinas ao artigo 27 da constituição graças à qual as terras dos ejidos passam a ser tratadas como uma mercadoria qualquer. É esta seqüência de acontecimentos aconvencer os indígenas zapatistas de que não resta a eles outro caminho a não ser o do levante armado”.

- “Ejido?!? Artigo 27?!? Confesso que agora boiei...”, digo ao balançar a cabeça sobre a palma da mão na qual está apoiada.

- “Um bicho de cada vez! - responde Nádia categórica enquanto ordena as idéias andando de um lado pra outro da mesa. Pra começar, o ejido é uma forma de posse coletiva da terra criada no processo de reforma agrária que a elite mexicana vai viabilizar para conter as pressões dos camponeses após a tentativa revolucionária de Villa e Zapata. Com a existência legal garantida pelo artigo 27 da constituição mexicana, as áreas dos ejidos não podem ser vendidas, arrendadas ou hipotecadas. Por isso, quando uma família sai de uma delas, os campos nos quais trabalhava voltam à comunidade. Esta vai cuidar deles podendo ceder sua posse a eventuais novos moradores.

Apesar das pressões dos latifundiários, da falta de crédito, de infra-estrutura, de instrução e assistência técnica, os ejidos, bem ou mal, vinham se mantendo vivos. Mas os interesses do grande capital não podem conviver longamente com limitações deste tipo, sobretudo, quando sabem que estas terras abrigam verdadeiros tesouros.

As pressões para alterar o artigo 27 se tornam cada vez mais fortes no âmbito das negociações do Tratado de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA). No final de 1990, para dar uma aparência de legitimidade às medidas impopulares que serão adotadas, o presidente do México, Carlos Salinas de Gortari, convoca uma reunião com todos os dirigentes das organizações camponesas oficiais e não-oficiais, regionais e nacionais, na capital federal. O detalhe é que os encarregados de entregar os convites são funcionários da presidência que procuram as pessoas em suas próprias casas, gesto que soa como uma ameaça velada: tome cuidado, sabemos quem você é e onde mora a sua família.

Todos os convocados se apresentam na residência oficial de Los Pinos, onde Salinas mostra a proposta de reforma constitucional e, chamando-os individualmente, pede a cada dirigente que assine o seu projeto.

Oficialmente, as medidas são justificadas com a necessidade de acelerar os investimentos na agricultura que, de acordo com o chefe do Executivo, haviam sido reduzidos em função das invasões, do ressurgimento do movimento camponês, da forma como eram distribuídas as áreas agrícolas disponíveis e da proibição das grandes empresas possuírem ou adquirirem terras ejidais.

Em nome da utilidade pública, as alterações ao artigo 27 são promulgadas em 6 de janeiro de 1992, data a partir da qual os ejidos podem ser expropriados pelo Estado e vendidos à iniciativa privada ou aos grandes latifundiários. Na prática, com este ato, o governo mexicano assina a sentença de morte das comunidades indígenas chiapanecas.

Fechada a porta a qualquer garantia de manutenção e acesso legal à terra, as lideranças das comunidades que se relacionam com o EZLN comunicam ao comando o processo de radicalização que se acelera no interior dos povoados e que aponta o levante armado como única saída possível diante do agravar-se da situação”.

- “Você não está querendo dizer que um punhado de pessoas vai tomar uma decisão desse porte em nome das demais?... Está?”

- “Não, o que acontece a partir deste momento é exatamente o contrário. As notícias surpreendem a cúpula militar do EZLN. Do debate interno sai a decisão de consultar as comunidades. De acordo com o Subcomandante Marcos, em cada povoado é explicada a situação da comunidade, da etnia, a situação nacional e internacional, e coloca-se a pergunta: chegou ou não o momento de começar a guerra? Entre setembro, outubro e a primeira quinzena de novembro, são consultadas quatrocentas ou quinhentas comunidades de quatro etnias: tzotzil, chol, tojolabal e tzeltal, e, pela primeira vez, a maioria da população é convidada a se pronunciar: as mulheres participam como grupo e votam também os jovens que nunca haviam participado das decisões do povoado, menos ainda de decisões desse tipo.

A escolha é feita por maioria, e esta opta pela guerra. Foi um voto nominal, individual. Quero dizer que, quando apuramos os votos, depois do dia 12 de outubro, não dissemos «tantos povoados estão a favor, tantos contra», mas sim «tantos homens, mulheres e jovens votaram sim e tantos não». Enfim, foi um voto direto individual, porém público, no interior da assembléia do povoado, não um voto secreto. Houve debates, alguns foram até muito acalorados. Todo povoado tinha que produzir um relatório da apuração (guardados depois em lugar seguro) com os resultados e também com os argumentos a favor e contra. Em teoria não era um voto, mas sim uma consulta. Estamos em 1992 e o comando consulta os povoados para saber o que as pessoas pensam, e depois toma uma decisão. Por isso, pedíamos os argumentos, para que o comando pudesse ter uma idéia. Os zapatistas que votaram contra a guerra diziam que a repressão teria se desencadeado contra os povoados, que havia comunidades divididas, que era necessário esperar... Tinham argumentos válidos. Para encurtar a história, a enorme maioria se pronuncia favoravelmente ao início imediato da guerra e as comunidades dão ao EZLN a ordem oficial de combater com elas.5

Esta decisão não altera apenas os planos e os programas do treinamento militar destinados, até então, a defender os povoados em caso de agressão, mas também a estrutura e a direção do EZLN. Em dezembro de 1992, se estabelece que as comunidades indígenas devem assumir o controle de toda a organização político-militar. Em janeiro do ano seguinte, os representantes das etnias indígenas e das áreas nas quais se desenvolve o trabalho de organização assumem oficialmente a direção do movimento e, com ela, o nome e o ritmo do Comitê Clandestino Revolucionário Indígena, o Comando Geral do EZLN. Em seguida, começam os preparativos para a guerra que, desde o início, é vista como longa e desgastante.

A passos largos, o calendário caminha para 1º de janeiro de 1994, data na qual o mundo vai amanhecer surpreso diante do levante armado dos indígenas chiapanecos. Mas sobre isso vou falar mais no próximo capítulo no qual vou tratar...”

  1. Do início da rebelião ao diálogo com o governo.

Com as asas atrás das costas, Nádia espera pacientemente que o cafezinho e a breve espreguiçada doseu secretário ajudem a sacudir os neurônios mais preguiçosos. De rabo de olho, acompanha cada movimento na tentativa de apressar a volta ao trabalho.

Recuperado, o corpo reassume o seu lugar e o estalar dos dedos sinaliza que está se aproximando a hora de dar início a mais uma etapa da história do Exército Zapatista.

Ao perceber que já pode começar, a coruja vira a cabeça em direção aos papéis e depois de um “Muito bem... vejamos...” traduz em palavras as imagens e os sons captados em sua longa viagem:

- “Como estava dizendo, no amanhecer do dia 1º de janeiro de 1994, o mundo se depara, atônito, com as notícias que chegam do México. Homens e mulheres com o rosto coberto ocupam, de armas em punho, as cidades de San Cristóbal de Las Casas, Altamirano, Las Margaritas, Oxchuc, Huixtán, Chanal e Ocosingo. Seu gesto inesperado, de um lado, azeda os banquetes das elites que, no mesmo dia, celebram a entrada em vigor do NAFTA e, de outro, reacende em muitos o desejo de lutar por uma nova sociedade.

Da sacada principal de cada uma das sedes dos governos municipais ocupadas pelos rebeldes, membros do Comitê Clandestino Revolucionário Indígena lêem a Declaração da Selva Lacandona. Dirigido ao povo do México, o texto inicia traçando um perfil da longa história de luta e resistência que constitui o ambiente no qual foi gestado o próprio EZLN.

Ao se reconhecerem como produtos de 500 anos de luta, os zapatistas não atribuem a si mesmos o começo de uma nova história, mas colocam sua ação em sintonia com um longo passado de enfrentamentos. Neste contexto, a opção pelo levante armado é apresentada como o resultado do fracasso das inúmeras tentativas já realizadas e como última esperança para pôr em prática um dos princípios básicos da Constituição mexicana pelo qual: A soberania nacional reside essencial e originariamente no povo. Todo poder público emana do povo e se institui em benefício deste sendo que, em qualquer tempo, o povo tem o direito inalienável de alterar ou modificar as formas do seu governo”.

- “Confesso que agora fiquei perplexo. Se os zapatistas querem mudar as coisas, por que apelam a algo que já existe?”, pergunto abrindo os braços em meio à dúvida e ao desconcerto.

A coruja apóia as asas na cintura e, olhando fixa em minha direção, não titubeia em responder a uma interrogação aparentemente já esperada:

- “De um lado, porque falar de um futuro distante de justiça ou prosperidade cairia no vazio e seria recebido com desconfiança pela sociedade civil. De outro, ao citar um dos princípios básicos da política, o EZLN permite visualizar melhor a situação atual e para onde deve caminhar a relação entre governantes e governados. O problema não está em dizer que a soberania e o poder devem emanar do povo, mas sim no papel de expectador a que esteé relegado.

Em outras palavras, o México vive uma situação na qual a política está sendo seguidamente seqüestrada da vida das pessoas pela própria ação das elites que limitam o envolvimento popular à hora de colocar o voto na urna. Feito isso, alijam a imensa maioria dos eleitores dos processos que vão definir as escolhas sobre as quais será delineado o futuro da nação em função, claro, dos próprios interesses. Por isso, o EZLN apela a um princípio simples, e já presente no papel, para visualizar que sua aplicação só pode se dar com o envolvimento de todos na construção de uma nova maneira de fazer política perante a qual o seu movimento abre um dos caminhos possíveis.

Contudo, pode surpreender o fato de que os zapatistas, ao mesmo tempo em que declaram guerra ao Exército mexicano, pedem aos demais poderes da Nação que restaurem a legalidade e a estabilidade da Nação, depondo o ditador. Aparentemente, esta parece uma expressão ingênua da Declaração, pois é absurdo pedir ao PRI (que detém o controle do Parlamento, do judiciário e das forças armadas e está no poder há mais de 60 anos) que derrube Carlos Salinas de Gortari, um de seus mais altos representantes. Na verdade, temos aqui o primeiro passo com o qual o EZLN inicia o seu diálogo armado com o México não só através das palavras, como dos próprios acontecimentos. Na medida em que os poderes constituídos se negam a cumprir esta tarefa, eles acabam se desmascarando perante a sociedade e contribuem involuntariamente para enfraquecer as expectativas populares na democracia parlamentar existente.

Por importantes que sejam os discursos, por si só, não conseguem vencer as barreiras do senso comum. É necessário fazer com que eles anunciem e interpretem os fatos diante dos quais cada indivíduo é chamado a se posicionar. A construção de uma nova forma de fazer política a partir de baixo pressupõe justamente este diálogo entre acontecimentos e palavras que, pouco a pouco, semeia dúvidas nas cabeças das pessoas, tece novas relações, dá sentido ao sentimento de revolta, mexe com a indiferença, resgata a dignidade e a resistência como elementos a partir dos quais se começa a dizer a própria palavra e a não deixar que outros pensem e ajam em nosso nome”.

- “Além disso, a Declaração da Selva Lacandona apresenta algumas bandeiras de luta?”

- “Foi bom você ter lembrado disso! - responde Nádia satisfeita. Após citar os elementos que qualificam o EZLN ao seu reconhecimento oficial enquanto força beligerante, os zapatistas apresentam claramente as suas reivindicações: Povo do México: nós, homens e mulheres íntegros e livres, estamos conscientes de que a guerra que declaramos é uma medida extrema, porém justa. Há muitos anos, os ditadores vêm realizando uma guerra genocida não declarada contra nossos povos. Por isso, pedimos sua participação decidida, apoiando este plano do povo mexicano que luta por trabalho, terra, teto, alimentação, saúde, educação, independência, liberdade, democracia, justiça e paz. Declaramos a intenção de não deixarmos de lutar até conseguirmos o cumprimento destas demandas básicas, formando um governo livre e democrático em nosso país.

Após centenas de anos lutando e esperando a realização de promessas nunca cumpridas, os indígenas zapatistas não estão reivindicando aqui uma melhor distribuição da renda, alguns hospitais, escolas, casas populares, cestas básicas ou coisas desse tipo, pois, para isso, não seria necessário realizar um levante armado. Trata-se, isso sim, de um convite a repensar o quotidiano justamente a partir daqueles elementos que são negados ao povo simples e cuja falta, em terras chiapanecas, traça as feições da guerra de extermínio que, há décadas, é travada contra os povos indígenas.

Neste contexto, o apelo a integrar as forças do EZLN que encerra a Declaração não tem só o sentido de empunhar as armas, mas é uma porta aberta através da qual cada pessoa pode começar a fazer do meio em que vive o lugar no qual se engajará para conquistar as demandas apresentadas, participando ativamente e em diferentes níveis do processo de mudança que está se iniciando”.

- “Agora estou curioso de saber como reage o governo Salinas...”, murmuro enquanto a coruja parece endireitar as orelhas para captar melhor os rumos do meu interesse.

- “É o que se pode esperar de um governo democraticamente autoritário - diz Nádia num tom de séria brincadeira. A resposta do Executivo mexicano percorre três caminhos simultâneos. O primeiro é o das armas: enfrentamentos, execuções sumárias, torturas, bombardeios aéreos nas montanhas ao sul de San Cristóbal e na região da Selva. Por onde passa, a ação das forças armadas deixa um rastro de violência e de morte.

Ao mesmo tempo, um documento da secretaria de governo menospreza a magnitude do conflito e procura deslegitimar o levante dizendo que os rebeldes revelam afinidades com facções violentas da América Central que estariam manipulando os indígenas chiapanecos.

No dia 06 de janeiro, Salinas discursa à Nação negando o caráter indígena da rebelião zapatista e oferecendo o perdão àqueles que vierem a depor as armas. Dez dias depois, envia ao Congresso da União um projeto de lei de anistia.

Enquanto isso, em meio à grande ressonância que os acontecimentos de 1º de janeiro provocam no país, vários grupos da sociedade civil criam a Coordenação das Organizações Civis pela Paz para deter a guerra e vigiar a atuação do Exército federal.

Respondendo ao governo, no que seria o primeiro de uma longa série de comunicados, os zapatistas colocam suas condições para o diálogo: o reconhecimento do EZLN como força beligerante, o cessar-fogo de ambas as partes, a retirada das tropas federais, o fim dos bombardeios e a criação de uma Comissão Nacional de Intermediação.

Mas isso não é tudo. Numa mensagem divulgada no dia 18, o Subcomandante Marcos responde à oferta de perdão do presidente com perguntas que dispensam comentários: Do que temos de pedir perdão? Do que vão nos perdoar? De não morrer de fome? De não calar diante da nossa miséria? De não ter aceitado humildemente a gigantesca carga histórica de desprezo e abandono? De levantarmos em armas quando encontramos fechados os outros caminhos? De não ter respeitado o Código Penal de Chiapas, o mais absurdo e repressivo que se conhece? De ter demonstrado ao resto do país e ao mundo inteiro que a dignidade humana ainda vive e está em seus habitantes mais pobres? De termos consciência da necessidade de uma boa preparação antes e iniciar a luta? De ter ido ao combate armados de fuzis no lugar de arcos e flechas? De ter aprendido a lutar antes de insurgirmo-nos? De sermos todos mexicanos? Da maioria de nós sermos indígenas? De convocar todo o povo mexicano a lutar de todas as formas possíveis por aquilo que lhe pertence? De lutar por liberdade, democracia e justiça? De não seguir os modelos das guerrilhas anteriores? De não nos render? De não nos vender? De não nos trair?

Quem tem de pedir perdão e quem pode outorgá-lo? Os que, por longos anos, saciavam sua fome sentados a uma mesa farta enquanto nós sentávamos ao lado da morte, tão quotidiana e tão nossa que aprendemos a não ter medo dela? Os que encheram nossos bolsos e nossas almas de declarações e promessas? Os mortos, nossos mortos, tão mortalmente mortos de morte “natural”, isto é, de sarampo, coqueluche, dengue, cólera, febre tifóide, mononucleose, tétano, pneumonia, paludismo e outras pérolas gastrintestinais epulmonares? Os nossos mortos, que são a maioria, que morreram, democraticamente, entre os sofrimentos, já que ninguém nunca fez nada, porque todos os mortos, nossos mortos, partiam, de repente, sem que ninguém se desse conta, sem que ninguém dissesse, finalmente, o “basta!” que devolvesse sentido a essas mortes, sem que ninguém pedisse aos mortos de sempre, aos nossos mortos, que regressassem para morrer outra vez, mas agora para viver? Os que negaram o direito e a capacidade de nossa gente governar e nos governar? Os que negaram o respeito aos nossos costumes, à nossa cor, à nossa língua? Os que nos tratam como estrangeiros em nossa própria terra, exigem os documentos e a obediência a uma lei cuja existência e justiça ignoramos? Os que nos torturaram, prenderam, assassinaram e nos fizeram desaparecer por ter cometido o grave “delito” de querer um pedaço de terra, não um pedaço grande, não um pedaço pequeno, apenas um pedaço do qual se poderia tirar alguma coisa capaz de matar a fome?

Quem tem de pedir perdão e quem pode outorgá-lo?6

Visivelmente emocionada, a ave deixa que instantes de silêncio permitam ao cérebro assimilar melhor não só a resposta zapatista, como as posições que as forças em jogo vão assumindo. Mas, diante do tabuleiro e da movimentação das peças, a curiosidade fala mais alto:

- “Bom, Nádia, pelo que entendi, tudo parece caminhar rumo a um confronto aberto no qual o poder não tem a menor intenção de poupar esforços para esmagar este levante...”

- “E assim seria se a reação da sociedade civil não surpreendesse os dois lados!”

- “Como assim?!?”

- “No dia 12 de janeiro, enquanto os combates e os bombardeios continuam ocorrendo em várias regiões de Chiapas, dezenas de milhares de pessoas realizam um protesto na Cidade do México para exigir o cessar-fogo, o reconhecimento do EZLN como força beligerante e uma saída política para o conflito. Ao falar deste acontecimento, o Subcomandante Marcos comenta: pensávamos que o povo teria nos ignorado ou teria se jogado na luta conosco. Mas ele não faz nem uma coisa e nem outra. Todas aquelas pessoas que são milhares, dezenas, centenas de milhares de pessoas, milhões talvez, não querem insurgir conosco e nem querem nos deixar combater. Mas não querem que nos aniquilem. Querem que dialoguemos. Isso perturba todas as nossas idéias pré-concebidas e redefine o zapatismo.7

Diante da constatação de que é necessário e urgente estabelecer o diálogo com a sociedade civil, o EZLN começa a trabalhar a linguagem com a qual pretende explicar ao coração as idéias destinadas à cabeça. Não com discursos sentimentalistas, apolíticos ou contrários à teoria, mas sim através de um esforço pelo qual seja possível recolocar a própria teoria ao nível do ser humano, possibilitando partilhar reflexões e experiências. Entre as primeiras tentativas de trilhar este caminho está a carta a um menino, escrita em 06 de março de 1994. Nela, os zapatistas explicam que as armas não são um fim em si mesmo, mas uma etapa necessária que eles próprios almejam ver superada”.

Enquanto pronuncia as últimas palavras, a coruja se aproxima da mochila e, tirando dela um recorte de jornal, lê: “Miguel, sua mãe me entregou a carta com a foto na qual você está com o cachorro. Aproveito a viagem de volta da sua mãe para lhe escrever estas linhas apressadas, que talvez você ainda não compreenda. Porém, tenho a certeza de que um dia, como este em que estou escrevendo, você entenderá que é possível existirem homens e mulheres como nós, sem rosto e sem nome, que abandonam tudo, até mesmo a própria vida, para que outras crianças (como você e não como você) possam levantar-se todos os dias sem ter de calar e sem máscaras para enfrentar o mundo. Quando chegar esse dia, nós, os sem rosto e sem nome, finalmente poderemos repousar debaixo da terra... Bem mortos, claro, mas contentes. (...)

O dia já está morrendo entre os braços noturnos dos grilos e então tive a idéia de lhe escrever para lhe dizer algo que viesse desses “profissionais da violência”, como nos chamam tão amiúde.

É verdade, somos profissionais. Mas nossa profissão é a esperança. Um belo dia, decidimos virar soldados para que noutro dia os soldados não sejam mais necessários. Ou seja, escolhemos uma profissão suicida porque é uma profissão cujo objetivo é de desaparecer: soldados que não são soldados, porque um dia ninguém mais será soldado. Está claro, não é? E parece que estes soldados que não querem mais ser soldados - nós - têm alguma coisa que os livros e os discursos chamam de “patriotismo”. Porque isso que chamamos de pátria não é uma idéia que existe apenas nas cartas e nos livros, mas é um grande corpo de carne e osso, de dor e de sofrimento, de angústia, de esperança de que, um belo dia, tudo mude. E a pátria que queremos terá de nascer também dos nossos erros e dos nossos tropeços. Dos nossos corpos nus e despedaçados deverá surgir um mundo novo. Será que o veremos? É importante vê-lo? Acho que isso não é tão importante como saber que ele nascerá, e que, no longo e doloroso parto da história, nós contribuímos com alguma coisa ou com tudo: vida, corpo e alma. Além de rimarem, amor e dor são irmãos e caminham juntos. Por isso somos soldados que querem deixar de ser soldados. Mas para que os soldados não sejam mais necessários é preciso virar soldado e disparar uma certa quantidade de chumbo quente, escrevendo liberdade e justiça para todos, não para alguns, mas para todos, todos os mortos de ontem e de amanhã, os vivos de hoje e de sempre, por todos aqueles que chamamos de povo e pátria, os excluídos, os que nasceram para perder, os sem nome, os sem rosto.

É muito simples ser um soldado que quer que os soldados não existam mais; basta responder com firmeza ao pedacinho de esperança que os outros - aqueles que não têm nada, aqueles que terão tudo - depositam em cada um de nós. Por eles e por aqueles que partiram durante a caminhada, por esta ou aquela razão, todas elas injustas. Por eles devemos tentar mudar e melhorar um pouco cada dia, cada tarde, cada noite de chuva e grilos. Acumular ódio e amor com paciência. Cultivar a soberba árvore do ódio pelo opressor junto com o amor que combate e liberta. Cultivar a imponente árvore do amor que é vento que limpa e cura, não o amor pequeno e egoísta, mas o grande, o que melhora e faz crescer. Cultivar entre nós a árvore do ódio e do amor, a árvore do dever. E nesta tarefa colocar toda a vida, corpo e alma, coragem e esperança.

Muitas outras cartas e comunicados irão alimentar esse diálogo do EZLN com a sociedade civil. E a força com a qual ele se instaura não está alicerçada somente nas qualidades literárias do Subcomandante Marcos ou na utilização da Internet, mas, como veremos mais adiante, nos fatos e nas relações que os zapatistas vão construir ao longo do tempo”.

- “Pelo que entendi até agora, o povo quer a suspensão do conflito e os guerrilheiros se dispõem ao diálogo. Falta só a resposta do governo!”.

- “É pra já! - diz Nádia enquanto coloca sobre a mesa o pedaço de papel que acaba de ler. Sob fortes pressões internas e externas, no mesmo dia 12 de janeiro, Salinas decreta o cessar-fogo. A bem da verdade, a ação do Exército federal em Chiapas ainda vai se prolongar por alguns dias já que os seus comandantes querem assegurar o controle de posições estratégicas a partir das quais poder fechar o cerco ao redor do território que abriga o EZLN.

Ao que tudo indica, a decisão do governo se baseia em três aspectos. De um lado, agir para eliminar o EZLN significa correr o risco de fazer estourar uma reação em outras regiões. Ao optar pela suspensão dos enfrentamentos, Salinas disputa o apoio popular, tão importante num ano de eleições para a Presidência da República, e consegue manter sob controle uma situação política complexa e instável.

Do outro, o levante zapatista faz aparecer rachaduras no interior do governo e do próprio PRI onde não há consenso para uma saída estritamente militar. E o último fator deve ser procurado tanto no despreparo das tropas para uma guerra na selva, como no fato do adversário não ser alguém de fora. Isso transforma os indígenas num inimigo particularmente indigesto, não no âmbito da superioridade bélica, mas sim quanto aos motivos que permitem legitimar o uso indiscriminado da força”.

- “E os diálogos de paz... Quando começam?”

- “As negociações entre Manuel Camacho Solís, representante do governo, e 19 delegados zapatistas iniciam em 20 de fevereiro na catedral de San Cristóbal de Las Casas, protegidas por um grande cordão de segurança formado pela sociedade civil. Dom Samuel Ruiz Garcia, bispo da diocese, é um dos mediadores dos debates que irão se terminar em 2 de março com a apresentação de um documento que contém a posição do governo em relação ao conflito e sobre o qual as comunidades zapatistas irão se posicionar.

Encerrada a primeira fase das negociações, os delegados do EZLN voltam às montanhas onde continuam seus encontros com representantes da sociedade civil e com um amplo leque das forças políticas do país. É neste momento que jornalistas e repórteres dos mais diferentes meios de comunicação são convidados a entrar em território rebelde. Fotos, dossiês, documentários, entrevistas e reportagens dão a volta ao mundo. Graças a este trabalho, o pessoal de fora descobre como atrás do Exército Zapatista existem comunidades que vivem e se organizam de uma determinada maneira; entende que se trata de um outro mundo com uma organização política própria, um mundo que sobrevive resistindo. Para muitos mexicanos isso é um golpe, percebem que, sem que ninguém soubesse, num canto do país funciona um outro Estado. Um Estado melhor daquele debaixo do qual eles sofrem.8

A consulta dos povos indígenas é interrompida no dia 23 de março em função do assassinato do candidato à Presidência pelo PRI, Luis Donaldo Colossio Murieta. Planejada para resolver o jogo de intrigas que se dá no interior do seu partido, setores da direita mexicana atribuem a sua morte ao EZLN. A tensão se agrava. Os zapatistas declaram-se em alerta vermelho e suspendem o processo de consulta.

Esclarecidos os fatos, um mês e meio depois, Manuel Camacho e o bispo Samuel Ruiz se encontram com o EZLN na tentativa de retomar o diálogo. Em 12 de junho, os zapatistas divulgam o resultado da consulta às suas bases: as comunidades rejeitam as propostas governamentais por elas representarem a mera rendição do grupo armado e decidem dialogar diretamente com a sociedade civil mantendo o cessar-fogo. A estratégia de criar momentos de diálogo e encontros alternativos, de ouvir e perguntar, independentemente do caminhar do processo de negociação oficial, ensaia assim seus primeiros passos”.

- “Bom, ao que tudo indica, o diálogo com o governo federal está em ponto morto... E... Agora... O que é que vai acontecer?”, pergunto instigado pelo desejo de conhecer as etapas que acompanham o impasse causado pelo NÃO zapatista.

A coruja senta, recosta o corpo nos livros amontoados ao lado das folhas do relato e, com a calma de quem prepara mais uma etapa de uma longa viagem, diz:

- “Tenha paciência, pois, a partir de agora vamos ter que lidar com uma longa série de idas e vindas, de encontros e desencontros com a sociedade civil e com o próprio governo. Por isso, procure ficar bem atento porque vamos enveredar nas trilhas abertas pela Segunda Declaração da Selva Lacandona. É sobre elas que vamos falar no próximo capítulo sobre...”

  1. Os rumos da paz... e da guerra.

Ajeitados os papéis, a mão segura a caneta com a firmeza e a decisão de quem, diante de uma longa jornada, sabe não poder se deixar vencer pelo cansaço.

Sentada, Nádia aguarda pacientemente que o instrumento de trabalho seja devidamente posicionado no início da folha na qual vai imprimir as marcas do seu relato. Mais alguns instantes e, apoiando pensativa o queixo na ponta da asa, retoma o fio da meada:

- “Como estava dizendo, os zapatistas rejeitam as propostas do governo federal e, no mesmo dia, dão a conhecer a Segunda Declaração da Selva Lacandona. Nela, o EZLN expressa claramente a decisão de não se render e de continuar em pé de guerra contra o mau governo. 9 O detalhe que não pode passar desapercebido é que não se fala aqui de um enfrentamento a ser travado somente nos campos de batalha, mas sim em todos os momentos da vida em sociedade.

Após as frases de Emiliano Zapata que introduzem exatamente esta realidade, o texto recupera os principais acontecimentos dos meses anteriores e afirma: Hoje não apelamos aos falidos poderes da União que não souberam cumprir o seu dever constitucional e permitiram que o Executivo federal os controlasse. Se esta legislatura e os magistrados não demonstraram dignidade, outros virão e, talvez, serão capazes de entender que devem servir a seu povo e não a um indivíduo. O nosso apelo transcende os seis anos de um mandato ou a eleição que se aproxima. É na sociedade civil que está a nossa soberania, é o povo que, a qualquer momento, pode alterar ou modificar a nossa forma de governo, e o povo já assumiu esta tarefa.

Enquanto continua o processo pelo qual cada um dos atores institucionais é chamado a se confrontar com a realidade, as esperanças populares se concentram nas eleições presidenciais marcadas para 21 de agosto de 1994. Na Segunda Declaração, os zapatistas deixam clara a sua posição tanto a este respeito como em relação á tomada do poder: O EZLN entende que a pobreza mexicana não se explica pela falta de recursos. Além disso, a sua contribuição fundamental é entender e deixar claro que qualquer esforço, numa determinada direção ou em todas, contribuirá apenas para adiar a solução do problema se esta não ocorrer no interior de um novo marco de relações políticas nacionais, regionais e locais: um marco de democracia, liberdade e justiça. O problema do poder não é saber quem será o titular do cargo e sim quem o exerce. Se o poder é exercido pela maioria, os partidos políticos se verão obrigados a confrontar-se com esta maioria e não entre si. O fato de recolocar o poder neste marco de democracia, liberdade e justiça, obrigará a uma nova cultura política no interior dos partidos. Deverá nascer uma nova classe de políticos e, não duvidem, nascerão partidos políticos de novo tipo. Não estamos propondo um mundo novo, mas apenas algo muito anterior a isso: a ante-sala de um novo México. Neste sentido, esta revolução não se concluirá numa nova classe, fração de classe ou grupo no poder, e sim num espaço livre e democrático de luta política. Este «espaço» livre e democrático nascerá sobre o cadáver fétido do sistema de partido de Estado e do presidencialismo. Nascerá uma nova relação política. Uma nova política cuja base não seja o embate entre organizações políticas e sim o embate de suas propostas políticas com as diferentes classes sociais, pois o exercício da titularidade do poder político dependerá do seu apoio real. Dentro desta nova relação política, as diferentes propostas de rumo e de sistema (socialismo, capitalismo, social-democracia, liberalismo, democracia cristã, etc.) deverão convencer a maioria da Nação que sua proposta é a melhor para o país. Mas isso não é tudo. Eles também serão vigiados por este país que estão governando de tal forma que, ao serem obrigados a fazerem com regularidade uma prestação de contas, se submeterão ao veredicto da Nação no que diz respeito à sua permanência na titularidade do poder ou à revogação do seu mandato. O plebiscito é a forma que permite realizar a confrontação Poder x Partido Político x Nação e merece um lugar de destaque na lei máxima do país. A legislação mexicana é demasiado estreita para estas novas relações políticas entre governantes e governados. Faz-se necessária uma Convenção Nacional Democrática da qual emane um governo provisório ou de transição, seja através da renúncia do Executivo Federal ou através da via eleitoral. Convenção Nacional Democrática e Governo de Transição devem desembocar numa nova Constituição sob cujas regras serão convocadas novas eleições. A dor que este processo provocará ao país será sempre menor do prejuízo que pode ser produzido por uma guerra civil. A profecia do sudeste vale para todo o país, podemos aprender do que já ocorreu e tornar menos doloroso o parto do novo México.

- “Se eu não estiver errado, os zapatistas estão propondo que quem mande não mande...”, comento perplexo.

- “Não é bem assim - responde Nádia com a intenção de colocar cada coisa em seu lugar. Na Segunda Declaração estamos diante de uma das primeiras traduções para o mundo não-indígena de uma realidade quotidianamente vivenciada pelas comunidades zapatistas e que pode ser resumida em duas palavras: mandar obedecendo. Ou seja, na vida dos povoados, as autoridades são eleitas não para que exerçam o poder sem consultar as bases que as colocaram no cargo, mas sim justamente para obedecer a elas, para executar as decisões coletivas tomadas em assembléia. Enfim, quem exerce um cargo não manda sobre o povo controlando e dirigindo suas ações, mas é justamente o povo a decidir e acompanhar cada passo dado pelas autoridades eleitas destituindo-as caso elas não cumpram as deliberações coletivas.

Agora, o que é fácil de ser entendido e visto no pequeno universo da comunidade indígena, se torna bem mais complexo quando se trata de fazer com que este dialogue com a realidade do México. Nela, a concepção de poder é a de mandar mandando com o povo no papel de expectador e não de sujeito que discute e define os rumos da vida em sociedade. Da janela aberta pelo levante armado, os zapatistas tentam construir as etapas desse envolvimento sabendo que serão chamados a se posicionar diante das mais diferentes visões de mundo e a dialogar com elas num ambiente eleitoral carregado de expectativas.

Neste sentido, o próprio cessar-fogo assumido pelo EZLN não é sinônimo de renúncia à luta armada, mas sim a medida necessária que permite incorporar as demandas populares, organizá-las, mostrar seus limites e exigir da sociedade civil que leve a sério os compromissos assumidos em relação à paz. O texto é claro: Abrimos nosso caminho de fogo perante a impossibilidade de lutar pacificamente pelos direitos elementares do ser humano. O mais precioso deles é o direito de decidir, com liberdade e democracia, a forma de governo. Agora, é novamente colocada à prova a possibilidade de uma transição pacífica para a democracia e a liberdade: o processo eleitoral de agosto de 1994. Tem aqueles que apostam no período pós-eleitoral pregando a apatia e a desilusão a partir do seu imobilismo. Estes pretendem se beneficiar do sangue dos que vão cair em todas as frentes de batalha, violentas e pacíficas, na cidade e no campo. Fundamentam o seu projeto político no conflito que virá depois das eleições e, sem fazer nada, esperam que a desmobilização política abra novamente a gigantesca porta da guerra. Dizem que serão eles a salvar o país.

Outros apostam na retomada do conflito armado antes das eleições para, aproveitando a ingovernabilidade, perpetuar-se no poder. Assim como ontem usurparam a vontade popular com a fraude eleitoral, hoje e amanhã, no rio agitado da guerra civil pré-eleitoral, pretendem ampliar a agonia de uma ditadura que já dura há décadas, mascarada de partido de Estado. Outros grupos, em suas estéreis visões apocalípticas, percebem que a guerra é inevitável e, por isso, sentam e esperam para ver passar diante de si o cadáver do seu inimigo... ou do amigo. O sectário acha, erroneamente, que basta apertar os gatilhos dos fuzis para criar o amanhecer que o nosso povo espera desde que a noite se fechou sobre o território mexicano com as mortes de Villa e Zapata.

Todos estes ladrões de esperança supõem que por trás de nossa armas esconde-se a ambição e o estrelismo e que isso irá conduzir nossos passos no futuro. Estão enganados. Atrás de nossas armas de fogo estão outras armas, as armas da razão. E ambas são animadas pela esperança. Não permitiremos que eles a roubem de nós.

A esperança de gatilho teve o seu lugar no início do ano. Agora é preciso que espere. É necessário que a esperança que passeia pelas grandes mobilizações volte a assumir o lugar de protagonista que lhe cabe por direito e razão. Agora a bandeira está nas mãos dos que tem nome e rosto, de pessoas boas e honestas que percorrem caminhos que não são os nossos, mas cuja meta é a mesma que nossos passos anseiam. Nossa saudação e esperança são de que eles levem esta bandeira onde ela deveria estar. Nós esperaremos, de pé e com dignidade. Se a bandeira cair, nós saberemos como levantá-la outra vez...

Que a esperança se organize, que comece a caminhar pelos vales e pelas cidades como ontem andou pelas montanhas. Combatam com suas armas, não se preocupem conosco. Saberemos resistir até o fim. Saberemos esperar... e saberemos voltar atrás se de novo se fecharem as portas que impedem à dignidade de caminhar”.

- “Mas nesse turbilhão de expressões políticas que se enfrentam a cada instante, os zapatistas não correm o risco de se perder ou de diluir suas posições?”

- “Não, na medida em que, para eles, dialogar não significa abrir mão da própria identidade, mas sim ouvir e falar a partir dela. Por isso, diante da postura da sociedade civil, os zapatistas não esperam que as coisas aconteçam espontaneamente, mas assumem a iniciativa política, criam movimentos com os quais vão pedir que ela se comprometa de forma organizada a criar as condições para o diálogo e a paz, elementos-chave do seu acreditar na possibilidade de uma saída pacífica para o México. É assim que, após reafirmar suas convicções, o EZLN convoca a realização de uma Convenção Nacional Democrática, soberana e revolucionária, da qual saiam as propostas de um governo de transição e uma nova lei nacional, una nova constituição que garanta o cumprimento legal da vontade popular”.

Neste contexto, a retomada da história da resistência indígena e o convite a integrar-se às forças insurgentes ganha expressões mais explícitas e mantém sua coerência e continuidade com tudo aquilo que descrevemos anteriormente: Irmãos mexicanos: nossa luta continua. A bandeira zapatista continua hasteada nas montanhas do sudeste mexicano e hoje dizemos: não nos renderemos! Diante da montanha falamos com nossos mortos para que a sua palavra nos trouxesse o bom caminho que o nosso rosto encapuzado deve percorrer. Rufaram os tambores e na voz da terra falaram a nossa dor e a nossa história.

“Para todos, tudo” - dizem os nossos mortos. Enquanto não for assim, não haverá nada para nós.

Falem a palavra dos outros mexicanos, toquem o coração daqueles pelos quais lutamos. Convidei-os a caminhar os passos dignos daqueles que não tem rosto. Chamem todos para a resistência, que ninguém receba nada dos que mandam mandando. Façam do não se vender aos poderosos uma bandeira comum para todos. Peçam que não mandem apenas uma palavra de consolo para a nossa dor. Peçam que a partilhem, peçam a eles que se juntem a vocês para organizar a resistência, que rechacem todas as esmolas que vem da mão do poderoso. Que hoje todas as pessoas boas destas terras organizem a dignidade que resiste e não se vende, que amanhã esta dignidade se organize para exigir que a palavra que anda no coração das maiorias tenha a verdade e o respeito dos que governam, que se imponha o bom caminho pelo qual quem manda, manda obedecendo.

Não se rendam! Resistam. Não faltem à honra da palavra verdadeira. Resistam com dignidade nas terras dos homens e mulheres verdadeiros, que as montanhas abriguem a dor dos homens de milho! Não se rendam! Resistam! Não se rendam! Resistam!

Assim falou a palavra do coração dos nossos mortos de sempre. Vimos que a palavra dos nossos mortos é boa, vimos que há verdade e dignidade em seu conselho. Por isso, convocamos todos os nossos irmãos indígenas mexicanos a resistirem conosco. Chamamos a resistirem conosco todos os camponeses, os operários, os empregados, os colonos, as donas de casa, os estudantes, os professores, e todos aqueles que fazem do pensamento e da palavra a sua própria vida. A todos os que têm dignidade e vergonha, os chamamos todos a resistirem conosco, pois o mau governo não quer que haja democracia em nossos territórios. Não aceitaremos nada que venha do coração podre do mau governo, nem umaúnica moeda, nem um remédio, uma pedra, um grão de alimento, nem uma migalha das esmolas que ele oferece em troca do nosso digno caminhar”.

- “Pelo visto, mais uma vez entra em cena a questão da dignidade...”

- “Sim. Esse tema recorrente vai aparecer como um elemento a partir do qual é possível forjar a resistência e a identidade coletivas. Novamente, não temos apelos a um futuro distante, mas tão somente um chamado a fazer com que as pessoas ajam com dignidade e, em nome dela, levantem a cabeça e resistam. Trata-se de um convite a um compromisso concreto bem maior do que aquele que já está sendo vivenciado por elas em suas formas de luta e resistência. O tudo para todos, nada para nós que norteia a construção de uma nova sociedade a partir de baixo incorpora assim os anseios populares de mudança numa linguagem que dá sentido às expressões mais simples e escondidas da quotidiana rebeldia.

A Segunda Declaração da Selva Lacandona deixa claro que o EZLN está disposto a dialogar com a sociedade civil. O cessar-fogo não significa que os zapatistas abrem mão da luta armada. Continuam mantendo intacta sua estrutura militar e sua organização comunitária. A convocação da Convenção Nacional Democrática apenas cria um espaço para que a sociedade civil se organize e demonstre na prática que é possível chegar à democracia, à liberdade e à justiça por um caminho que não seja o das armas.

As cartas estão sobre a mesa. Os fatos revelarão até a que ponto a esperança popular ganha, ou não, as feições da ilusão”.

- “E a tal da Convenção Nacional Democrática, chegou mesmo a acontecer?”

Nádia levanta a cabeça como quem se esforça para lembrar datas, números e lugares. Ordenadas as idéias, a coruja dirige o olhar para a ponta da caneta e, sem titubear, diz:

- “A Convenção Nacional Democrática (CND) inicia em 5 de agosto de 1994 em San Cristóbal de las Casas e se encerra em Guadalupe Tepeyac no dia 9 do mesmo mês. Nesta ocasião, os zapatistas fundam o primeiro Aguascalientes, lugar de encontro permanente com a sociedade civil.

Superando todas as expectativas, cerca de 7 mil pessoas de todos os Estados do México, além de centenas de observadores internacionais e representantes dos meios de comunicação, respondem à convocação zapatista.

No discurso de abertura, a posição do EZLN diante da CND é clara: Queremos dizer, caso alguém esteja duvidando, que não estamos arrependidos de ter insurgido em armas contra o supremo governo, reafirmamos que não nos deixaram outro caminho, não estamos renegando o nosso caminho armado e o nosso rosto mascarado, não nos queixamos pelos nossos mortos, temos orgulho deles, estamos dispostos a dar mais sangue e mais mortes se este for o preço a ser pago para chegar a uma mudança democrática no México.10

Em seguida, ao delinear as expectativas do EZLN, o texto do discurso diz: Esperamos desta CND a organização pacífica e legal de uma luta, uma luta por democracia, liberdade e justiça, a luta que nós fomos obrigados a travar com as armas e com o rosto coberto.

Esperamos desta CND palavras sinceras, palavras de paz, mas não palavras de rendição na luta pela democracia; palavras de paz, mas não palavras de renúncia à luta pela liberdade; palavras de paz, mas não palavras de cumplicidade pacífica com a injustiça.

Esperamos desta CND a capacidade de entender que o direito a definir-se como força representativa dos sentimentos da Nação não é uma resolução que se aprova por votação ou consenso, mas algo que ainda deve ser ganho nos bairros, nos ejidos, nas comunidades indígenas, nas escolas e nas universidades, nas fábricas, nas empresas, nos centros de pesquisa científica, nos centros culturais e artísticos, em todos os cantos do país.

Esperamos desta CND a clareza de perceber que este é só um passo, o primeiro de muitos que será necessário dar em condições até bem mais adversas das atuais.

Esperamos desta CND a coragem de assumir a cor da esperança que muitos mexicanos, incluindo nós, vêem nela de demonstrar-nos que os melhores homens e mulheres deste país colocam a disposição seus meios e suas forças para a transformação que vai ser a única possibilidade, realmente a única possibilidade, de sobrevivência deste povo, a transformação rumo à democracia, à liberdade e à justiça.

Esperamos desta CND a maturidade necessária para não transformar este espaço num acerto de contas interno, estéril e castrador.

Enfim, esperamos desta CND um apelo coletivo a lutar pelo que nos pertence, por aquilo que é razão e direito das pessoas boas, unicamente para o nosso lugar na história. Não é o nosso tempo. Não é a hora das armas, nos colocamos de lado, mas não vamos embora. Esperaremos até que se abra o horizonte ou até que não sejamos mais necessários, até que não sejamos mais possíveis, nós, os mortos de sempre, nós, que temos que morrer para voltar a viver. (...)

Lutem. Lutem sem parar. Lutem e derrotem o governo. Lutem e derrotem a guerra. Lutem e derrotem-nos. A derrota nunca será tão doce se a transição pacífica à democracia, à liberdade e à justiça tiver sido vencedora.11

Mais do que representar o abandono da luta armada e o início da transformação do EZLN numa força civil, a convocação da CND é ao mesmo tempo uma resposta e um desafio às manifestações da sociedade contra a guerra. Se a via pacífica é realmente possível, os fatos a serem produzidos pela Convenção devem falar mais alto do que as palavras. Caso ela fracasse, os zapatistas serão novamente obrigados a sustentar com o fogo o direito de todos a um lugar na história.12

Mas, ao mesmo tempo em que a Convenção Nacional Democrática consegue fazer com que muitas pessoas percebam que têm em comum o desejo de um país diferente, os conflitos no interior de sua direção ameaçam pôr a perder uma oportunidade de reformular a luta democrática da esquerda mexicana e dos movimentos populares. Os vícios da política partidária se sobrepõem às tarefas de construir um movimento capaz de impor derrotas ao partido de Estado e começam a sufocar esta primeira tentativa de organizar a via pacífica.

Enquanto isso, as eleições federais e estaduais realizadas em 21 de agosto são marcadas por protestos e acusações de fraude. No dia 8 de outubro, o EZLN denuncia as provocações militares, o cerco do Exército e a falta de vontade política do governo para caminhar rumo a uma solução pacífica do conflito.

Em primeiro de dezembro, Ernesto Zedillo Ponce de Leon, do PRI, assume a Presidência da República. Com ele no comando do Executivo federal, os zapatistas não demonstram a menor esperança numa possível mudança de rumo da política iniciada por seu antecessor.

No dia 19 do mesmo mês, o EZLN rompe o cerco militar e suas tropas aparecem, da noite para o dia, em 38 novos municípios de Chiapas que são declarados território rebelde. Antes de completar um ano do levante, os zapatistas lançam uma ofensiva política que o mundo vai conhecer pelo nome de Municípios Autônomos em Rebeldia”.

- “Municípios... Autônomos... em Rebeldia...?”, pergunto sem esconder uma certa perplexidade.

- “Sim - responde Nádia sem alterar o tom de voz. Trata-se de municípios cujo território não corresponde à divisão geográfica oficial, determinada pelo Estado, mas sim ao que é estabelecido pelas comunidades indígenas zapatistas que, através deles, vão fortalecer a sua vida coletiva e aprimorar as condições de sua resistência”.

- “Você poderia dizer mais alguma coisa sobre isso?”, peço em tom de súplica.

Nádia pisca os olhos e, fuçando na sua mochila, não se faz de rogada:

- “Agüente firme. Vou falar sobre eles no próximo capítulo”.

  1. Os Municípios Autônomos em Rebeldia.

Apressada, a coruja retira da bagagem alguns papéis nos quais aparecem rabiscos difíceis de serem decifrados pelos humanos. Seus olhos se movimentam ininterruptamente com a pressa de quem não quer deixar os outros esperarem pelas informações já anunciadas. Instantes de silêncio acompanham o repassar das idéias que preencherão este parêntese necessário para entender não só o desenrolar dos acontecimentos como o próprio fortalecimento das condições que garantem a resistência das comunidades indígenas diante do futuro que se aproxima.

Sentindo-se pronta, Nádia apóia as anotações na mesa e se ajeita para dar início ao relato:

- “Nos capítulos anteriores, havia dito que, mesmo antes da chegada do zapatismo, os povoados indígenas garantiam a sobrevivência através da propriedade coletiva da terra, do trabalho pensado e realizado a partir das necessidades e do envolvimento de todos, das decisões tomadas por consenso em assembléias comunitárias, de uma longa tradição de luta e resistência.

O caminhar da guerra leva as comunidades que haviam optado pelo levante armado a se depararem com a necessidade de desenvolver formas de integração capazes de enfrentar as pressões e os problemas oriundos da presença do Exército federal.

A criação dos municípios autônomos marca o início de uma nova etapa na qual vários povoados de uma mesma região somam esforços para garantir a gestão coletiva dos recursos, o apoio recíproco, a defesa diante das agressões militares, os cuidados com a saúde e a educação, a produção dos mantimentos para a própria sobrevivência e para a dos integrantes do EZLN que se mantêm como exército permanente.

Todas as decisões continuam sendo tomadas em assembléias às quais cabe eleger não só as autoridades locais como os representantes para o Conselho Municipal Autônomo. Nesta realidade, ocupar um cargo não significa ter acesso a privilégios, ao contrário, trata-se de aceitar um duplo trabalho com um elevado grau de desprendimento. Nenhum conselheiro ou líder comunitário recebe salário e a comunidade custeia apenas os seus deslocamentos quando estes ocorrem a seu serviço. Além disso, em alguns casos, as autoridades eleitas são ajudadas nos trabalhos da roça para que a sua labuta pela sobrevivência não impeça o atendimento das demandas vindas do exercício do seu mandato.

E tem mais uma coisa que é importante sublinhar. Nenhum cargo é garantido por um determinado período de tempo. Seus ocupantes podem ser destituídos a qualquer momento caso não cumpram as decisões coletivas. Isso vale para as autoridades dos povoados, pelos representantes regionais por elas eleitos, mas também para os delegados de área, de etnia e pelos próprios membros do Comitê Clandestino. Toda autoridade zapatista pode ser criticada junto aos seus superiores: se a comunidade não estiver satisfeita com o seu responsável local, ela o denuncia junto ao responsável regional. É aberto um inquérito, o destituem, fazem uma assembléia e nomeiam outro. O mesmo acontece quando são os representantes locais a terem problemas com a autoridade regional, e assim por diante até a cúpula.13

Ao mandar obedecendo não escapa sequer o Subcomandante Marcos. Quando dizem: «Marcos é o chefe», não é verdade, eles é que são os chefes. Eu assumi o comando sobretudo naquilo que diz respeito às questões militares. Eles me disseram que era pra falar porque eu sei falar espanhol. Os companheiros falam através de mim. São eles que dirigem, eles estabelecem os limites: «você pode dizer isto, aquilo você já não pode dizer; sobre isso você pode falar mais, sobre aquilo não». Eles são os meus chefes e eu tenho o dever de obedecer, eles decidem os limites. 14 Por isso, apesar de ser uma figura internacionalmente conhecida, o seu cargo no EZLN nãoé de «Comandante em Chefe» mas sim de «Subcomandante».

A regular a vida diária dos municípios autônomos não são as leis do Estado, mas as Leis Revolucionárias Zapatistas e, sobretudo, a Lei Revolucionária das Mulheres, já que, em geral, os costumes das etnias não reconhecem nem a igualdade, nem os direitos das mulheres. Para os problemas da convivência quotidiana, a aplicação da justiça segue as normas tradicionais de cada etnia e visa a reparação do dano provocado às pessoas”.

- “Você poderia dar um exemplo?”.

- “Imagine que um dia você se embebeda e destrói a casa do seu vizinho porque o porco dele entrou no seu milharal e comeu o milho; você queria matar o porco, mas este fugiu e você acabou destruindo a casa do vizinho. Neste caso, o Código Penal Federal diz: violação de domicílio, prejuízos à propriedade alheia, contra outras pessoas, etc. e joga você na cadeia. A comunidade não se comporta assim, mas lhediz: você destruiu a casa, então terá que consertá-la e trabalhar uma temporada até pagar pelos prejuízos. Fisicamente, você continua em liberdade, mas é condenado moralmente e terá que reparar o mal que fez ao vizinho debaixo dos olhos de todos. Você é julgado e acompanhado por todos, e isso é o que mais pesa.

Ou, ainda, de acordo com o Código Penal, quem comete um homicídio é preso e mantido no presídio de Cerro Hueco; assim as viúvas serão duas: a do morto e a do assassino. A comunidade diz: Não. Liberdade física, pena moral. Quem matou deve trabalhar para manter a viúva e os filhos, além da própria mulher e dos próprios filhos, é apontado como assassino sem ter mais nenhuma autoridade moral e nem direitos, que é o pior dos castigos”. 15

- “E isso... funciona?”, questiono desconfiado.

- “Em geral, sim. Pois o indígena é muito sensível às pressões da comunidade. Por isso, é o conjunto da comunidade que obriga você a cumprir o seu dever, que pressiona ou reprime caso você não o cumpra.16 Trata-se de algo completamente diferente do que costumamos vivenciar em nosso quotidiano onde prevalece a lógica do tirar vantagem em tudo. Aqui é a intensa vida comunitária dos indígenas a determinar, controlar e fazer cumprir cada uma das decisões coletivas”.

- “Sim, mas, talvez, na criação dos Municípios Autônomos a cúpula do EZLN deve ter colocado o próprio dedo...”, murmuro com o cuidado de quem questiona sem ofender.

A coruja balança a cabeça e a asa direita num duplo sinal de negação enquanto com a outra retira da mochila um pequeno caderno no qual o barro deixou não poucas marcas. Em seguida, folha rapidamente as páginas. Encontrado o que procura, diz:

- “A criação desta nova forma de organização não vem de nenhuma imposição. E a dizer isso não sou eu, pobre representante do mundo animal, mas sim este documento no qual, ao falar do nascimento dos municípios autônomos, suas próprias autoridades afirmam que este tem sido o resultado de um grande consenso e acordo entre as comunidades que compõem a região autônoma e que têm apoiado, de uma maneira ou de outra, as nossas organizações. Não cria divisões e nem usurpa funções. Ao contrário, nos une no mesmo esforço de superar a pobreza em que vivemos, é um esforço para unir-nos e construirmos nós mesmos nossa alternativa de futuro sem que seja necessária nenhuma forma de dependência.17

E a provar isso está também o fato de que, apesar de serem objeto de constantes ações repressivas promovidas pelos governos federal e estadual, a sua implantação se fortalece e se multiplica ao longo do tempo. A explicação para este fenômeno está aqui, no mesmo documento que li agora há pouco. Veja: dizemos a vocês que as ações de repressão e violência empreendidas pelo governo desde o nascimento deste município são parte de uma ampla estratégia para acabar com a nossa tentativa de construir um futuro digno e justo para todos os nossos povos indígenas, para aniquilar o movimento zapatista e independente e para que entremos em conflito com nossos próprios irmãos indígenas que têm todo direito de não partilhar nossas idéias e reivindicações. Isso tem o objetivo de ocultar o verdadeiro conflito de uma vontade verdadeira de construir uma Pátria justa que reconheça e leve em consideração todos os mexicanos, que reconheça o nosso direito a construirmos o nosso futuro a partir dos nossos desejos e potencialidades, garantindo a diferença, porque somos povos diferentes, de criar a verdadeira unidade nacional através da união dos diversos futuros e esforços daqueles com os quais partilhamos e formamos a Nação mexicana. Isso está enfrentando a falta de razão de um governo e de uma estrutura social que diz representar o povo, mas que, na verdade, só representa um grupo de poderes econômicos e políticos que tem um projeto econômico único, um projeto neoliberal que impõe aos demais mexicanos os interesses e os projetos que beneficiarão este mesmo grupo.

Também queremos dizer ao governo e aos militares que são inúteis suas tentativas de aniquilar este e outros municípios autônomos. É tudo inútil porque, à diferença de seus municípios, os nossos não são feitos de funcionários e edifícios, a eles não se impõem as leis e os projetos que nada têm a ver com a nossa realidade, culturas, necessidades e potencialidades sem que haja consenso de nossa parte, não é um modelo que funciona só para alguns que dizem representar-nos.

Nossos municípios autônomos são a esperança de um futuro digno para todos, um futuro baseado na educação voluntária e no respeito às diferenças, incluindo a dissidência. É um futuro que está em consonância com as nossas necessidades, culturas, esperanças e projetos comuns; é um futuro que temos em comum e, por isso, não está nos edifícios e suas leis e sua força não repousam num Estado repressor. Ao contrário, a sua força repousa no coração digno daqueles que o desejam, na maioria de nossos irmãos em mais de 100 comunidades; está na dignidade dos que lutam para vencer sem precisar pedir licença e depender da vontade dos outros. Suas esperanças e possibilidades repousam na nossa história comum, na nossa língua, nos nossos costumes, nos nossos conhecimentos ancestrais, no trabalho quotidiano e comunitário, no desejo de criar um México do qual não sejamos excluídos.

Não estamos nos edifícios que destruíram e sim em cada milharal e potreiro, em cada rio e senda, em cada casa e comunidade daqueles que, como nós, têm o coração verdadeiro e respeitam o irmão diferente; por isso podemos ter e superar a fome e a necessidade de refugiar-nos, agüentar a repressão e a destruição, podemos estar nas montanhas ou na comunidade, no sofrimento e na alegria de cada um de nossos companheiros, ainda que estejam em Cerro Hueco.18

Se quiserem realmente acabar com o nosso sonho, terão que aniquilar-nos em cada um desses lugares, terão que minar nossos corações para acabar com a nossa força e possibilidades, terão que apagar do mapa nossos povos e culturas, terão que reinventar a história. Por isso, poderão acabar com os edifícios, perseguir o nosso conselho, fazer-nos prisioneiros, imputar-nos mil delitos e, inclusive, até nos matar, mas como é possível acabar com a força e a vontade desse futuro que já é nosso? 19

- “Com certeza, tudo isso deve influir na estratégia de luta...”, comento na tentativa de enxergar melhor a ligação entre este momento, a guerra em andamento e a relação com a sociedade civil.

- “É claro que sim, pois os zapatistas não consideram a luta armada como o único caminho no qual concentrar todos os esforços de mudança. Desde o início, a guerrilha propriamente dita é vista como um dos meios, como parte de uma série de formas de luta que vão se somando. Por isso, em alguns momentos, o diálogo das armas pode ser mais importante do que em outros, mas em nenhum deles é visto como o único meio capaz de substituir os demais”.

- “Mas será que esta posição não se deve unicamente à inferioridade militar do EZLN?”

- “Sim e não”, responde a coruja aumentando a curiosidade.

- “Como assim?”

- “Em primeiro lugar, os zapatistas nunca esconderam sua inferioridade militar em relação ao Exército mexicano e têm plena consciência de que este pode derrotá-los se os enfrentamentos se mantiverem neste terreno. Por isso, a apostaé a de fazer com que as pessoas entrem na luta e, com o seu envolvimento, tornem desnecessário o caminho das armas”.

- “Isso... vai dar certo...?”.

- “Só a história pode responder à sua pergunta - diz Nádia sorrindo. Mas, no passado, o México já conheceu uma estratégia que se aproxima da que é proposta pelos zapatistas.

Como afirma o Subcomandante Marcos, trata-se do exemplo de Juarez que, diante da invasão, escolhe não golpear de frente o exército francês, de resistir, de esperar que seja extenuado e que o processo de desgaste na França o obrigue a retirar-se. É a mesma idéia, nos remetemos freqüentemente a este exemplo. No fundo, Juarez, limitou-se a fazer com que o país permanecesse organizado em condições muito difíceis, a impedir que se desagregasse. Nós dizemos: neste momento as pessoas devem ser organizadas para resistir, e, em seguida, terão que ser organizadas para exercitar o poder. Por enquanto, não há nada a exercitar, e depois da reforma eleitoral tem ainda menos do que antes. O fato de ir votar não permitirá resolver os problemas de desagregação social, e como o governo continua a seguir a mesma lógica, as coisas não irão mudar. Esta é a razão pela qual, para nós, é necessário organizar a sociedade: não para pedir alguma coisa ao governo (e nisso me distancio do populismo), mas para resolver os problemas ainda que o governo não o faça. Queremos terra, moradia, saúde, educação e todo o mais, o governo tem o dever de garantir isso ao povo, mas que ele o faça ou não, as comunidades zapatistas trabalham para resolver o problema com seus próprios meios. É o tipo de coisas que a sociedade deveria fazer, organizar-se para resistir ao processo de desagregação antes que se torne irremediável. Antes do pesadelo”.20

- “E... como é que os Municípios Autônomos entram nesta história?”

- “Eles são um exemplo da possibilidade real de construir algo novo a partir de baixo. Acontece que, à diferença de outros movimentos revolucionários que almejam o poder para, em seguida, construir uma nova sociedade, o zapatismo percorre o caminho inverso: desenvolve e fortalece novas relações, se prepara para defendê-las e faz da vida no interior das comunidades o embrião de um modelo de sociedade cuja força questiona a ordem existente e dialoga com as mais diferentes culturas, realidades e movimentos. Ou seja, a base da relação com o México e com o mundo não é o discurso que ainda vai se tornar fato, mas sim o fato que serve de base ao discurso. E por ser parte da realidade faz com que o discurso se torne mais verdadeiro, vivo e palpável.

Os primeiros resultados desta estratégia são apontados pelos zapatistas ao analisar o comportamento dos Municípios Autônomos depois das incursões do Exército federal ao longo do primeiro semestre de 1995.

Na breve história da espada, da árvore, da pedra e da água, o EZLN revela quais são os frutos já colhidos e o caminho que pretende seguir:

«Então a espada falou e disse:

- Eu sou a mais forte e posso destruir todos vocês. O meu fio corta, dou poder a quem me pega e morte a quem me enfrenta.

- Mentira! - disse a árvore. Eu sou a mais forte, tenho resistido ao vento e a mais feroz das tormentas.

A espada e a árvore lutaram. A árvore se ergueu dura e forte e enfrentou a espada. A espada golpeou e golpeou até cortar o tronco e derrubar a árvore.

- Sou eu a mais forte, voltou a dizer a espada.

- Mentira! - disse a pedra. A mais forte sou eu porque sou dura e antiga, sou pesada e compacta.

E a espada e a pedra se enfrentaram. Dura e firme ficou a pedra e lutou contra a espada. A espada golpeou e golpeou e não pôde destruir a pedra, mas partiu-a em muitos pedaços, a espada perdeu o fio e a pedra ficou muito desgastada.

- Empatamos! - disseram a espada e a pedra e as duas choraram sua inútil batalha.

Enquanto isso, a água do riacho já não estava olhando a luta e nada dizia. A espada olhou pra ela e disse:

- Você é a mais frágil de todos! Você não pode fazer nada a ninguém. Eu sou a mais forte! - e a espada se lançou com muita força contra a água do riacho. Houve um grande alvoroço e uma barulheira daquelas, os peixes se apavoraram e a água não resistiu ao golpe da espada.

Pouco a pouco, sem dizer nada, a água voltou a tomar a sua forma, a envolver a espada e a seguir o caminho do rio que a levaria ao grande desaguadouro que os deuses haviam feito para matar a sua sede.

O tempo passou, e a espada na água começou a ficar velha e enferrujada, perdeu o fio e os peixes se aproximavam e gozavam dela sem medo. Lamentando, a espada saiu da água do riacho. Já sem fio e derrotada se queixou, dizendo: sou mais forte do que ela, mas não posso causar-lhe dano, enquanto ela, sem lutar, conseguiu me vencer! (...)

Os antepassados acabavam de contar para eles mesmos a história da espada, da árvore, da pedra e da água, quando disseram: «Há ocasiões em que temos que lutar como se fossemos uma espada diante de um animal, outras em que temos que lutar como a árvore no meio da tormenta, e ocasiões em que temos que lutar como as pedras diante do tempo. Mas, às vezes, temos que lutar como aágua diante da espada, da árvore e da pedra. É esta a hora de tornarmo-nos água e seguir o nosso caminho até o rio que nos leva ao grande desaguadouro onde matam sua sede os grandes deuses, os que deram origem ao mundo, os primeiros».21

É no interior dos Municípios Autônomos que as comunidades se organizam para enfrentar uma longa luta de desgaste e de resistência e a fazer de sua palavra sobre a realidade uma arma que educa, desperta novas rebeldias e faz com que o inimigoseja desmascarado e enfraquecido pelos seus próprios atos.

O período que vamos analisar nas próximas páginas vai visualizar melhor quanto acabo de dizer. Por isso, prepare-se porque está na hora de falar da...

  1. A resposta do poder.

- “Em primeiro de janeiro de 1995, o EZLN divulga a Terceira Declaração da Selva Lacandona. Nela, faz um balanço dos acontecimentos que acompanharam o processo eleitoral, dá eco às acusações de fraude, critica as tímidas reações da esquerda diante das mesmas e reafirma abertamente que, nas condições atuais, as eleições não representam um caminho para a mudança.

Mas, apesar dos acontecimentos nacionais revelarem toda a dificuldade de viabilizar uma transição pacífica para a democracia, os setores organizados da sociedade civil e o povo simples que vai despertando para a necessidade de fazer política estão longe de dar o seu apoio à luta armada. Conscientes desta realidade, e com a CND dando claros sinais de esvaziamento, o EZLN propõe mais uma iniciativa: Hoje, depois da convocação inicial a pegar as armas e, em seguida, a desenvolver a luta civil e pacífica, convocamos o povo do México a lutar POR TODOS OS MEIOS, EM TODOS OS NÍVEIS E EM QUALQUER LUGAR, pela democracia, liberdade e justiça, através desta TERCEIRA DECLARAÇÃO DA SELVA LACANDONA na qual convocamos todas as forças sociais e políticas do país, todos os mexicanos honestos, todos aqueles que lutam pela democratização da vida nacional, a formar um MOVIMENTO PARA A LIBERTAÇÃO NACIONAL que incorpora a Convenção Nacional Democrática e todas as forças que, sem distinção de religião, raça ou ideologia política, são contrárias ao sistema de partido de Estado. Este Movimento para a Libertação Nacional lutará de comum acordo, por todos os meios e em todos os níveis para a instauração de um governo de transição, uma nova constituinte, uma nova constituição e pela destruição do sistema de partido de Estado. Pedimos que a Convenção Nacional Democrática e o cidadão Cuauhtémoc Cárdenas Solórzano liderem este Movimento para a Libertação Nacional, enquanto frente ampla de oposição.

O apelo a Cárdenas para que ele lidere este Movimento parece repousar em três elementos bem precisos:

  1. Desde o início do levante do EZLN, Cárdenas diz claramente que não é recorrendo às armas que se podem resolver os grandes problemas do país.22
  2. Em maio de 1994, ao reunir-se com os representantes do EZLN (que deixavam clara a posição de não participar das eleições e de não apoiar o PRD), ele havia se comprometido a incorporar ao seu programa de governo as reivindicações da Primeira Declaração da Selva Lacandona.
  3. Cárdenas, candidato derrotado do PRD nas eleições para a presidência da República representa ainda a esperança popular de mudança.

Em outras palavras, se ele quer realmente levar a sério os compromissos assumidos, terá que provar isso numa intensa ação política a ser desenvolvida fora do âmbito institucional que submeterá seu discurso, suas posições e sua postura ao crivo da história.

Se a transição pacífica para a democracia é realmente possível, ela terá que se realizar através de ações concretas. Neste sentido, o EZLN apoiará a população civil na tarefa de restaurara legalidade, a ordem, a legitimidade e a soberania nacionais, e na luta pela formação e instauração de um governo nacional de transição para a democracia que tenha as características que seguem:

  1. Que liquide o sistema de partido de Estado e tire o PRI do governo.
  2. Que formule uma nova lei eleitoral para que esta garanta: transparência, credibilidade, eqüidade, participação cidadã não partidária e não governamental, reconhecimento de todas as forças políticas nacionais, regionais ou locais e que convoque eleições gerais em todos os níveis.
  3. Que convoque uma constituinte para a criação de uma nova constituição.
  4. Que reconheça as particularidades dos grupos indígenas, seus direitos a uma autonomia que não seja excludente e a sua cidadania.
  5. Queoriente o programa econômico nacional para que este, deixando de lado a dissimulação e a mentira, favoreça os setores mais despossuídos do país, os operários e os camponeses, que são os principais produtores da riqueza da qual outros se apropriam. 23

As tarefas a serem realizadas pela sociedade civil são claras. Como soldados que lutam para que os soldados não sejam mais necessários os zapatistas também querem a paz. Mas não é uma paz qualquer. É a paz que virá “pela mão da democracia, da liberdade e da justiça para todos os mexicanos”. O diálogo continua e aponta caminhos concretos para a sua realização.

No dia 15, os esforços da CONAI conseguem restabelecer os contactos entre o EZLN e o governo federal, representado por Moctezuma Barragán. Os debates se encerram com dois compromissos: manter abertas as negociações entre as partes e prolongar a trégua. Um novo encontro é marcado para 8 de fevereiro na selva Lacandona”.

- “Será que é desta vez que a coisa vai entrar nos eixos?”, pergunto na esperança de receber a notícia do fim das hostilidades.

Nádia sacode a cabeça e, com ar sério e compenetrado, anuncia um desfecho bem diferente daquele que os fatos pareciam apontar:

- “Infelizmente, no lugar e na data combinados, a esperar os zapatistas estão as tropas do Exército federal com ordens de romper a trégua e prender o comando do EZLN. Aos rebeldes não resta outra escolha a não ser a de fugir e se embrenhar na mata.

Nos dias 9 e 10, são presos um porta-voz de Moctezuma Barragán, um assessor da CONAI e cerca de 20 supostos zapatistas. As Forças Armadas federais avançam sobre os povoados indígenas tomando e destruindo vários deles. Centenas de comunidades são obrigadas a se esconder na selva para não serem vítimas do avanço dos soldados. O saldo da ação governamental não pode ser outro: prisões, torturas, assassinatos, estupros, desalojamentos, povoados fantasma, postos militares nas comunidades e ejidos antes ocupados pelos indígenas e cerca de 30 mil refugiados.

A sociedade civil responde à agressão do Exército com uma onda de grandes mobilizações a nível nacional e internacional que obrigam o governo a deter a guerra e a retomar o caminho de uma solução política para o conflito.

Em 11 de março de 1995, o Congresso da União aprova a versão final da Lei para o Diálogo, a Conciliação e a Paz Digna em Chiapas que garante a imunidade dos membros do EZLN toda vez que, desarmados, estiverem envolvidos em atividades que visam o diálogo entre as partes. A norma legal atribui também um estatuto oficial à Comissão de Concórdia e Pacificação (COCOPA) integrada por 4 legisladores de cada partido que tem bancadas na Câmara e no Senado, um delegado da Assembléia Legislativa de Chiapas e um membro do Executivo estadual. Além de participar das negociações, o papel da COCOPA é de facilitar as mudanças legais que se fazem necessárias em função de possíveis acordos com os rebeldes já que nela estão presentes os representantes das forças políticas que, juntas, detêm a maioria absoluta no Parlamento.

Nos meses seguintes, as negociações conhecem um intenso movimento de idas e vindas, mas com poucos resultados concretos. No dia 8 de junho, os zapatistas propõem à sociedade um grande diálogo nacional através de uma consulta que permita conhecer a opinião popular sobre vários aspectos: as principais reivindicações do povo do México, a necessidade ou não de uma frente de oposição e de uma profunda reforma política, o caminho a ser seguido pelo Exército Zapatista.

De 5 a 11 de setembro, os encontros entre o governo e o EZLN levam a um acordo quanto aos temas a serem trabalhados e aos procedimentos: 1. Direito e Cultura Indígena; 2. Democracia e Justiça; 3. Bem-Estar e Desenvolvimento; 4. Conciliação em Chiapas; 5. Direitos da Mulher em Chiapas; 6. Fim das Hostilidades.

No dia 29 do mesmo mês, os resultados da consulta nacional são entregues ao EZLN. Além de pedir aos rebeldes que se mantenham como força armada, mas sem fazer uso do seu poder de fogo, as respostas de um milhão e 88 mil mexicanos e de 100 mil estrangeiros de 50 países, apontam para a construção de fóruns civis de diálogo e de intervenção na realidade. Diante delas, os zapatistas propõem um grande debate nacional sobre a Reforma do Estado, sem a participação do governo, pedem à COCOPA que apóie a iniciativa e convidam a sociedade civil a iniciar este processo criando comitês civis de diálogo e centros de resistência. A nível internacional, o EZLN anuncia a sua vontade de realizar um encontro intercontinental com os que lutam pela humanidade e contra o neoliberalismo”.

- “Ao que tudo indica, a paz, como as abóboras, parece se ajeitar com o andar da carruagem...”, comento aliviado.

- “Seria muito bom se fosse verdade”, diz a coruja abrindo as asas e com um olhar que anuncia a chegada de más notícias.

- “Como assim?!?”, questiono intrigado.

- “Mesmo apontando o desejo de dialogar com os rebeldes, o governo Zedillo começa a construir as condições rumo a uma saída armada para o conflito. Ou seja, de um lado, procura acalmar a opinião pública com uma postura que parece apoiar a negociação com os zapatistas enquanto, de outro, move as peças do tabuleiro da guerra.

O aumento das tropas passa a ser o maior investimento do governo federal em Chiapas. Se, no início de 1995, o Estado abrigava 7 quartéis e 5 acampamentos militares, no final do mandato de Zedillo, em dezembro de 2002, a soma de ambos perfaz um total de 259 posições. Enquanto os dados do Ministério da Defesa falam em cerca de 30 mil soldados, cálculos não-oficiais garantem que estes não são menos de 70 mil. Trocado em miúdos, temos uma média de um soldados para cada família numa região onde há somente um médico para cada 18 mil habitantes”.

- “O que não entendo, é o papel de um contingente de soldados tão grande num espaço tão pequeno do território mexicano”, murmuro ao coçar a cabeça.

- “É simples - diz Nádia limpando a garganta. Além das barreiras da polícia e do Exército, dos interrogatórios, das prisões arbitrárias, das ameaças, das provocações e dos ataques às comunidades, os soldados têm se dedicado a abrir estradas na selva, destruir colheitas, derrubar casas, centros comunitários, postos de saúde, escolas, bibliotecas, enfim, a aniquilar todo o trabalho que o EZLN vem implantado em várias regiões. Por estes meios, o Exército procura sufocar as relações das comunidades com o mundo externo, dificultar ao máximo a vida no seu interior, debilitar e esgotar as bases de apoio zapatistas e criar uma barreira de contenção à possível expansão do próprio EZLN.

Mas isso não é tudo. Há uma média de um prostíbulo e três pontos de venda de bebidas alcoólicas para cada uma das posições militares existentes no Estado. Longe de ajudar a resolver os problemas sociais, o Exército federal mexicano vai introduzindo novamente o alcoolismo, o uso de drogas, a prostituição e as doenças venéreas até nos territórios onde estas pragas haviam sido eliminadas. Além do mais, os soldados têm se dedicado a ações de contra-insurreição tais como: cortes de cabelo, pequenos consertos, créditos e ajudas materiais aos delatores e aos que abandonam a luta. Por este caminho, o poder trata de esgarçar a identidade coletiva das comunidades indígenas, corromper as consciências, inocular o medo e a delação, derrotar a solidariedade e provocar a dissidência interna. A classe dominante procura demonstrar que está disposta a fazer com que os indígenas paguem um alto preço por sua rebeldia e que só o caminho da submissão e do conformismo produzem os dividendos da caridade governamental.

O problema, para o governo, é que todas estas atividades acabam alimentando os protestos dentro e fora do território mexicano desgastando sua imagem. Para tentar driblar esta situação desconfortável, em 1995, as Forças Armadas começam a treinar vários grupos paramilitares. Ou seja, recrutam civis que, em troca de dinheiro ou de favores, se dispõem a obedecer à lógica governamental realizando o trabalho sujo antes desempenhado pelo exército regular. Ao todo, são formadas 15 organizações desse tipo cujas ações vão ser apresentadas como conflitos entre as próprias comunidades e não como parte da guerra planejada e executada a partir do governo federal.

Entre os grupos que se destacam pela crueldade de sua atuação estão Paz e Justiça e Máscara Vermelha. O primeiro vai agir no norte de Chiapas e sua impunidade chega a tal ponto que ele passa a controlar a entrada e saída de veículos da região. Entre seus maiores feitos, está o atentado contra os bispos Samuel Ruiz Garcia e Raúl Vera López, além de dezenas de indígenas assassinados, mulheres violentadas e milhares de refugiados.

Mas as proezas de Paz e Justiça empalidecem diante das realizações de Máscara Vermelha. São os paramilitares deste grupo a massacrar 45 indígenas que estavam rezando numa capela do povoado de Acteal, em 22 de dezembro de 1997 e a elevar o número de refugiados em mais de 8 mil pessoas.

De acordo com algumas organizações de direitos humanos, até o final do mandato de Zedillo, o saldo macabro da atuação destes contingentes é de 320 mortos e 21 mil refugiados”.

- “Caramba....mas, desse jeito, temos uma guerra que não parece ser uma guerra...”.

- “Exatamente - responde a coruja em tom nada animador. Trata-se do que se costuma chamar de um conflito de baixa intensidade: sem grandes movimentações do Exército federal, o cerco militar e as agressões dos paramilitares procuram isolar e esgotar o EZLN para poder aniquilá-lo. Em outras palavras, não se ataca diretamente o peixe, mas se tenta tirar a água na qual está nadando para que este morra asfixiado”.

- “E... qual é o resultado disso...?”, pergunto preocupado diante das inesperadas notícias da guerra.

- “Felizmente não é nada bom - diz Nádia aliviando as crescentes preocupações. Aos poucos, estas ações vão desgastar o governo de Ernesto Zedillo a ponto de inviabilizar a eleição do seu sucessor, mas este é um assunto sobre o qual vou falar mais adiante. Aliás, onde é que nós estávamos?”

- “No final de 1995”, respondo após consultar as anotações.

- “Bom, isso significa que vamos entrar em 1996 com a Quarta Declaração da Selva Lacandona. O texto, divulgado em 1º de janeiro, traz em si toda a tensão provocada pelos acontecimentos do ano anterior. Suas linhas revelam queos passos do futuro caminhar do EZLN, levam em consideração a sua inferioridade militar, seu potencial de mobilização, o propósito de Zedillo de resolver o conflito pela via militar, a pressão da sociedade civil para uma transição pacífica para a democracia, a postura e a crise dos partidos de oposição.

Nesse contexto, os zapatistas apresentam sua decisão de ajudar a construir uma força política de novo tipo, baseada no EZLN, organizada a nível nacional, que seja parte de um grande movimento opositor e espaço de encontro de quantos trazem em si um desejo de mudança. Uma força política cujos integrantes não desempenhem, nem aspirem desempenhar, cargos de eleição popular ou postos governamentais em quaisquer de seus níveis. Uma força política que não aspire à tomada do poder. Uma força que não seja um partido político.

Uma força política que possa organizar as demandas e propostas dos cidadãos para que quem manda, mande obedecendo. Uma força política que possa organizar os problemas coletivos, mesmo sem a intervenção dos partidos políticos e do governo. Não necessitamos pedir permissão para sermos livres. A função do governo é prerrogativa da sociedade e é seu direito exercer esta função. Uma força política que lute contra a concentração da riqueza em poucas mãos e contra a centralização do poder. Uma força política cujos integrantes tenham como único privilégio a satisfação do dever cumprido.

Uma força política com organização local, estadual e regional, que cresça a partir da base, de sua sustentação social. Uma força política nascida dos comitês civis de diálogo.

Uma força política que se chama Frente porque trata de incorporar esforços políticos não partidários, porque possui muitos níveis de participação e muitas formas de luta.

Uma força política que se chama Zapatista porque nasce com a esperança e o coração indígena que, junto ao EZLN, voltaram a descer das montanhas mexicanas.

Uma força política que se chama de Libertação Nacional, porque sua luta é pela liberdade de todos os mexicanos e em todo o país.

Uma força política com um programa de luta de 13 pontos, os da Primeira Declaração da Selva Lacandona, enriquecidos ao longo de dois anos de insurgência. Uma força política que lute contra o sistema de Partido de Estado. Uma força política que lute pela democracia não apenas na hora das eleições. Uma força política que lute por uma nova constituinte e uma nova Constituição.

A construção da Frente Zapatista de Libertação Nacional (FZLN) vai se dar a partir de centenas de comitês civis de diálogo envolvidos inicialmente na tarefa de debater e formular propostas sobre a Reforma do Estado. Não existe um programa já pronto ao qual as pessoas dão, ou não, a sua adesão. Há, sim, um movimento armado para o qual a construção de uma nova ordem social passa necessariamente pela capacidade de envolver pessoas que, em sua maioria, hoje, se mantém na qualidade de espectadoras da cena social. A Quarta Declaração reafirma um elemento que já vinha sendo trabalhado e moldado desde o início do levante: o EZLN não é a vanguarda de um movimento de massa que luta pelo poder. É parte do fermento que faz a massa crescer, que abre novas perspectivas de enfrentamento e de futuro, que mostra com os fatos que os oprimidos de sempre podem construir algo novo a partir de hoje e apesar das duras condições de exploração às quais estão submetidos.

Sem renunciar à sua identidade indígena e guerrilheira, o EZLN continua abrindo espaços de diálogo com a sociedade através dos quais procura organizar a vontade de mudança que se encontra dispersa numa miríade de organizações e em milhões de pessoas que estão fora delas. A realidade do dia a dia exige que esta esperança seja concretizada, que os oprimidos percebam que é possível subverter a ordem e que isso só depende deles. O despertar da rebeldia e da resistência, estimulado pela ação das comunidades zapatistas, passa assim por uma prática que vai moldando e tornando compreensíveis os passos que se fazem necessários.

Neste sentido, a Quarta Declaração inaugura um longo processo de transformação do EZLN de uma organização armada numa civil, cuja concretização depende dos avanços rumo a uma paz com justiça e dignidade. Este aspecto vai ficar ainda mais claro seis meses depois no discurso que encerra o Fórum Especial sobre a Reforma do Estado no qual se diz: hoje, a Frente Zapatista de Libertação Nacional é a intuição do que podemos ser amanhã. A continuidade da luta que não se vende e não se rende, que está sempre crescendo e, de fora do poder, deve transformar-se na verdadeira ameaça racional contra a estupidez do poder. Os irmãos que se conhecem, que se encontram e que caminham para tornarem-se um único caminho, um caminho novo e melhor. Os irmãos do EZLN e da FZLN. Não há alianças entre o EZLN e a FZLN. Não há isso de que um é o braço armado do outro, e que o segundo é o braço civil do primeiro. Há um caminho do qual falam e que percorrem juntos. O caminho pelo qual andam é novo e vão fazendo-o juntos. Somos a mesma coisa no amanhã que hoje construímos.24

No emaranhado de relações e acontecimentos que fazem a história do México, os zapatistas têm consciência de que não há um caminho pronto, a ser encontrado e seguido, mas que é necessário abrir um que permita alcançar os objetivos propostos”.

- “E se o caminho estiver errado?”, questiono interrompendo bruscamente o relato da coruja.

Nádia pára. Suspira. E entendendo a razão de ser da pergunta responde calmamente:

- “Às vezes só é possível saber disso percorrendo-o. E para esclarecer melhor este aspecto da postura do EZLN, vou usar um trecho do discurso ao qual me referia alguns instantes atrás.

Depois de contar como o Subcomandante Marcos e o Velho Antônio se perderam na mata; como o primeiro indicou um caminho errado após ostentar seus conhecimentos de navegação terrestre, enquanto o segundo, a golpes de facão, abriu uma picada e, no meio da noite, fez com que ambos conseguissem chegar no vilarejo, Marcos pergunta ao Velho Antônio como havia encontrado o caminho de volta:

- Não o encontrei - responde o Velho Antônio. Ele não estava lá. Não o encontrei. Fiz ele, como deve ser feito. Ou seja, caminhando. Você achou que o caminho já estava em algum lugar e que seus aparatos iriam nos dizer onde tinha ficado. Mas não. E logo você achou que eu sabia onde estava o caminho e me seguiu. Mas não. Eu não sabia onde estava o caminho. O que sabia é que tínhamos que fazer o caminho juntos. E assim o fizemos. Assim chegamos onde queríamos. Tivemos que fazer o caminho. Ele não estava lá.

- Mas, por que você me disse que quando alguém não sabe por onde anda tem que olhar pra trás? Não é para encontrar o caminho de volta? Perguntei.

- Não, pois. Responde o Velho Antônio. - Não é para encontrar o caminho. É para ver onde tinha ficado antes, o que aconteceu e o que queria.

- Como assim? Pergunto já sem aflição.

- Sim, pois. Virando-se para olhar para trás você se dá conta de onde ficou. Ou seja, é assim que você pode ver o caminho que não serviu. Se você olha para trás, você se dá conta de que aquilo que queria é voltar e que o que aconteceu foi que você respondeu que tinha que encontrar o caminho de volta. E o problema está aí. Você começou a procurar um caminho que não existe. Tinha que fazê-lo. O Velho Antônio sorri satisfeito.

- Mas, por que você diz que fizemos o caminho? Foi você que o fez, eu apenas caminhei atrás de você. Disse um pouco incomodado.

- Não, pois - continua sorrindo o Velho Antônio. - Eu não o fiz sozinho. Você também o fez porque por um trecho você caminhou na frente.

- Ah! Mas esse caminho não serviu.

- Sim, pois. Serviu porque soubemos que não serviu e então deixamos de andar por ele, ou seja, de fazê-lo, porque nos levou aonde não queríamos e assim pudemos fazer outro que nos levasse. Diz o Velho Antônio.

Fico olhando para ele por um tempo e me aventuro: - Então, você também não sabia se o caminho que estava fazendo iria nos levar até aqui?

- Não, pois. É só caminhando que se chega. Trabalhando, pois, lutando”.

Nádia deixa que um silêncio de reflexão paire entre nós.

O cérebro parece pesar cada palavra com a qual os zapatistas buscam responder aos desafios que a história põe em seu caminhar. Após alguns instantes, uma nova pergunta procura amarrar os fios desta mesma história:

- “Sendo assim, que rumo vão tomar o processo de paz e as relações do EZLN com a sociedade civil?”.

Paciente, a ave sorri, pisca os olhos e, desenhando círculos no ar, dá a entender que vou encontrar isso no próximo capítulo, onde ela vai delinear...

6. O tortuoso caminho da paz.

Pronta para enfrentar o novo desafio, Nádia começa a andar entre as folhas do relato que forram a mesa. Murmurando sons incompreensíveis, parece ordenar os acontecimento que darão cor e forma a mais uma etapa da história do movimento zapatista.

Depois de um “Muito bem... vejamos... sim... pode se por aqui...”, com o qual finaliza o esforço de reunir as idéias, a coruja apóia a asa numa pilha de livros enquanto com a outra espeta o ar para sublinhar que:

- “No dia 3 de janeiro de 1996, se reúne em San Cristóbal de las Casas o Fórum Especial sobre Cultura e Direitos Indígenas que conta com a participação de mais de 500 representantes de 35 dos 56 povos indígenas presentes no território nacional. O encontro se encerra no dia 10 expressando a vontade de construir uma nova organização que, posteriormente, será conhecida como Congresso Nacional Indígena.

Em 16 de fevereiro, após consultar suas bases de apoio, o EZLN chega a um acordo com o governo federal encerrando a primeira das seis rodadas de negociação. Conhecidos como Acordos de San Andrés, do nome do povoado onde foram negociados por dez longos meses, seu conteúdo não se distancia da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho já ratificada pelo México, mas nunca cumprida. Nos documentos finais, o governo se compromete a reconhecer os povos indígenas na constituição federal, a ampliar sua participação e representação política, a garantir o pleno acesso à justiça, a promover suas manifestações culturais, a assegurar a educação, a capacitação, o atendimento das necessidades básicas, a impulsionar a produção e o emprego, a promover os vários aspectos de sua autonomia, inclusive o que diz respeito ao controle e aproveitamento dos recursos naturais.

Mas, no início de março, este bom começo é ofuscado pelo emperrar da segunda mesa de diálogo sobre Democracia e Justiça, pelas ações dos paramilitares e dos corpos policias em algumas comunidades e pela condenação de supostos zapatistas sob a falsa acusação de serem terroristas.

Dando mais um passo para encaminhar as demandas da sociedade civil, em 30 de junho inicia em San Cristóbal o Fórum Especial sobre a Reforma do Estado convocado pelo EZLN com o apoio da COCOPA. Esta atividade reúne cerca de 1300 pessoas entre representantes de várias organizações sociais, políticas, sindicais, bem como de intelectuais e personalidades da política e da cultura. Divididos em oito grupos de trabalho, os participantes definem os pontos que passam a integrar a agenda das negociações sobre Democracia e Justiça.

No final de julho de 1996, os zapatistas realizam o Primeiro Encontro Intercontinental pela Humanidade e contra o Neoliberalismo, do qual participam cerca de 5 mil pessoas vindas de 42 países. No discurso que encerra o evento, o EZLN convida a construir uma rede intercontinental de resistência pela humanidade. Esta rede intercontinental de resistência, reconhecendo diferenças e conhecendo semelhanças, tentará se encontrar com outras resistências no mundo inteiro. Esta rede internacional de resistência será o meio pelo qual as diversas resistências se apóiam umas às outras. Esta rede intercontinental de resistência nãoé uma estrutura organizativa, não tem centro de direção nem de decisão, não tem comando central nem hierarquias. A rede somos todos nós que resistimos.

Após o encontro, o EZLN tenta dar continuidade às negociações sobre Democracia e Justiça, mas o governo propõe deixar de lado este tema e avançar na terceira fase do diálogo sobre Bem-Estar e Desenvolvimento, o que é rechaçado pelos rebeldes. Diante da posição oficial e depois de consultar suas bases, no dia 2 de setembro, os zapatistas se retiram da mesa e colocam cinco condições para restabelecer o diálogo com o governo: 1. A libertação de todos os supostos zapatistas presos; 2. Uma comissão governamental com capacidade de decisão política e que respeite a delegação zapatista; 3. A instalação de uma comissão que acompanhe a implantação do que já foi acordado; 4. Propostas sérias e concretas por parte do governo sobre Democracia e Justiça; 5. Fim da perseguição militar e policial contra as comunidades indígenas e extinção dos grupos paramilitares”.

- “E o governo, como vai responder a esta posição do EZLN”, pergunto com a preocupação de quem vê o céu se fechando ameaçador.

Nádia abaixa a cabeça e, alguns instantes depois, pronuncia as palavras que temia ouvir:

- “Em resposta, Zedillo não só ignora estas condições como aumenta a violência paramilitar na região.

A tensão entre os zapatistas e o governo se agrava na medida em que a proposta de reforma constitucional sobre direitos e cultura indígenas elaborada pela COCOPA no final de novembro de 1996 é aceita pelo EZLN e rechaçada pela Presidência da República. Esta, por sua vez, encaminha ao Congresso uma contraproposta que, na prática, nega os Acordos de San Andrés.

A partir deste momento, o cumprimento dos compromissos assumidos em 16 de fevereiro de 1996 se torna o eixo central das mobilizações dos zapatistas, de boa parte dos povos indígenas do país e de importantes setores da sociedade civil nacional e internacional.

A primeira delas inicia em 8 de setembro de 1997 quando 1.111 delegados rebeldes deixam as comunidades chiapanecas numa caravana que se dirige à Cidade do México com o objetivo de mobilizar a sociedade civil, explicar as causas do levante, a situação de militarização e paramilitarização do Estado, divulgar os Acordos de San Andrés protestando por seu descumprimento e recolhendo adesões em torno do projeto de lei apresentado pela COCOPA.

Em 12 de setembro, os delegados participam do Congresso de Fundação da Frente Zapatista de Libertação Nacional. Em sua mensagem, o EZLN explica sua posição em relação à Frente e diante das crescentes possibilidades de uma retomada do conflito em terras chiapanecas:

Muitos de vocês, como muitos mexicanos, devem estar se perguntando porque os zapatistas não estão no interior da FZLN, dentro da organização cuja formação convocaram. Muitos se perguntam porque viemos só para observar o seu congresso e não para participar diretamente dele. Muitos se perguntam porque, nos últimos dias, temos declarado mais de uma vez que o EZLN não integrará a FZLN e que ambas serão organizações irmãs, porém distintas. Tudo tem uma resposta.

O responsável pelo fato de não estarmos juntos com vocês como parte da FZLN é o mau governo. É o governo que se nega a atender nossas justas demandas. É o governo que nos obriga a permanecer com o rosto coberto e a mão armada. É o governo que nos nega toda a possibilidade de uma saída política e pacífica, justa e digna para continuar lutando. É o governo que nos mantém separados. É o governo que quer nos render com as declarações de seus funcionários, dizendo que em breve vamos nos transformar em força política, que já não há guerra no sudeste mexicano, que a ameaça armada dos zapatistas já não existe mais. É o governo que mentiu dizendo que os zapatistas deixavam as armas sem ter conseguido nada e entravam para a vida institucional da política mexicana.

Não é assim. Não vamos nos transformar numa força política civil e pacífica, a guerra no sudeste mexicano continua e nós zapatistas continuamos armados e prontos para o combate. O EZLN continua desafiando o supremo governo com as armas, com a razão e com a história.

Esta é a verdade, irmãos e irmãs da Frente. Em nossas montanhas continua flutuando a cor preta da dor e o vermelho do amanhã que pinta a nossa bandeira.

Continuarão assim até que nossas demandas sejam satisfeitas e cumpridas e até que a luta armada se converta em um absurdo e em um obstáculo para a transformação revolucionária do nosso país. É por isso que o EZLN continua armado, clandestino, rebelde e vivo”.25

Cinco dias depois, ao se despedir da Cidade do México, deixam claro que continuarão a fazer o possível para que sejam as ações civis e pacíficas a construírem a paz para os mexicanos”.

- “Isso vai deter as agressões contra as comunidades...?”, indago na esperança de uma resposta positiva.

A coruja cruza as asas diante do peito e, com expressão séria, balança a cabeça jogando por terra as expectativas que acompanhavam a pergunta. Em seguida, pisca os olhos e transforma em palavras o que os gestos já deixavam entender:

- “Contando com o apoio do Exército e dos governos federal e estadual, a atuação dos paramilitares se torna mais forte e incisiva no final de 1997. O atentado à caravana na qual viajava o bispo Samuel Ruiz e o massacre de Acteal revelam que o conflito chiapaneco tende a ganhar novas feições. Se as reações da sociedade civil nacional e internacional impedem que as agressões contra as comunidades zapatistas enveredem pelo caminho da matança indiscriminada, elas não conseguem deter a criação de novos grupos paramilitares e o aumento dos efetivos militares em Chiapas.

Enquanto isso, os mesmos representantes do poder que bancam o aumento das hostilidades em território rebelde aparecem nos meios de comunicação propondo a retomada do diálogo com os zapatistas.

As provocações se multiplicam e uma reação armada do EZLN é tudo o que o governo quer para legitimar o fim do cessar-fogo e tentar desferir o golpe final. Cientes desta realidade, os zapatistas optam por manter-se em silêncio e suspendem por vários meses a divulgação dos comunicados, deixando que só as comunidades e os municípios autônomos denunciem o desenrolar dos acontecimentos.

O texto da Quinta Declaração da Selva Lacandona, divulgado em 17 de julho de 1998, vai revelar as razões desta opção e os resultados alcançados. “O governo trouxe a guerra, não obteve nenhuma resposta, mas continuou praticando os seus crimes. O nosso silêncio despiu o poderoso e o mostrou assim como ele é: uma besta criminosa. Vimos que o nosso silêncio evitou que a morte e a destruição pudessem aumentar. Assim foram desmascarados os assassinos que se escondem sob os trajes do que chamam “Estado de Direito”. Arrancado o véu que os escondia, apareceram os covardes e os medrosos, os que brincam com a morte para obter lucros, os que vêem no sangue alheio uma possibilidade de ascensão, os que matam porque o matador recebe aplausos e homenagens. Aquele que governa se despiu de sua última e hipócrita roupagem. “A guerra não é contra os indígenas”, disse enquanto perseguia, encarcerava e assassinava os indígenas. A sua própria guerra o acusou de ser um assassino enquanto o nosso silêncio o acusava.

Vimos o poderoso governo irritar-se ao não encontrar nem o adversário e nem a sua rendição, foi então que o vimos voltar-se contra outros e golpear os que não percorrem o nosso mesmo caminho mas levantam as mesmas bandeiras: líderes indígenas honestos, organizações sociais independentes, mediadores, organizações não governamentais coerentes, observadores internacionais, simples cidadãos que querem a paz. Vimos todos estes irmãos e irmãs serem golpeados e vimos que não se rendiam. Vimos o governo bater em todos e, procurando reduzir nossas forças, o vimos aumentar o número dos seus inimigos.(...)

Vimos que ao nosso silêncio se somou a vontade de grupos e de pessoas boas que, nos partidos políticos, levantaram a sua voz e a sua força organizada contra a mentira e assim foi possível bloquear a injustiça e a farsa que se pretendia levar adiante como lei constitucional dos direitos indígenas quando tudo não passava de uma lei para a guerra.

Calando, vimos que podíamos ouvir melhor vocês e os ventos debaixo e não só a voz áspera da guerra de cima.

Mantendo-nos calados, vimos que o governo enterrou a legitimidade que vinha da vontade de paz e a razão como rumo e caminho a ser seguido. O vazio deixado pela ausência da nossa palavra marcou a palavra vazia e estéril daquele que manda mandando, e isso convenceu outros que não nos escutavam e nos olhavam com desconfiança. Assim, em muitos se afirmou a necessidade de uma paz que tenha como características a justiça e a dignidade.

Em seguida, o EZLN anuncia que vai realizar uma consulta nacional sobre o projeto de reforma constitucional em matéria de direitos e cultura indígenas elaborado pela COCOPA e pelo fim da guerra de extermínio”.

- “Em meio a este clima de guerra, vai ser difícil a consulta ter condições de se realizar...”, comento incrédulo.

- “Mas ela irá acontecer. Não pelo desejo do governo, obviamente, mas sim pelo esforço com o qual, tanto os zapatistas, como a sociedade civil, vão construir as etapas que a tornarão possível. É assim que, sem contar com o apoio dos meios de comunicação, em 21 de março de 1999, as mesas coletoras instaladas para este fim vão somar um total de 2 milhões 854 mil 737 votos, mais de 90% dos quais dizem sim às reivindicações do EZLN”.

- “E o poder... como reage?”

- “Levando adiante as costumeiras ações de contra-insurreição, os governos federal e estadual montam uma encenação na qual um grupo de paramilitares do Movimento Indígena Revolucionário Antizapatista, disfarçados de guerrilheiros, se rendem às Forças Armadas entregando suas armas e uniformes.

Desmascarada a farsa, o poder não se dá por vencido. Em 7 de abril de 1999, contingentes da Segurança Pública do Estado de Chiapas ocupam a sede do Conselho Municipal Autônomo de San Andrés. No dia seguinte, cerca de 3 mil indígenas das bases de apoio do EZLN retomam pacificamente as instalações e devolvem a administração do município às autoridades rebeldes.

Em seguida, tropas do Exército federal ocupam a comunidade zapatista de Amador Hernández, cujos habitantes se opunham à construção de uma estrada planejada para facilitar os deslocamentos dos soldados na selva e a pilhagem dos recursos naturais da região. Na ocasião, os rebeldes montam um plantão de resistência permanente diante do acampamento militar que vai ser desativado só depois da completa retirada do Exército.

O ano de 1999 termina com as comunidades zapatistas resistindo firmemente às investidas militares e paramilitares e com o governo que se desgasta diante da população em função das ações de sua máquina de guerra.

Nas semanas seguintes, os partidos políticos passam por uma acentuada turbulência pré-eleitoral em meio à qual vão definindo seus candidatos, alianças, estratégias de campanha e discursos em relação à situação chiapaneca.

Após uma acirrada luta interna, Francisco Labastida Ochoa, um dos principais promotores e executores da guerra em Chiapas, é o candidato do PRI à Presidência da República. Cuauhtémoc Cárdenas, do PRD, vai disputar o pleito pela terceira vez, enquanto Vicente Fox, ex-gerente da Coca Cola e ex-governador do Estado de Guanajuato, sai pelo Partido da Ação Nacional (PAN).

O EZLN se recusa a entrar no jogo eleitoral e, no comunicado do dia 19 de junho, dá a conhecer a sua posição: o tempo eleitoral não é o tempo dos zapatistas. Não só pelo nosso estar sem rosto e pela nossa resistência armada. Também, e, sobretudo, por nosso afã em encontrar uma nova forma de fazer política que pouco ou nada tem a ver com a atual (...). Na idéia zapatista a democracia é algo que se constrói a partir de baixo e com todos, inclusive com aqueles que pensam diferente de nós. A democracia é o exercício do poder o tempo todo e em todos os lugares.

O pleito de 2 de julho põe fim a 71 anos de governo do PRI. Este acontecimento é lido pelos rebeldes como a manifestação de uma multidão anônima que diz “não” à continuidade do sistema, mas alerta que a eleição de Vicente Fox não representa a transição, tão desejada, para a democracia.

Em 2 de dezembro, um dia após a posse, o EZLN convoca uma coletiva de imprensa no povoado de La Realidad durante a qual são lidos 4 comunicados. O primeiro, dirigido ao Presidente Fox, apresenta a posição do EZLN diante do seu mandato: Mais de uma vez, durante estes quase sete anos, nós zapatistas temos insistido na via do diálogo. Fizemos isso porque temos um compromisso com a sociedade civil que exigiu de nós que calássemos as armas e tentássemos um acordo pacífico.

Agora que você assume a titularidade do Poder Executivo federal, deve saber que, além da guerra do sudeste mexicano, herda a possibilidade de escolher como irá enfrentá-la.

Durante a sua campanha e a partir do dia 2 de julho, você, senhor Fox, tem dito mais de uma vez que vai escolher o diálogo para enfrentar as nossas reivindicações. Zedillo disse a mesma coisa durante os meses que antecederam a sua posse e, todavia, dois meses depois da mesma, ordenou uma grande ofensiva militar contra nós.

Você deve entender porque a desconfiança em relação a tudo o que é governo, independentemente do partido político ao qual pertence, já tem marcado de forma indelével o nosso pensamento e o nosso caminhar.

Se à nossa compreensível desconfiança diante da palavra do poder acrescentamos o monte de contradições e leviandades que você e aqueles que o acompanham têm despejado sem visão alguma, é também meu dever assinalar-lhe que com nós zapatistas (e acredito que não só com os zapatistas) você parte do zero no que se refere à credibilidade e confiança.

Não podemos confiar em quem demonstrou superficialidade e ignorância ao apontar que as reivindicações indígenas se resolvem com “fusca, televisão e banquinha de camelô”.

Não podemos dar crédito a quem pretende “esquecer” (isto é, “anistiar”) as centenas de crimes cometidos pelos paramilitares e seus patrões outorgando-lhes a impunidade.

Não nos inspira confiança quem, com a curta visão da lógica gerencial, tem como plano de governo o de transformar os indígenas em mini-micro-empresários ou em empregados do empresário dos seis anos deste mandato. No fim das contas, este plano nada mais é a não ser a tentativa de continuar com o etnocídio que, sob diferentes modalidades, o neoliberalismo leva adiante no México.

Por isso é bom que você saiba que nada disso irá prosperar em terras zapatistas. O seu programa “desapareça um indígena e se crie um empresário” não será permitido em nossas terras. Aqui, e sob muitos outros céus mexicanos, o ser indígena não tem a ver só com o sangue e a origem, mas também com uma visão da vida, da morte, da cultura, da terra, da história, do amanhã.

Os que tentaram nos aniquilar com as armas têm fracassado. Fracassarão os que tentam eliminar-nos transformando-nos em “empresários”.

E encerra dizendo: Senhor Fox: durante mais de seis anos, o seu predecessor, Zedillo, fingiu ter vontade de dialogar e nos fez guerra. Escolheu o enfrentamento e perdeu. Agora você tem a oportunidade de escolher. Se escolher a via do diálogo sincero, sério e respeitoso, apenas demonstre a sua disposição com os fatos. Tenha certeza de que terá uma resposta positiva por parte dos zapatistas. Assim, o diálogo poderá ser retomado e, logo, a paz verdadeira começará a ser construída.

O segundo comunicado dá a conhecer os sinais mínimos que, uma vez cumpridos, trarão os zapatistas de volta à mesa do diálogo: a aprovação do projeto de Reforma Constitucional elaborado pela COCOPA em matéria de direitos e cultura indígenas, a libertação de todos os zapatistas presos dentro e fora de Chiapas, a completa retirada de 7 das 259 posições que o Exército federal mantém no Estado.

No terceiro, os rebeldes anunciam que uma delegação de 24 membros do Comitê Clandestino Revolucionário Indígena vai realizar uma marcha até a Cidade do México para demandar ao Congresso da União a aprovação do projeto da COCOPA. E no último dos quatro comunicados, aceitam Luiz H. Alvarez como representante do governo para os contatos com o EZLN e as futuras negociações de paz”.

- “Pelo visto, estão apostando em outra mobilização de massa?”, pergunto levado pela curiosidade.

Nádia sorri. E colocando a asa no me ombro diz:

- “Só mais um pouco de paciência e verá que tudo isso será tratado no próximo capítulo onde vou falar de...”

    7. Da marcha à Cidade do México à traição dos Acordos de San Andrés

- “Você precisa saber...- diz a coruja ao ir vagarosamente em direção ao dicionário no qual se apóia - que uma das primeiras medidas do Presidente Fox é enviar ao Congresso, já no dia 5 de dezembro de 2000, o projeto de Reforma Constitucional da COCOPA como se fosse uma iniciativa da própria Presidência da República”.

- “Bom, isso significa que há boas notícias na parada!”, interrompo entusiasmado pelo rumo que os acontecimentos parecem tomar.

Mas a empolgação é logo esfriada pela ave com um “Espere! Ainda é cedo para comemorar!”, que chega a dar arrepios. Em seguida, Nádia limpa a garganta e retoma, séria, o seu relato:

- “Os zapatistas sabem que a atitude do novo Presidente não passa de uma jogada de marketing, de fato, após o seu gesto, Fox não faz o menor esforço para convencer os parlamentares da importância de aprovar o projeto da COCOPA.

Por isso, no dia 12 de janeiro, sétimo aniversário do cessar-fogo, milhares de indígenas chiapanecos com o rosto coberto tomam as ruas de San Cristóbal e deixam clara sua firme vontade de recorrer ao diálogo para pôr fim ao conflito.

Enquanto fervem os preparativos da marcha, a elite se divide em relação a ela. Os discursos vão da ambigüidade das intervenções de Fox à posição do presidente da Mesa Diretora da Câmara dos Deputados, Ricardo Garcia Cervantes, para o qual a mobilização zapatista é ilegal e os rebeldes, apesar de respaldados pela Lei para o Diálogo e a Conciliação, poderiam ser detidos.

Apesar das ameaças vindas de vários setores, em 24 de fevereiro, a delegação do EZLN sai da selva e, usando a palavra e a legitimidade de sua luta como armas, inicia a marcha rumo à Cidade do México. Ao todo, serão seis mil quilômetros por 13 Estados da federação nos quais os zapatistas vão marcar presença em 77 atos públicos.

No meio do caminho, a caravana rebelde participa do Congresso Nacional Indígena, em Nurio, Estado de Michoacán. Encerrados os trabalhos, os delegados se pronunciam a favor da aprovação do projeto da COCOPA, reivindicam a desmilitarização de todas as regiões do país ocupadas por seus povos e a libertação de todos os indígenas presos por ter lutado em defesa da autonomia e dos demais direitos de suas populações.

Em 11 de março, diante de uma multidão que lota a praça principal da Cidade do México, a delegação zapatista reafirma a posição e as características do seu movimento:

Irmão, irmã indígena e não indígena:

Somos um espelho.

Estamos aqui para ver-nos e mostrar-nos, para que você olhe para nós, para que você se olhe, para que o outro se veja no nosso olhar.

Estamos aqui e somos um espelho.

Não a realidade, e sim apenas o seu reflexo.

Não a luz, e sim apenas uma centelha.

Não o caminho, e sim apenas alguns passos.

Não o guia, e sim apenas um dos tantos rumos que levam ao amanhã.

Irmão, irmã da Cidade do México:

Quando dizemos o que somos, dizemos também o que não somos e o que não seremos.

Por isso é bom que, aquele que, lá em cima, é o dinheiro e quem o apregoa, anote a palavra, a ouça atentamente e a observe atentamente aquele que não a quer ver.

Não somos daqueles que aspiram a assumir o poder e, a partir dele, impor o passo e a palavra. Não seremos isso.

Não seremos daqueles que colocam um preço à própria dignidade ou à alheia, e transformam a luta num mercado onde a política é ação de mercadores que não disputam projetos e sim clientes. Não seremos isso.

Não somos daqueles que esperam o perdão e a esmola de quem faz de conta que ajuda quando, na realidade, compra, não perdoa e sim humilha quem, pelo simples fato de ser como é, é desafio, queixa, reivindicação e exigência. Não seremos isso.

Não somos daqueles ingênuos que esperam que venha de cima a justiça que só cresce a partir de baixo, a liberdade que só se consegue com todos, a democracia que é a base de tudo e pela qual se luta o tempo todo. Não seremos isso.

Não somos a moda passageira que, tornada monótona, é arquivada no calendário das derrotas que este país faz brilhar com saudade. Não seremos isso.

Não somos o cálculo astuto que simula a palavra e nela esconde uma nova impostura, não somos a paz hipócrita que anseia a guerra eterna, não somos quem diz três e, logo em seguida, dois ou quatro, tudo ou nada. Não seremos isso.

Não somos o arrependido de amanhã, aquele que se transforma na imagem ainda mais grotesca do poder, aquele que simula sensatez e prudência onde não houve outra coisa a não ser a compra e a venda. Não seremos isso.

Somos e seremos mais um na marcha.

A da dignidade indígena.

A da cor da terra.

A que revelou e velou os muitos méxicos que debaixo do México se escondem e sofrem.

Não somos o seu porta-voz.

Somos uma voz entre todas as vozes.

Um eco que repete dignidade entre todas as vozes.

A elas nos unimos, com elas nos multiplicamos.

Continuaremos sendo eco, somos e seremos voz.

Somos reflexão e grito.

Seremos sempre isso.

Podemos ser com ou sem rosto, armados ou não de fogo, mas somos zapatistas, somos e sempre seremos.

- “Confesso que não é fácil compreender a lógica do EZLN. Ao mesmo tempo em que mobiliza milhões de pessoas parece se furtar a dirigir a luta no país...”, murmuro desconcertado.

- “Talvez, para entender isso, além de lembrar do tudo para todos, nada para nós, que sempre norteou sua ação, devemos resgatar o momento em que se encontra o próprio EZLN. Neste sentido, é importante retomar alguns trechos da entrevista realizada pela revista Cambio, através de Gabriel Garcia Marques e Roberto Pombo, logo após o discurso na Cidade do México.

Ao ser perguntado sobre o quanto de militar está presente no Exército Zapatista, como descreve a guerra na qual tem lutado e o fato do EZLN não se colocar como vanguarda, o Subcomandante Marcos responde dizendo que o militar é uma pessoa absurda que tem que recorrer às armas para poder convencer o outro de que sua razão é a razão que deve vingar, e neste sentido o movimento não tem futuro se o seu futuro é o militar. Se o EZLN se perpetua como uma estrutura armada militar, caminha para o fracasso. Para o fracasso como opção de idéias, de posição diante do mundo. E, fora isso, o pior que pode acontecer com ele seria chegar ao poder e se instalar como um exército revolucionário. Para nós, seria um fracasso.

O que seria um sucesso para uma organização político-militar das décadas de 60 e 70, nascida com os movimentos de libertação nacional, para nós seria um fracasso. Temos visto que, no fim, estas vitórias eram fracassos ou derrotas ocultas atrás de sua própria máscara. Que aquilo que ficava pendente era sempre o lugar das pessoas, da sociedade civil, do povo. Que, enfim, é uma disputa entre duas hegemonias. Há um poder opressor que, de cima, decide pela sociedade, e um grupo de iluminados que decide levar o país pelo bom caminho e desloca este outro grupo de poder, toma o poder e também decide pela sociedade. Para nós esta é uma luta de hegemonias, e sempre há uma boa e uma má: a que vai ganhando é a boa e a que vai perdendo é a má. Mas para o resto da sociedade as coisas não andam no que é fundamental.

No EZLN chega o momento em que se vê superado pelo que é o zapatismo. A letra E da sigla fica bem reduzida, com as mãos amarradas, de tal forma que, para nós, não só não representa um peso nos mobilizarmos sem armas, como, em certo sentido é também um alívio. De fato, a responsabilidade pesa menos do que antes e sentimos que pesa menos a parafernália militar que um grupo armado necessariamente carrega na hora de dialogar com o povo. Não se pode reconstruir o mundo, nem a sociedade, nem reconstruir os estados nacionais, agora destruídos, sobre uma disputa que consiste em quem vai impor sua hegemonia na sociedade. O mundo e, concretamente, a sociedade mexicana, são compostos por diferentes e a relação deve ser construída entre estes diferentes com base no respeito e na tolerância, coisas que não aparecem em nenhum dos discursos das organizações político-militares das décadas de 60 e 70. A realidade veio passar a conta, como sempre acontece, e para os movimentos armados de libertação nacional o custo da fatura tem sido muito alto. (...)

Toda vanguarda supõe ser a representante da maioria. No nosso caso, pensamos que isso não só é falso como, na melhor das hipóteses, não passa de um bom desejo, e, na pior, é um claro exercício de suplantação. Na hora em que se colocam em jogo as forças sociais, se percebe que a vanguarda não é tão vanguarda e que os representados não se reconhecem nela. Na hora em que o EZLN está renunciando a ser vanguarda, está reconhecendo o seu horizonte real. Crer que podemos fazer isso, que podemos falar por estes além de nós, é masturbação política. E em alguns casos nem sequer é isso porque nem sequer se sente o prazer do orgasmo. É só o que se pode obter dos panfletos que quem faz é o mesmo que os consome. Estamos tratando de ser honestos com nós mesmos e alguém pode dizer que é uma questão de bondade humana. Não. Inclusive, podemos ser cínicos e dizer que o ser honesto deu resultado quando dizemos que só representamos as comunidades indígenas zapatistas de uma região do sudeste mexicano. Mas o nosso discurso tem conseguido atingir muito mais gente. Chegamos até aí. Nada mais. Em todos os discursos que fomos soltando ao longo desta marcha estávamos dizendo às pessoas e estávamos dizendo a nós mesmos que não podíamos nem devíamos começar a encabeçar ou levantar as bandeiras de luta que íamos tocando. Nós supúnhamos que o México de baixo estava muito à flor da pele, que havia muitas injustiças, muitas reclamações, muitas feridas... Em nossas cabeças fazíamos a imagem de que quando iniciasse a nossa marcha teríamos que levar um arado para ir levantando a terra e que isso iria surgindo. Nós tínhamos que ser honestos e dizer às pessoas que não vínhamos encabeçar nada disso.(...)

Em cada praça fomos dizendo a todos: «não viemos dirigir vocês, não viemos dizer-lhes o que fazer, mas sim viemos pedir-lhes ajuda». Mesmo assim, ao longo da marcha recebemos papéis e mais papéis contendo reivindicações que vinham de antes da revolução mexicana à espera de que alguém resolva o problema. Se pudéssemos resumir o discurso da marcha zapatista até hoje seria: «Ninguém vai fazer isso por nós». É necessário mudar as formas de organização, e inclusive refazer a ação política para que isso seja possível. Quando dizemos «não» aos líderes, no fundo estamos dizendo «não» também a nós mesmos”.26

Resumindo, mesmo não conhecendo as ponderações de ordem tática e estratégica de sua intervenção, a prática do EZLN revela uma grande coerência em relação às posições expressas nesta entrevista. Até o momento, a materialização desta postura, não só foi capaz de desmascarar o poder, como de construir pontes com os mais variados movimentos da sociedade civilpara fazer com que as pessoas assumissem para si a difícil tarefa de pensar e construir um mundo novo”.

A coruja faz uma pausa. Com a ponta das asas apoiadas nas bochechas, solta um “Onde é que nós estávamos?!?”, que sinaliza a necessidade de retomar o rumo do relato.

- “Pelo que lembro, logo após a manifestação na chegada da delegação zapatista à Cidade do México”.

- “É isso mesmo! - responde Nádia satisfeita em achar o fio da meada. Os dias que seguem são marcados por intervenções com as quais a delegação zapatista procura garantir a possibilidade de ocupar a tribuna do Congresso Nacional para falar com os parlamentares.

Na tentativa de impedir o acesso ao plenário do Legislativo, deputados e senadores convidam a delegação do EZLN a um encontro com algumas de suas comissões, o que é rechaçado pelos zapatistas. Mas, diante do anúncio de retornoàs montanhas do sudeste mexicano, e por uma estreita margem de votos, os legisladores acabam admitindo a presença dos rebeldes no Parlamento.

No dia 28 de março, a Comandante Esther é a primeira a discursar diante de uma platéia de mais de 200 deputados e senadores. Dado este passo, a caravana começa a viagem de volta.

Em abril, o Congresso mexicano inicia as discussões sobre o projeto de Reforma Constitucional da COCOPA. O resultado final, aprovado nas duas Câmaras com o apoio do próprio PRD e ratificado por Vicente Fox, consegue ser pior da proposta de Zedillo. No dia 29 do mesmo mês, um comunicado do EZLN considera o texto aprovado como uma traição dos Acordos de San Andrés e do projeto da COCOPA. Além disso, deixa claro que, com esta medida, os legisladores federais e o governo Fox fecham as portas do diálogo e da paz, pois evitam resolver uma das causas que deram origem ao levante zapatista e, ao invalidar um processo de diálogo e de negociação, dão razão de ser aos diferentes grupos armados do México.

Ao romper o diálogo com o governo, o EZLN convoca a sociedade civil e o Congresso Nacional Indígena a mobilizar-se para obrigar o governo a anular a reforma recém-ratificada. Em seguida, inicia um período de silêncio que será rompido somente um ano e meio depois”.

- “E... agora... o que é que vai acontecer?”.

Nádia coça a cabeça e permanece pensativa por alguns instantes. Com o olhar fixo nas linhas do relato movimenta o bico como quem procura as palavras apropriadas para delinear uma situação de desfecho incerto. Ordenadas as idéias, a ave retoma a reconstrução dos acontecimentos:

- “Atordoada pela insensibilidade do Legislativo e do Executivo, a sociedade civil sente que as possibilidades de uma transição pacífica para a democracia tornam-se cada vez menores. Ainda assim, suas manifestações de repúdio se concentram no âmbito do poder judiciário ao qual se dirigem nada menos do que 330 pedidos de inconstitucionalidade formulados entre julho e outubro de 2001.

Com os olhares do mundo voltados para os atentados terroristas de 11 de setembro, para a guerra no Afeganistão e os desdobramentos da geopolítica mundial, a questão indígena chiapaneca deixa de ocupar o centro das atenções da opinião pública e dos próprios movimentos sociais que se opõem à globalização. A elite mexicana sabe que, agora, o tempo joga a seu favor. Cozinhando o galo em fogo lento, a Suprema Corte de Justiça da Nação só vai julgar os pedidos de inconstitucionalidade no dia 5 de setembro de 2002. O veredicto que os considera improcedentes fecha sem reações significativas a via legal à rediscussão da Reforma Constitucional sobre direitos indígenas e, de conseqüência, legaliza o descumprimento dos Acordos de San Andrés.

Por sua vez, o governo Fox começa a agir em várias frentes. Já em maio de 2001, há um aumento das movimentações de tropas, dos paramilitares e das agressões contra as comunidades rebeldes. Ao mesmo tempo em que a contra-insurreição marca o ritmo das intervenções governamentais, o encarregado para o diálogo com os zapatistas não perde a chance de declarar que faz o possível para restabelecer os contatos com o EZLN.

Paralelamente a isso, são desenvolvidos pequenos projetos em comunidades indígenas próximas aos Municípios Autônomos. Diante das contrapartidas exigidas, algumas organizações que antes apoiavam os rebeldes começam a se afastar deles e a agredir suas bases de apoio. Isso ocorre porque, ao colocar a obrigatoriedade do título de propriedade individual da terra como condição para ter acesso aos financiamentos oficiais, os antigos terrenos de aproveitamento coletivo passam a ser disputados por grupos que agora querem tirá-los das comunidades zapatistas com as quais os partilhavam.

Pressionado pelos investidores estrangeiros, o governo ameaça desalojar os indígenas que, há décadas, construíram seus povoados no interior da reserva da biosfera dos Montes Azuis. No final de 2002, as notícias a este respeito e a intervenção do Exército federal no desalojamento de uma comunidade não-zapatista fazem crescer o risco de que se reative o conflito armado na região. Mas, diante das denúncias do EZLN e das reações veiculadas pela mídia, Fox percebe que não tem legitimidade para bancar uma ação de força e congela os desalojamentos.

Mesmo mantendo a pressão militar e paramilitar, a aposta do poder é a de fazer com que a rebelião chiapaneca apodreça vagarosamente sob o manto do esquecimento. Por isso, além de estudar a possibilidade de ações localizadas que minem a convivência das organizações indígenas e camponesas com os zapatistas, faz com que estas não dêem motivo para denúncias que atraiam as atenções do mundo para o sudeste mexicano”.

- “O cerco ao redor dos rebeldes está ficando cada vez mais apertado... - digo preocupado com o desenrolar dos acontecimentos. Como é que eles vão se sair dessa?!?”

- “Apesar da guerra de baixa intensidade ganhar novos contornos, o prestígio e a legitimidade de Fox junto ao povo mexicano andam muito baixos. Isso dificulta sobremaneira a tarefa de ganhar o apoio necessário para levar adiante ações de força de grande envergadura que liberem as terras chiapanecas aos investimentos capitalistas. Neste sentido, os zapatistas ganham fôlego para reestruturar e aprimorar o seu trabalho nas comunidades, tentar encontrar caminhos para dialogar com a cada vez mais fragmentada sociedade civil e delinear as próximas etapas de sua luta.

A primeira tentativa de recolocar a questão indígena no centro das atenções deveria ocorrer no cenário europeu. Ao desafiar o juiz Baltazar Garzón e outras autoridades espanholas a um debate aberto envolvendo a questão basca, o EZLN procura chegar na Espanha numa data que permita à sua delegação de participar do Fórum Social Europeu em Florença, na Itália. Mas a tentativa revela-se um fracasso e a imagem dos rebeldes chiapanecos passa por uma fase de desgaste”.

- “Um naufrágio não era exatamente o que o barco zapatista precisava neste momento...”

Nádia fica silenciosa. Em seguida, senta e recosta o corpo numa pilha de livros como quem precisa de instantes de descanso para recuperar as energias e seguir caminho. Acomodada em seu assento improvisado, dirige a ponta da asa em minha direção e com voz calma procura colocar cada coisa em seu devido lugar:

- “Cair é parte do risco de quem decide caminhar. Apesar de doloridas, as feridas abertas renovam apenas o desafio de levantar e voltar a andar com o qual se depara cada caminhante. E como os zapatistas não são adeptos do desânimo, no lugar de ficarem lamentando o acontecido tratam de se pôr novamente de pé, sacudir a poeira e ensaiar os próximos passos.

É o que vão tratar de concretizar através da...”

8. A criação dos Caracóis.

- “Diante dos que apostavam no esvaziamento do zapatismo ou em possíveis divisões no interior do EZLN, as bases de apoio e os comandantes do exército rebelde mostram com os fatos que sua realidade foge às especulações dos meios de comunicação.

Na noite de 1º de janeiro de 2003, cerca de 20 mil indígenas zapatistas deixam suas comunidades nas montanhas e, de facão na mão, ocupam pacificamente a cidade de San Cristóbal de las Casas. Nos discursos, reafirmam sua luta de resistência, a necessidade de aprovar o projeto da COCOPA, a solidariedade com os povos em luta e dirigem um apelo aos indígenas do México: Chegou a hora em que todos nos organizemos e formemos nossos Municípios Autônomos. Não temos que esperar até que o mau governo nos dê permissão. Devemos nos organizar como verdadeiros rebeldes e não esperar que alguém nos dê permissão para sermos autônomos, sem lei ou com a lei. De tal forma que, assim, devemos pôr pra funcionar nossas autoridades em rebeldia e autogovernar-nos.

Em janeiro e fevereiro, é divulgada uma seqüência de comunicados através dos quais o EZLN realiza uma espécie de viagem pelo México da resistência. Ao lado das denúncias levantadas contra partidos e autoridades, o Subcomandante Marcos resgata as ações pelas quais os de baixo se opõem à lógica do poder e aos planos das elites.

Poucas semanas depois, a iminente invasão do Iraque pelas tropas britânicas e estadunidenses ocupa o centro das notícias que se espalham pelo mundo. A eclosão do conflito faz refluir os protestos que deixam progressivamente as ruas e as praças das grandes cidades para marcar presença nas linhas de alguns meios de comunicação. Quando os ataques contra as tropas de ocupação começam a ganhar consistência são poucas as vozes que se levantam para proporcionar uma leitura dos acontecimentos que supere a descrição de seus aspectos superficiais e menos ainda as que procuram entender as ações da resistência local.

Esta situação expõe as fragilidades e as divisões presentes nos movimentos que se opõem ao neoliberalismo e ao processo de globalização. Apesar da criatividade das manifestações de rebeldia, se tornam cada vez mais evidentes as dificuldades em levar adiante uma crítica coerente e consistente aos desdobramentos da guerra e à própria acumulação capitalista. A produção da riqueza continua acontecendo sem acidentes de percurso e leva rios de dinheiro aos cofres que financiam as ações dos poderosos.

Enquanto isso, os indicadores sócio-econômicos do México apontam para uma piora das condições de vida da grande maioria do povo. Os sentimentos de decepção e de desconfiança na classe política mexicana se materializam num grau de abstenção superior a 65% nas eleições para o Parlamento e as Assembléias Legislativas estaduais realizadas no dia 6 de julho de 2003.

Ainda que a falta de legitimidade dos eleitos comprove o discurso zapatista, novos patamares de intervenção e organização dos movimentos precisam ser desenvolvidos para transformar o descrédito e o descontentamento em ações realmente transformadoras. Se isso não ocorrer, algumas mudanças de rumo no campo da política e da economia podem voltar a integrar os setores populares num novo equilíbrio de forças capaz de superar o momento mais agudo da crise e de recuperar a confiança popular na própria lógica do sistema capitalista, mantendo intactas as engrenagens que o fazem funcionar.

No final de julho, diante dos desafios que os acontecimentos colocam em seu caminho, o EZLN anuncia a morte dos Aguascalientes e o nascimento dos Caracóis”.

- “Caracóis...? A que diabo estão se referindo?”, pergunto intrigado.

Nádia se mantém séria. Desenhando no ar uma espiral, com a ponta da asa descreve um movimento ininterrupto de fora pra dentro e de dentro pra fora. Enquanto isso, suas palavras revelam:

- “A figura do caracol é um dos símbolos mais importantes da cultura destes povos. Talvez a maneira mais fácil de explicar o seu sentido é através da história do sustentador do céu contada pelo próprio Subcomandante Marcos:

Segundo nossos ancestrais, é necessário sustentar o céu para que não caia. Ou seja, não é que o céu está firme, mas sim, de vez em quando fica fraco e quase desmaia e se deixa cair como as folhas caem das árvores, e então acontecem verdadeiras calamidades porque o mal chega ao milharal, a chuva o quebra todo, o sol castiga o solo, quem manda é a guerra, quem vence é a mentira, quem caminha é a morte e quem pensa é a dor.

Disseram nossos ancestrais que isso acontece porque os deuses que fizeram o mundo, os primeiros, se empenharam tanto em fazer o mundo que, depois de terminá-lo, não tinham muita força para fazer o céu, ou seja, o telhado de nossa casa e o colocaram assim do jeito que deu, e então o céu foi colocado sobre a terra como um desses telhados de plástico. Ou seja, o céu não está bem firme, mas, às vezes, parece que afrouxa. E é necessário saber que, quando isso acontece, se desorganizam os ventos e as águas, o fogo se inquieta e a terra quer se levantar e caminhar sem encontrar sossego.

Por isso, os que chegaram antes de nós disseram que, pintados de cores diferentes, quatro deuses voltaram ao mundo e, tornando-se gigantes, se colocaram nos quatro cantos do mundo para prendê-lo ao céu para que não caísse, ficasse quieto e bem plano, para que o sol, a lua, as estrelas e os sonhos caminhassem por ele sem sofrimento.

Mas aqueles que deram os primeiros passos por estas terras contam também que, às vezes, um ou mais dos pilares, os sustentadores do céu, é como se começasse a sonhar, a dormir ou a se distrair com uma nuvem, então o seu lado do telhado do mundo, ou seja, o céu, não fica bem esticado, e então o céu, ou seja, o telhado do mundo, é como se afrouxasse e é como se quisesse cair sobre a terra, e já não fica plano o caminho do sol, da lua e das estrelas.

É isso que aconteceu desde o início, por isso os primeiros deuses, os que deram origem ao mundo, deram uma tarefa a um dos sustentadores do céu e ele deve ficar de prontidão para ler o céu, ver quando começa a afrouxar, então este sustentador deve falar aos demais sustentadores para que acordem, voltem a esticar o seu lado e as coisas se acomodem outra vez.

E este sustentador nunca dorme, deve sempre estar em alerta e de prontidão para acordar os demais quando o mal cai sobre a terra. E os mais antigos no passo e na palavra dizem que este sustentador do céu leva um caracol pendurado no peito e com ele ouve os ruídos e os silêncios do mundo para ver se está tudo certo, e com o caracol chama os outros sustentadores para que não durmam ou para que acordem.

E dizem aqueles que foram os primeiros que, para não adormecer, este sustentador do céu vá e vem pra dentro e pra fora do seu coração, pelos caminhos que leva no peito, e dizem aqueles mestres mais antigos que este sustentador ensinou aos homens e às mulheres a palavra e a sua escrita porque, dizem que enquanto a palavra caminha pelo mundo é possível que o mal se aquiete e no mundo esteja tudo certo, assim dizem.

Por isso, a palavra do que não dorme, do que está de plantão contra o mal e suas maldades, não caminha direto de um lado pra outro, mas sim anda rumo a si mesmo, seguindo as linhas do coração, e para fora, seguindo as linhas da razão, e dizem os sábios de antes que o coração dos homens e das mulheres tem a forma de um caracol e aqueles que têm bom coração e pensamento andam de um lado pra outro, acordando os deuses e os homens para que fiquem de plantão para que no mundo esteja tudo certo. Por isso, quem vela quando os demais dormem usa o seu caracol, e o usa para muitas coisas, mas, sobretudo, para não esquecer.27

Ao colocar os Caracóis no lugar dos Aguascalientes, os zapatistas procuram recriar em novas bases os espaços de encontro e de diálogo com a sociedade civil e, através deles, vão coordenar também as iniciativas solidárias dos mais variados movimentos rumo a um desenvolvimento equilibrado das comunidades em resistência. Esta tarefa é realizada através de um conselho de representantes, chamado Junta de Bom Governo, do qual participam os delegados dos municípios autônomos da região abrangida por cada um dos cinco Caracóis (Morelia, La Garrucha, Oventik, Roberto Barrios e La Realidad).

Ao repensar as relações no interior do território rebelde e com os movimentos organizados da sociedade civil, os Caracóis vão se manter sempre de prontidão diante das ações dos poderosos”.

- “Mas, quais são as premissas dos zapatistas ao estabelecer estes contactos?”

- “Tendo como objetivo a reconstrução da nação mexicana a partir de baixo, os laços com a sociedade civil vão ser estabelecidos ao redor de sete pontos básicos:

  1. O respeito recíproco à autonomia e à independência das organizações sociais com as quais se estabelece uma relação;
  2. O esforço para promover formas de autogestão e autogoverno em todo o México, de acordo com as peculiaridades de cada movimento;
  3. O estímulo à rebeldia e à resistência civil e pacífica diante das disposições do mau governo e dos partidos políticos;
  4. A solidariedade total e incondicional com quem vier a sofrer agressões;
  5. A formação de redes de comércio e de consumo de produtos básicos, dando preferência ao setor informal e ao pequeno e médio comércio;
  6. A defesa da soberania nacional e a oposição frontal ao processo de privatização do setor elétrico, do petróleo e dos demais recursos naturais;
  7. A construção de uma rede de informação e de cultura.

Com estas premissas, a base da plataforma de luta está alicerçada na defesa da propriedade ejidal e comunal da terra e dos recursos naturais, na luta por trabalho digno e salário justo, saúde pública gratuita, moradia digna, alimentação e roupa a baixo custo para todos, educação leiga e gratuita, no respeito à dignidade das mulheres, das crianças e dos anciãos.

Com isso, os zapatistas procuram evitar uma maior desagregação do tecido social que tornaria ainda mais distantes as possibilidades de construir uma identidade coletiva, sem a qual é muito difícil transformar os ventos da dignidade e da rebeldia em movimento vivo capaz de mudar os rumos da história”.

- “Só não consigo entender o papel que o EZLN vai assumir após esta mudança...”, comento como quem procura encaixar a peça solta de um quebra-cabeça.

Nádia abre as asas e, com a expressão de quem também está analisando os acontecimentos para compreendê-los, diz:

- “Pelos comunicados, os zapatistas que se mantêm como exército permanente, no momento, se limitam a defender as comunidades dos possíveis ataques das tropas federais e dos paramilitares. Nesta fase da guerra, a organização civil do EZLN ganha ainda mais destaque em relação à sua força militar.

A estratégia zapatista passa hoje pela intensificação do trabalho de acumulação de forças, pela construção e o fortalecimento das redes de resistência diante das quais o governo popular promovido através dos Caracóis e dos Municípios Autônomos é chamado a mostrar, com os fatos, que é possível exercer a democracia direta e ampliá-la a outras regiões do México.

Não se pode esperar que, por si só, os Caracóis alterem a ordem de exploração que ainda impera no México, mas, ao alimentar o diálogo com a sociedade, podem vir a representar um questionamento vivo desta mesma ordem ao redor do qual tenta-se catalisar as forças indígenas e não-indígenas que, de alguma forma, se opõem a ela”.

- “E... a elite como está reagindo a estas mudanças?”

- “Ao que tudo indica, os senhores do poder perceberam logo que os Caracóis zapatistas buscam se tornar um pólo de aglutinação de seus opositores. Por isso, após a inauguração destes centros de resistência e de contacto com a sociedade civil, já começam a ensaiar as movimentações de suas peças no grande tabuleiro da guerra.

Em 21 de agosto de 2003, a Junta de Bom Governo de Roberto Barrios denuncia que o Exército federal vem realizando incursões em várias comunidades da selva Lacandona, instala novos postos de controle nas vias de acesso ao Caracol, interroga a população e, caso esta se recuse a colaborar, a ameaça com a possibilidade de uma presença militar mais consistente.

Nas semanas seguintes, há um aumento das hostilidades e das provocações dos paramilitares nas regiões Norte, Altos e Selva. Além de derrubar os letreiros que anunciam aos transeuntes a sua chegada em território rebelde, em 8 de dezembro, membros de Paz e Justiça destroem o posto de saúde e a cooperativa de consumo de Unión Hidalgo enquanto outros contingentes armados ameaçam expulsar 80 famílias em Chulun Juarez e outras 55 no povoado Nueva Revolución. No mesmo dia, cerca de 400 membros do PRI encabeçados pelo prefeito de Altamirano, Armando Pinto Kanter e atiçados pela senadora Arely Madrid Tovilla, do mesmo partido, ameaçam destruir as instalações do Caracol de Morelia. Em resposta, mil pessoas das bases de apoio do EZLN se dirigem a este centro, prontas para defendê-lo a qualquer preço. Diante da mobilização zapatista e da iminência de uma agressão que atrairia as atenções da sociedade civil, o governo estadual envia a Morelia um farto contingente da Segurança Pública com o objetivo de dissuadir os priistas e obrigá-los a abrir mão de suas intenções.

Paralelamente a isso, o Exército federal instala novos postos de fiscalização ao longo das estradas que dão acesso aos Caracóis com a clara intenção de mapear as pessoas que se dirigem aos enclaves rebeldes. Além do cerco militar propriamente dito, as tropas tratam de ajudar a criar as condições que permitem avançar no isolamento político das comunidades em resistência. Ao identificar indivíduos e movimentos que mais se relacionam com os zapatistas, é possível pressioná-los e reprimi-los em seus próprios ambientes na tentativa de forçar o seu afastamento das bases de apoio do EZLN e esvaziar os movimentos dos quais participam. As primeiras estatísticas de 2004, divulgadas por organizações de defesa dos direitos humanos, revelam o quanto esta diretriz está sendo levada a sério. Só no mês de janeiro, as operações policiais do governo de Chiapas contra movimentos de resistência indígenas e camponeses, presentes em seu território, já levaram à prisão de 140 pessoas. Este número representa quase o total dos detidos em conflito sociais ao longo de 2002 (148, ao todo) e mais da metade dos 272 que foram presos em 2003.28

Mas isso não é tudo. A elite testa a reação popular com, pelo menos, outros dois balões de ensaio. O primeiro ganha as páginas da mídia no final de setembro de 2003 quando o senador do PAN, Felipe de Jesus Vicencio, propõe a revogação da Lei para o Diálogo, a Conciliação e a Paz Justa em Chiapas. Para ele, na medida em que a COCOPA não tem matéria de trabalho e que os zapatistas não se dispõem a estabelecer novos diálogos com o governo, a manutenção desta norma começa a não fazer sentido. Sabendo que a supressão pura e simples abre o caminho para a execução das ordens de prisão contra o comando do EZLN, o parlamentar sugere que a revogação seja acompanhada pela anistia incondicional dos rebeldes. Apesar de não ganhar o apoio imediato dos demais integrantes da COCOPA, esta idéia trabalha a necessidade de impedir que os zapatistas realizem marchas e atos que, graças à proteção legal, possibilitam a ampliação de sua relação com a sociedade civil. Em outras palavras, as elites estão sondando os caminhos que podem vir a reduzir o espaço político do qual o EZLN se aproveita para manter sua legitimidade diante do México e do mundo.

O segundo balão está amarrado às afirmações do Procurador Federal de Proteção ao Meio Ambiente, José Luis Luege. Na metade de outubro de 2003, este membro da equipe governamental avalia como urgente a necessidade de reverter o crescimento dos assentamentos irregulares na reserva florestal dos Montes Azuis. Em suas ponderações, 6 dos 41 assentamentos hoje existentes poderiam ser desalojados com uma certa facilidade através do diálogo com os ocupantes e a oferta de alternativas, obviamente encouraçadas pela ameaça de que, em caso de recusa, o Estado faria cumprir a lei com mão firme. O fato de que não se trata de um simples jogo de palavra é demonstrado em 22 de janeiro de 2004, quando contingentes da marinha e das forças policiais, acompanhados por funcionários da Procuradoria Federal de Proteção ao Meio-Ambiente, entram na comunidade Nuevo San Rafael queimando 23 casas e desalojando seus moradores.

Resumindo, a elite mexicana tem plena consciência de que atender às demandas populares significa abrir mão dos próprios interesses e que fazer vista grossa diante da expansão das experiências de autonomia é como colocar uma hipoteca sobre os mesmos. Por isso, sabendo de sua falta de legitimidade junto às bases da pirâmide social, procura formas de coibir o avanço das organizações de resistência levantando a menor quantidade de poeira possível para não atrair a incômoda condenação da sociedade civil nacional e internacional. O desejo de nada ceder no campo econômico faz com que a coerção tenda a se tornar a medida preponderante em suas relações com os movimentos deixando as possibilidades de diálogo na lista das medidas a serem utilizadas para ganhar tempo, reduzir o próprio desgaste e tentar vencer pelo cansaço as ações que se contrapõem aos seus planos.

- “Mas será que você não está sendo um pouco pessimista?”

- “Pelo menos dois elementos confirmam o concretizar-se desta tendência - responde a ave em tom de preocupado esclarecimento. O primeiro deles é que, apesar de não ocorrerem enfrentamentos armados há mais de dez anos, as tropas federais mantêm em Chiapas nada menos do que 90 postos de controle militar, uma centena de acampamentos, 24 quartéis e 231 posições consideradas estratégicas29. Isso faz com que os soldados não precisem se movimentar muito para manter o controle da região e para fazer pairar sobre os zapatistas sua sombra de morte e perseguição. Ou seja, a normalidade em Chiapas mantém as feições de uma guerra silenciosa, mas sempre presente no quotidiano dos povos em resistência.

O segundo é dado pela longa lista de agressões e ameaças que atingem as bases de apoio do EZLN. Em 10 de abril de 2004, organizados pelo prefeito de Zinacantán, Martin Sanchez Hernández, cerca de cem membros do Partido da Revolução Democrática (PRD) realizam uma emboscada contra centenas de representantes das bases de apoio do EZLN que acabavam de levar água aos companheiros de Elambó Alto, Elambó Baixo e Jech'vo aos quais o próprio prefeito havia cortado a rede de abastecimento oficial. Atingidos por pedras e disparos de armas de fogo, os zapatistas amargam dezenas de feridos, dois dos quais são internados em estado grave no hospital de San Cristóbal de las Casas.

No mesmo dia, a comunidade rebelde de Tiutzol é saqueada e destruída por paramilitares da organização Paz e Justiça e, no final de maio, outros paramilitares procedentes de Zinacantán cercam e ameaçam invadir o município autônomo de San Pedro Polhó.

A conivência dos governos locais com os autores das agressões é agravada pela atuação do representante do executivo federal, Luis Héctor Alvarez, cujo papel seria de construir o diálogo com o Exército Zapatista. Longe de cumprir com esta tarefa, o enviado governamental usa os recursos à sua disposição para distribuir materiais de construção e pequenas benfeitorias a comunidades que se distanciam do EZLN num trabalho de contra-insurreição que procura isolar os municípios autônomos e aumentar os atritos com os povoados das redondezas.

Diante dos acontecimentos, os deputados da Comissão de Assuntos Indígenas e da Comissão de Concórdia e Pacificação reconhecem publicamente que, em Chiapas, há um clima adverso com todos os ingredientes que poderiam ocasionar um repique da violência.

Apesar do clima de guerra latente que permeia o território chiapaneco, as Juntas de Bom Governo completam um ano de vida com resultados que surpreendem os próprios zapatistas. É disso que vou falar no próximo capítulo ao delinear os pontos que marcam...”

9. A construção da autonomia e os caminhos da Sexta Declaração da Selva Lacandona

Pressionado pela curiosidade e o cansaço, o corpo se debate entre a vontade de conhecer os resultados consolidados no interior dos Caracóis e a necessidade de uma pausa que ajude a retomar o fôlego. Enquanto a coruja fuça na mochila de onde saem anotações de todo tipo, os braços se refazem do esforço despendido numa longa e gostosa espreguiçada.

Mais alguns instantes de silêncio e, com a asa apontada para o alto, Nádia sinaliza o início de mais uma etapa do relato:

- “Na segunda metade de agosto de 2004, o EZLN divulga uma longa série de comunicados nos quais procura fazer um balanço dos acertos e das falhas registradas nos doze meses em que as Juntas de Bom Governo têm administrado o território rebelde.

Pelos dados divulgados, o processo de construção da autonomia no interior dos Caracóis conhece a implementação de normas que garantem a conservação dos bosques e a preservação do meio ambiente, proíbem terminantemente a semeadura, o tráfico, a comercialização e o consumo de drogas, agem no sentido de estancar o fluxo de migrantes clandestinos que atravessam seus territórios iludidos pelas promessas dos que garantem sua chegada nos Estados Unidos e, apesar de discordar de seus fins, não impedem o trabalho das instituições governamentais.

Além disso, graças ao apoio de organizações e voluntários da sociedade civil nacional e internacional, os povos zapatistas conseguem aprimorar um sistema de saúde próprio que proporciona atendimento médico gratuito e, até onde é possível, o acesso aos remédios sem custo algum para os doentes. Nas cinco regiões administradas pelas Juntas de Bom Governo se realizam campanhas de higiene e prevenção destinadas a combater doenças crônicas e, pouco apouco, cada município autônomo vai montando sua estrutura básica de saúde comunitária com ambulatórios, farmácias, promotores de saúde e, em nível regional, com clínicas, médicos e especialistas.

Na educação, o primeiro ano de vida dos Caracóis conhece a construção de mais de 50 escolas, 300 outras são equipadas, dezenas de educadores passam por cursos de capacitação e o território rebelde já pode contar com centros de ensino secundário e técnico, todos orientados por um programa próprio.

A construção da autonomia zapatista conhece avanços também no campo da alimentação ao desenvolver cooperativas para a criação de porcos, galinhas, ovelhas, frango e gado, além do cultivo de hortaliças e árvores frutíferas. A estas medidas se somam os projetos de oficina de sapataria, de fornecimento de água potável, de produção de tecidos e de mel, de distribuição de caixas d'água, de construção de fogões que poupam lenha e de uma fábrica de blocos que, além de proporcionar uma renda para as necessidades coletivas, ajuda a reduzir o preço do material de construção e a melhorar as casas das comunidades.

Paralelamente a isso, os projetos para a aquisição de dois caminhões favorecem a implantação de centros de venda regionais onde é possível comprar, a preços acessíveis, o que é produzido pelas comunidades e expulsam do território rebelde a ação nefasta dos atravessadores”.

- Trata-se, sem dúvida, de um avanço considerável, mas como isso tem sido possível?”, questiono entre o estupor e a desconfiança.

Impermeável às insinuações, Nádia prepara-se para dar os esclarecimentos solicitados e, sem alterar o tom de voz, diz:

- “A melhora das condições de vida no interior dos Caracóis se deve a dois elementos essenciais. O primeiro é próprio dos povos indígenas e da vida que neles ganha cor e forma. Ao tratar disso no balanço do primeiro ano de atividades, o Subcomandante Marcos relata que numa conversa com o Velho Antonio este lhe explica que os indígenas caminham sempre curvados mesmo que não carreguem nada, porque levam sobre os ombros o bem do outro.30 Ou seja, o caminhar coletivo dos que lutam para construir um mundo novo exige que cada um assuma as necessidades dos demais, levando nas próprias costas o peso e a responsabilidade do bem-estar das comunidades.

O segundo tem como origem o trabalho e a solidariedade da sociedade civil que, com os zapatistas, tem assumido a construção de um mundo onde cabem muitos mundos, ou seja, um mundo que carregue o coração de todos.31 Concretamente, estamos falando de homens e mulheres de 43 países que se dirigem ao território rebelde às vezes com projetos produtivos, às vezes com donativos, às vezes com o ouvido atento e respeitoso, às vezes com a palavra irmã, às vezes com a curiosidade, às vezes com o afã científico e às vezes com o desejo de resolver problemas através do diálogo respeitoso e do acordo entre iguais. Enfim, milhares de pessoas, como indivíduos, como organizações sociais, como organizações não-governamentais, como organizações de ajuda humanitária, como organizações defensoras dos direitos humanos, como cooperativas, como autoridades de municípios de outros Estados do México e de outras partes do mundo, como corpo diplomático de outras nações, como pesquisadores, como artistas, como músicos, como intelectuais, como religiosos, como pequenos proprietários, como empregados, como operários, como donas ou«donos» de casa, como trabalhadores e trabalhadoras do sexo, como vendedores ambulantes, como jogadores de futebol, como estudantes, como professores, como médicos, como enfermeiras, como empresários, como empreiteiros, como autoridades estaduais e como muitas coisas mais..32 Este esforço constitui uma espécie de terceiro ombro que, em suas diferentes intervenções, apoia, ajuda e sustenta a construção da autonomia indígena em território zapatista.

Ainda que os resultados visíveis tenham superado as expectativas iniciais, há outros avanços tão ou até mais importantes. Estou me referindo especificamente aos aspectos políticos que nem sempre ganham as devidas atenções. Vista como um erro por parte da sociedade civil, em função das dificuldades em manter a continuidade das relações, a troca quinzenal das equipes que integram as Juntas de Bom Governo faz com que a tarefa de governar não seja exclusiva de um grupo, que não haja governantes profissionais, que a aprendizagem seja para o maior número possível e que se rejeite a idéia de que o governo só pode ser desempenhado por «pessoas especiais».33 Graças ao rodízio, povoados inteiros aprendem a governar e, na medida em que mais pessoas conhecem o todo, não só os eleitos não conseguem recorrer ao engano e à mentira, como aumenta a vigilância dos governados sobre as autoridades dificultando o eventual desvio de recursos e a corrupção.

Se isso não bastasse, a experiência dos Caracóis começa a mostrar aos que viam a autonomia indígena como uma ameaça para a sobrevivência do Estado que o processo de desintegração da nação mexicana se deve não à sua implantação, mas sim à ação das elites que, além de piorar as condições de vida da maior parte da população, entrega a soberania nacional à sede de lucros capitalista. Longe de criar um Estado no interior do Estado, as Juntas de Bom Governo têm caminhado no sentido de atender a todos: zapatistas, não-zapatistas e, inclusive, antizapatistas. Firmes em seu propósito de fazer com que a luta pela inclusão de um não represente a exclusão do outro, as autoridades autônomas têm resolvido vários conflitos locais através do diálogo e do respeito com as organizações de outras tendências políticas que se relacionam com suas bases. Além de conter a violência que vinha se manifestando nos anos anteriores, os rebeldes conseguem reduzir também os índices de criminalidade e impunidade.

Finalmente, há um aspecto que responde a um velho debate frente ao qual a construção da autonomia nos Caracóis coloca uma constatação incômoda: a busca e a implantação dos direitos coletivos não só não contradiz os direitos individuais como permite que estes estejam realmente ao alcance de todos, não só de alguns como ocorre na sociedade capitalista”.

- “E...não há pontos negativos...?”

- “Entre as falhas que não podem ser atribuídas ao estado de guerra latente e às necessidades da resistência, o Subcomandante Marcos reconhece que a participação das mulheres nos trabalhos de direção organizativa continua sendo pequena, e nos conselhos autônomos e nas Juntas de Bom Governo (JBG) é praticamente inexistente. Mesmo não sendo uma contribuição do EZLN às comunidades, é também nossa responsabilidade.

Se nos Comitês Clandestinos Revolucionários Indígenas de região a porcentagem da participação feminina está entre 33 e 40%, nos conselhos autônomos e nas Juntas de Bom Governo anda, em média, em menos de 1%. As mulheres continuam não sendo levadas em consideração na hora de nomear comissários ejidais e agentes municipais. O trabalho de governo é ainda prerrogativa dos homens. E não é que estejamos a favor do «apoderar-se» das mulheres, tão na moda lá em cima, mas sim que na base social zapatista ainda não há espaços para que a participação feminina se veja refletida nos cargos de governo.

E não só. Apesar das mulheres zapatistas terem tido e ter um papel fundamental na resistência, em alguns casos, o respeito dos seus direitos continua sendo uma mera declaração que não sai do papel. É verdade que a violência no interior da família tem diminuído, mas é mais pelas limitações ao consumo de álcool do que por uma nova cultura familiar e de gênero.

Também se continua limitando a participação das mulheres nas atividades que implicam sair do povoado. Não se trata de algo escrito ou explícito, mas a mulher que sai sem o seu marido ou sem seus filhos é mal vista e se pensa mal dela. E não me refiro a atividades «extrazapatistas», de cuja participação há restrições severas que incluem também os homens. Falo de cursos e encontros organizados pelo EZLN, pelas JBG, pelos municípios autônomos, pelas cooperativas de mulheres e pelos próprios povos.

É uma vergonha, mas devemos ser sinceros: ainda não podemos apresentar bons resultados a respeito da questão da mulher, da criação de condições para seu desenvolvimento de gênero, de uma nova cultura que reconheça a elas capacidades e aptidões supostamente exclusivas dos homens.

Mesmo que dê pra ver que isso vai longe, esperamos algum dia poder dizer, com satisfação, que conseguimos resolver pelo menos este aspecto. Só por isso já valeria a pena.

O que é sim uma «contribuição» (má, com certeza) do EZLN às comunidades e ao seu processo de autonomia, é a relação da estrutura político-militar com os governos civis autônomos.

De início, a idéia que tínhamos era que o EZLN devia acompanhar e apoiar os povos na construção de sua autonomia. Contudo, o acompanhamento se transforma, às vezes, em direção, o conselho em ordem...e o apoio em estorvo.

Já havia dito antes que a estrutura hierárquica piramidal não é própria das comunidades indígenas. O fato do EZLN ser uma organização político-militar e clandestina ainda contamina processos que devem e têm que ser democráticos.

Em algumas Juntas e Caracóis apareceu o fenômeno de que comandantes do CCRI tomam decisões que não competem a eles e colocam a Junta em maus lençóis. O «mandar obedecendo» é uma tendência que continua se deparando com as paredes que nós mesmos levantamos”.34

Encerrado o balanço, Nádia senta no dicionário cujo volume segura os livros enfileirados sobre a mesa. Pensativa, procura nos papéis que saíram de sua bagagem as anotações que lhe permitem retomar o rumo dos acontecimentos. Olhares pacientes e cuidadosos passam de uma folha a outra enquanto o bico parece ensaiar os passos a serem seguidos. Instantes depois, a coruja levanta a cabeça e com um “É isso!” pronunciado em voz alta deixa o seu assento improvisado para aproximar-se da mão que aguarda a retomada do relato.

- “Pra início de conversa - diz ao espetar o ar com a ponta da asa esquerda - não podemos esquecer que, em outubro de 2004, as seguidas ameaças de desalojamento dos povoados instalados no interior da reserva ecológica dos Montes Azuis levam o EZLN a anunciar o reassentamento de parte das comunidades zapatistas que aí se encontram. A transferência das famílias para as regiões próximas busca, ao mesmo tempo, fazer com que estas sejam melhor atendidas pelas Juntas de Bom Governo e aprimorar as condições que possibilitam a sua defesa armada, caso o governo opte pelo uso da força militar. Enquanto o poder de cima movimenta suas peças no tabuleiro da guerra, a resistência de baixo continua apostando numa saída pacífica para o conflito e respondendo a estas investidas com medidas que procuram neutralizar as ações de seus silenciosos agressores.

No início de 2005, vários meios de comunicação revelam dados preocupantes sobre a piora das condições de vida no campo. As relações comerciais entre México, Canadá e Estados Unidos no âmbito do Tratado de Livre Comércio da América do Norte fazem com que, anualmente, cerca de 50 mil pequenos produtores abandonem suas terras. O aumento das importações de grãos, oleaginosas e carne bovina provoca a queda dos preços no mercado interno e a conseqüente impossibilidade dos camponeses garantirem a sua sobrevivência. O fluxo migratório em direção às grandes cidades e à fronteira com os EUA ganha novos adeptos a cada dia e, nos onze anos de vigência do Tratado, deixa os municípios rurais com uma perda populacional média de 20%.

De acordo com o Instituto Nacional de Estatística, Geografia e Informática do México, o abandono das terras de cultivo por parte de jovens e adultos leva para as lavouras quase metade do trabalho infantil empregado na geração da renda familiar. Via de regra, a maioria das crianças que trabalham não recebe nenhum tipo de remuneração ou, quando muito, esta não passa de meio salário mínimo.35

Nas cidades, os dados oficiais revelam um progressivo crescimento do desemprego e do trabalho informal. Em maio do ano seguinte, ao fazer o balanço dosúltimos cinco anos, o mesmo instituo revela que o número de pessoas da População Economicamente Ativa que procuram emprego sem encontrá-lo passa de 612 mil e 209, em dezembro de 2000, para cerca de um milhão e 550 mil em março de 2006. No mesmo período, as grandes empresas que empregavam 8 milhões 975 mil e 346 funcionários, mantêm agora não mais de 3 milhões e630 mil postos. Ao mesmo tempo, o trabalho informal conhece um crescimento sem precedentes com um contingente estimado em 11 milhões e 760 mil pessoas ao qual se une o dos 17 milhões e 300 mil que tratam de ganhar a vida nas micro empresas.36

Trocado em miúdos, cerca de 69,4% das 43 milhões e 900 mil pessoas que constituem a População Economicamente Ativa, conhece uma progressiva deterioração de suas condições de vida. Apesar do crescimento da economia registrado ao longo do mandato de Vicente Fox, a ação do capital marca um ritmo cada vez mais rápido de degradação do tecido social.

Enquanto isso, os partidos políticos acirram as disputas que preparam o terreno para as eleições presidenciais de julho de 2006. Assustados pelas pesquisas de opinião que apontam Andrés Manuel López Obrador, do PRD, como favorito, o Partido Revolucionário Institucional e o Partido da Ação Nacional tratam de caçar os seus direitos políticos em nome de supostas fraudes cometidas durante a sua gestão à frente do governo da Cidade do México.

Diante da inconsistência e da ilegitimidade do processo, os zapatistas denunciam as articulações do PRI e do PAN como um golpe de Estado preventivo pelo qual a direita busca manter a qualquer custo o seu controle sobre os três poderes da nação. A intervenção no debate não significa que o EZLN apoia a candidatura de López Obrador, considerado pelos rebeldes como a mão esquerda da direita, nem, muito menos, o programa do PRD, partido ao qual é filiado.

Ao repudiar a forma espúria pela qual a elite conservadora busca garantir o poder, os zapatistas aproveitam o momento para pôr o dedo nas feridasda esquerda mexicana. Num comunicado divulgado em 2 de março de 2005, o Subcomandante Marcos afirma: Um dos problemas da esquerda é com o que esta se identifica: com a direção do PRD, que tem a consistência ideológica e prática de um merengue (e, como os merengues, se jogam no cara ou coroa); ou com a posição dos que dão uma de advogado e promovem a eleição de governantes «menos ruins» como programa de ação de esquerda, ou com aqueles que, do conforto da academia, distribuem missões e tarefas...às organizações de esquerda; ou daqueles que, aceitando o calendário que vem de cima, e que aponta este como o ano eleitoral, promovem o atual equivalente ao «voto útil»: impulsionemos o mal menor... dando por suposto que, de fato, é um mal menor.

Mas, se você me permite, analisando mais detidamente podemos apontar que o denominador comum desta «esquerda» está no cinismo, na falta de memória e no conformismo.

Não. Quando se olha para a esquerda, não temos que dirigir o olhar para cima, mas sim para baixo. Lá em cima é só claudicação disfarçada de moderna sensatez. A geografia da esquerda (atenção: falo do México dos inícios do século XXI) se estende lá em baixo e costuma estar longe do frenesi de cima. E falo então da esquerda de baixo, a marginalizada por esta «esquerda» de cima que tanto agrada à direita.37

O processo de cassação ganha as manchetes dos maiores jornais do país ao longo de várias semanas. Repudiando o jogo da direita, mais de meio milhão de pessoas somam forças numa manifestação que lota o Zócalo da capital. Em seu discurso à multidão, López Obrador não perde a chance de transformar o protesto em apoio à candidatura, ainda não oficializada, à presidência da República e apresenta o seu futuro programa de governo.

Ao ganhar a simpatia de um número considerável de intelectuais, militantes e gente do povo, o futuro candidato busca se credenciar como o único capaz de realizar as mudanças necessárias para pôr o país nos trilhos pela via da democracia representativa. Ou seja, a crise da classe política mexicana, amplamente denunciada pelos zapatistas, tende a ser interpretada por setores significativos da população como uma crise de nomes e não de confiabilidade no sistema vigente”.

- “Bom... ao que tudo indica, o processo de mudanças pensado e viabilizado pelos zapatistas deve ganhar agora tempos bem mais longos...”

- “Sim, você tem razão - diz Nádia ao balançar a cabeça. E a confirmação desta hipótese vem nos meses seguintes quando o EZLN revela os passos que marcam a sua entrada num novo momento da luta.

Em 20 de junho de 2005, os zapatistas surpreendem o mundo declarando o alerta vermelho em todo o território rebelde. Como explicam dias depois, trata-se de uma medida preventiva para proteger as comunidades em resistência durante o amplo processo de consulta das bases de apoio, comandantes, contingentes, responsáveis regionais e locais iniciado pelo EZLN. Ao redobrar as atenções em relação ao exército inimigo, os rebeldes tratam de evitar o que ocorreu em fevereiro de 1995, quando as tropas federais surpreenderam o grupo insurgente num momento de discussão e debate no qual se preparavam para as negociações com os representantes governamentais.

O resultado da consulta começa a ser divulgado nove dias depois através da Sexta Declaração da Selva Lacandona.38 O texto inicia com um resgate das principais etapas que marcaram a história do EZLN do levante aos dias atuais, aponta o sistema capitalista como o direto responsável pela situação de pobreza, desvenda sua presença na aplicação das políticas neoliberais e sublinha sua capacidade de ocultar a exploração da qual se alimenta. Diante deste panorama e das críticas aos programas econômicos promovidos no âmbito institucional, o documento chega a uma constatação que serve de ponto de partida para explicitar os rumos da intervenção zapatista: Estamos dizendo que a política não serve? Não, o que queremos dizer é que ESTA política não serve. E não serve porque não leva em conta o povo, não o ouve, não lhe faz caso, só se aproxima dele quando há eleições, e nem sequer querem votos, bastam as pesquisas de opinião para dizer quem ganha. E aí são só promessas de que vão fazer isso e aquilo, e depois você nunca mais vê eles, a não ser que saia a notícia de que roubaram muito dinheiro e não vão lhes fazer nada porque a lei, que estes mesmos políticos fizeram, os protege.

Porque outro problema é que a Constituição já foi toda mexida e alterada. Já não é a que tinha os direitos e as liberdades do povo trabalhador, agora contém os direitos e as liberdades dos neoliberais de terem seus grandes lucros. E os juizes estão aí para servir estes neoliberais porque sempre dão sua palavra a favor deles, e aos que não são ricos cabem as injustiças, as prisões, os cemitérios.39

Em seguida, resgata a luta e a resistência que vêm de baixo e com as quais busca tecer relações mais profundas. Ao explicitar os primeiros passos desta longa jornada, o EZLN afirma: no México, o que queremos fazer é um acordo com pessoas e organizações que sejam de esquerda porque achamos que só na esquerda política está a idéia de resistir contra a globalização neoliberal e de construir um país onde haja justiça, democracia e liberdade para todos. Não como agora que só há justiça para os ricos, só há liberdade para seus grandes negócios e só há democracia para pintar os muros com a propaganda eleitoral. Porque nós pensamos que só da esquerda pode sair um plano de luta para que a nossa Pátria, que é o México, não morra.

Então, o que pensamos é que, com estas pessoas e organizações de esquerda, fazemos um plano para ir em todos os lugares do México onde há gente simples e humilde como nós. E não é que vamos dizer o que devem fazer, ou seja não vamos lhes dar ordens.

Tampouco vamos pedir-lhes que votem num candidato, pois já sabemos que os existentes são neoliberais. Tampouco vamos dizer que façam como nós, nem que se levantem em armas.

O que vamos fazer é perguntar a eles como é a sua vida, sua luta, seu pensamento em relação a como está o nosso país e como fazemos para que não nos derrotem.

O que vamos fazer é tomar o pensamento da gente simples e humilde e talvez vamos encontrar nela o mesmo amor que sentimos por nossa pátria.

Talvez chegamos a um acordo entre nós que somos simples e humildes e, juntos, nos organizamos em todo o país e combinamos nossas lutas que agora estão sós, afastadas umas das outras, e encontramos algo parecido com um programa que tenha o que todos queremos, e um plano de como vamos conseguir que este programa, que se chama «programa nacional de luta», seja cumprido.

Então, conforme o acordo da maioria dessas pessoas que vamos ouvir, fazemos uma luta com todos, com indígenas, operários, camponeses, estudantes, professores, funcionários públicos, mulheres, crianças, anciãos, homens, e com todo aquele que tenha coração bom e tenha vontade de lutar para que não se acabe de destruir e vender nossa pátria que se chama «México».40

Ao trilhar o caminho que se propõe a construir uma nova forma de fazer política, um programa nacional de luta e de esquerda e a elaborar uma nova Constituição, elementos em boa parte já presentes nas Declarações anteriores, os zapatistas reafirmam três compromissos: 1. Manter o cessar-fogo ofensivo contra as forças governamentais; 2. Insistir no caminho da luta política com iniciativas pacíficas e 3. Defender, apoiar e obedecer às comunidades indígenas zapatistas que integram e são o comando supremo do EZLN, sem interferir em seus processos democráticos internos e contribuindo para o fortalecimento de sua autonomia, o bom governo e a melhora de suas condições de vida.

Para dar início a este processo, os rebeldes vão enviar uma delegação de sua direção em todo o território nacional para dialogar com pessoas e organizações que mantêm viva a resistência dos de baixo. Com este paciente trabalho de ouvir as expressões da luta popular e de costurar acordos, os zapatistas deixam claro que pretendem estabelecer uma política de alianças com organizações e movimentos não eleitorais que se definam, em teoria e na prática, como de esquerda, de acordo com as seguintes condições:

Não fazer acordos de cúpula para impor na base, mas sim fazer acordos para ir juntos ouvir e organizar a indignação; não levantar movimentos que depois sejam negociados às costas daqueles que os integram, mas sim levar sempre em consideração a opinião dos que deles participam; não procurar presentes, posições, vantagens, cargos públicos, de Poder ou de quem aspira a ele, mas sim ir além dos calendários eleitorais; não tratar de resolver os problemas de nossa Nação a partir de cima, mas sim construir A PARTIR DE BAIXO E PARA OS DE BAIXO uma alternativa à devastação neoliberal, uma alternativa de esquerda para o México.

Sim ao respeito recíproco à autonomia e independência das organizações, a suas formas de luta, a sua maneira de se organizar, a seus processos internos para tomar decisões, a suas representações legítimas, a suas aspirações e demandas; e sim a um compromisso claro de defesa conjunta e coordenada da soberania nacional, com a oposição intransigente às tentativas de privatização da energia elétrica, do petróleo, da água e dos recursos naturais.

Ou seja, como se diz, convidamos as organizações políticas e sociais de esquerda que não tenham registro [legal], as pessoas que se reivindiquem de esquerda e não pertençam aos partidos políticos com registro [legal] a reunirmo-nos, na data, lugar e forma que proporemos no momento oportuno, para organizar uma campanha nacional, visitando todos os cantos possíveis da nossa pátria, para ouvir e organizar a palavra de nosso povo. Então é como uma campanha, só que bem diferente, porque não é eleitoral”.41

- “Se não entendi errado, nesta fase da luta, os zapatistas acrescentam à posição contraria ao neoliberalismo o caráter anticapitalista. Dá pra dizer algo mais sobre isso...?”

- “Com certeza! - responde prontamente a coruja. Em primeiro lugar, há uma grande diferença entre ser contrário ao neoliberalismo e combater o capitalismo. Nem sempre os movimentos e organizações que se colocam em rota de colisão com as políticas do primeiro têm como meta alterar os mecanismos do sistema capitalista que, ao mesmo tempo, sustentam a aplicação destas políticas e se fortalecem com seus resultados. Sobre a razão desta opção, o Subcomandante Marcos vai falar um pouco mais num discurso pronunciado no povoado de Cañada Honda, em março do ano seguinte. Durante a reunião que aí se realiza, o porta-voz zapatista reconhece que não é possível construir a autonomia dos povos indígenas para além de onde chegaram se não se transforma radicalmente o sistema. Não só não é possível como é uma grande perda de tempo. Se deixamos que lá em cima as coisas continuem como estão, todos nós vamos ser destruídos, individualmente ou como grupo, enquanto nos mantivermos separados.

O que o sistema pretende é retardar a crise para ajustar-se; è o que está fazendo agora no México e em toda a América Latina. Se não conseguimos construir uma alternativa radical da esquerda anticapitalista, que comece a construir outra proposta de sistema ao mesmo tempo em que o combate, então não vai haver mais país, não vai haver com quem fazer comércio justo, com quem solidarizar-se. Não vai haver lutas, mas sim uma terra arrasada, um país completamente destruído, um montão de escombros com um letreiro que diga «vende-se». E conclui dizendo: Devemos levar adiante estes esforços, mas temos que nos unir seguidamente através do ouvido e da palavra, com o esforço da outra campanha, que é destruir o capitalismo sem concessões, sem esta de «vamos humanizá-lo», de «vamos aparar suas arestas para que não seja tão cruel».”42

- “A questão, então, é saber se, diante da situação em que o México se encontra, os zapatistas têm condições de dar conta desta empreitada...!”.

- “Uma tarefa desta magnitude - rebate Nádia arregalando os olhos - não pode ser obra só do EZLN. De um lado, os rebeldes são os primeiros a reconhecer que a casa zapatista não passa de uma casa bem pequena, numa rua chamada México, num bairro chamado América Latina, numa cidade chamada Mundo.43 De outro, o compromisso de construir uma nova forma de fazer política e de ampliar o leque de ação com pessoas e movimentos da esquerda anticapitalista projeta a destruição do sistema vigente para um tempo que dificilmente pode ser estimado. Mesmo assim, os rebeldes não se intimidam e, diante da longa marcha que se abre à sua frente, não titubeiam em dar o primeiro passo com a organização da....”

10. A «outra campanha».

Enquanto o cérebro do secretário tenta encaixar as peças da análise e dos rumos apresentados pela Sexta Declaração da Selva Lacandona, a ave começa a andar de um lado pra outro da mesa. Os gestos de suas asas parecem esboçar no ar o que as palavras estão prestes a explicitar. Um clima de reflexão toma conta da sala até que, de repente, a coruja pára, vira o corpo e apontando a asa sussurra:

- “Mantenha olhos e ouvidos bem abertos, pois nestaetapa da viagem se misturam possibilidades e desafios que pretendem alterar a qualidade e o grau do enfrentamento com as elites tendo como ponto de partida a luta civil e pacífica que os zapatistas se dispõem a levar adiante com os movimentos da esquerda anticapitalista. Trata-se de uma tarefa nada fácil não só em função dos limites, da dispersão e do isolamento em que se encontram estes grupos mas, sobretudo, das duras respostas que as forças a serviço dos interesses dos poderosos podem viabilizar no cenário nacional. Isso eleva o grau de incerteza que acompanha qualquer projeção em relação ao futuro desenrolar dos acontecimentos e promete momentos em que a busca de uma saída política para os conflitos pode se deparar com obstáculos bem maiores dos que já foram superados...”

- “Assim...você me deixa assustado...!”, digo ao deixar cair o instrumento de trabalho que acabava de se acomodar entre os dedos.

Passo a passo, Nádia se aproxima, apoia a asa no meu ombro e num longo suspiro diz:

- “As conseqüências do esforço destinado a construir os passos que levam a um mundo onde haja tudo para todos não podem pegar desprevenidos os caminhantes que lhes dão origem. Por isso, prever o possível desenrolar dos acontecimentos não significa jogar um balde de água fria nas pessoas que se dedicam integralmente à esta tarefa, mas, ao contrário, deve levá-las a tomar consciência das dificuldades que podem ladrilhar o caminho a ser percorrido. Ao antecipar as ações das elites, os movimentos sociais têm melhores condições de avaliar as reais possibilidades de seus esforços, o alcance das formas de luta utilizadas e até a que ponto seus planos conseguem derrotar as respostas que o poder e seus aliados levantam para defender a manutenção e o aprofundamento da atual ordem de exploração. Acredite, mais do que assustar ou desanimar, a projeção do futuro é um estímulo a não cometer erros, a não se deixar surpreender pela realidade e a avaliar o efetivo alcance das forças com as quais podemos contar. Por isso, é importante que ao relatar cada passo dado possamos visualizar não só a meta pretendida, mas também as pedras que prometem marcar presença ao longo do caminho. Com este espírito, vamos voltar ao território rebelde onde o EZLN começa a realizar os propósitos da Sexta Declaração da Selva Lacandona.

Em agosto e setembro de 2005, ocorrem em Chiapas vários encontros com organizações da sociedade civil e pessoas que se identificam com os rumos recém-traçados. Nestes momentos de contato, os zapatistas tentam alinhavar os pontos comuns que permitem dar os primeiros passos rumo à composição de uma força bem maior da simples soma das atuais possibilidades de cada movimento no interior da que passa a ser chamada de outra campanha, em clara oposição ao momento eleitoral que os partidos oficiais preparam para 2006.

No dia 10 de setembro, ao saudar os participantes de uma reunião preparatória, o Subcomandante Marcos explicita a razão de ser deste primeiro passo pelo México da resistência: Lá em baixo, com a «outra campanha», se pretende ouvir e organizar. Nada menos, mas nada mais. Não se promete nada mais do que um ouvido e a oportunidade de trabalhar juntos, de fazer com que, juntos, se decida. Não se promete outra redenção que a do trabalho e da luta, nenhuma outra recompensa que a satisfação do dever cumprido. Aqui não se oferecem postos e nem orçamentos, mas sim trabalhos e sacrifícios. Aqui não se pedem influências, recomendações e nem servilismo, mas sim compromisso, inteligência e criatividade. Aqui não se obterão lucros, mas sim surras. Aqui não se exige comprar, mas sim pensar. Aqui o calendário se fará olhando, caminhando, ouvindo, organizando em baixo eà esquerda.

E em baixo e à esquerda estão as palavras e os jeitos.

E estão as palavras que querem dizer coisas diferentes a depender de quem as pronuncia, onde as pronuncia, quando as pronuncia, a quem as diz e de que jeito as diz.

Há, por exemplo, a palavra «dor». Não é a mesma coisa quando esta é pronunciada por um mexicano que está preste a cruzar a fronteira ou quando é detido do outro lado pela Border Patrol ou pelos do Minutemann Project; que a pronunciá-la seja um indígena quando vê como, com trapaças, é despojado ao mesmo tempo da terra e da cultura; ou quando é dita por um trabalhador, um aposentado ou pensionista que vê a seguridade social ser desmantelada por decretos daqueles que se dizem preocupados com os trabalhadores; ou que a diga um pesquisador ou acadêmico de uma Universidade que constata que a ciência e o conhecimento são valorizados como produto comercial; ou que a diga um jovem do campo ou da cidade que é perseguido pela roupa que usa; ou que a diga uma mulher camponesa sentada a uma mesa onde só abundam as carências; ou que a diga um colono de um dos cinturões de miséria que crescem na modernidade mexicana; ou que a diga um operário ou operária que aprendem na própria carne o que é a precariedade no trabalho; ou que a diga um desempregado que corre jornais e escritórios sem encontrar uma vaga; ou quando a pronunciá-la é um vendedor ambulante sugado por policiais, fiscais e «líderes»; ou que seja uma lésbica, um homossexual, ou alguém mais cujo amor é criminalizado; ou um professor democrático atacado por funcionários públicos, líderes pelegos e meios de comunicação; ou que a pronunciá-la seja um artista que se nega a produzir lixo para o circuito comercial; ou um militante de uma organização política reprimido por palavras pecaminosas como «democracia», «liberdade», «justiça»; ou uma mãe, esposa, filha, parente de um desaparecido ou preso político procurando respostas sem encontrá-las; ou que a diga um pescador enfrentando a natureza adversa, os atravessadores e os grandes consórcios; ou uma mulher perseguida, desprezada e espoliada pelo único delito de não ser homem; ou que a pronuncie um ativista de uma ONG que em seu trabalho arrisca a vida e a reputação; ou um músico marginalizado pelas letras de suas canções; ou uma religiosa que escolheu caminhar em baixo e à esquerda; ou que a diga uma indígena três vezes explorada: como pobre, como mulher e como indígena; ou que seja um homem, uma mulher, uma criança num dos muitos cantos à esquerda do México de baixo a dizer: «dor».

Não é o mesmo, mas é igual. Ao dizer «dor» falam de dores diferentes, mas esta dor encontra a ponte que os une num sistema que produz esta dor e produz aqueles que sofrem: o capitalismo.

A Sexta Declaração fez uma escolha. Não escolheu ouvir com resignação e rendição nesta vida para receber a recompensa na outra vida, que é o que oferece a direita. Tampouco escolheu ouvir com a impossível neutralidade de um pouquinho pra cá, outro pouquinho pra lá, nem cheira nem fede, que apregoa o centro.

Escolheu ouvir com a vergonha e a indignação da esquerda. Escolheu ouvir a dor frisando o caráter de exploração, desprezo e espoliação do responsável por esta dor: o sistema capitalista.

A «outra campanha» deverá ouvir esta diferença na palavra «dor» pronunciada em baixo e à esquerda por quem se rebela contra esta dor. E deverá aprender a maneira em que se diz «dor».

Mas a «outra campanha» deverá construir a ponte entre esta palavra e os diferentes que a pronunciam. Porque aqueles que forem ouvidos na «outra campanha» saberão que pronunciam com outros a dor, e descobriremos a igualdade destas diferenças também na rebeldia e na resistência que provocam.

Descobriremos que esta dor só se acalma com a luta coletiva e só se alivia com uma nova relação social.

Esta ponte é o Programa Nacional de Luta, de esquerda e anticapitalista.

Então, a «outra campanha» se propõe a organizar a escuta, organizar a ponte, organizar a resistência, organizar a rebeldia, torná-la coletiva e convertê-la num movimento de transformação profunda e radical, com os de baixo, a partir de baixo e para os de baixo.

O resumo da «outra campanha» está nesta frase evidente: «falta o que falta». E o que falta é outra forma de fazer política. Sejam então bem-vindos e bem-vindas a este propósito.44

Apesar das dificuldades de unir vontades tão diversas e tão dispersas, até o dia 20 de novembro, de 2005, o balanço das adesões à Sexta Declaração da Selva Lacandona e à «outra campanha» apresenta os números que seguem: 64 agremiações políticas de esquerda, 120 organizações e povos indígenas, 203 movimentos sociais, 498 organizações não-governamentais, grupos e coletivos, 2020 pessoas a título individual, familiar, de bairro ou comunidade e 427 internacionais”.45

- “Sem dúvida, um bom começo para um esforço destinado a prolongar-se bem além do tempo eleitoral no qual os mexicanos são chamados a escolher um novo presidente da República. Mas, quem vai segurar as rédeas deste processo?”.

- “Sabendo dos desafios, o EZLN altera a sua mediação com a sociedade civil e passa a tecer diretamente a nova rede de relações. Num comunicado divulgado no mesmo dia, os rebeldes informam a dissolução da Frente Zapatista de Libertação Nacional (FZLN), cuja criação havia sido convocada em 1996, pela Quarta Declaração da Selva Lacandona. Ao explicitar as razões deste gesto, os zapatistas reconhecem que no momento da fundação da FZLN pensavam que o fim da guerra estava se aproximando e poderiam passar então à luta política aberta no interior da Frente. Não foi assim. E agora, na nova etapa da luta por democracia, liberdade e justiça inaugurada pela Sexta Declaração, o propósito do EZLN é que esta frente seja construída com aquelas pessoas que com a atitude e o trabalho demonstrem que assim o querem. Uma nova organização política, civil e pacífica, anticapitalista e de esquerda, que não lute pelo poder e que se empenhe em construir uma nova forma de fazer política. Ou seja o mesmo destino rumo ao qual estivemos andando até agora por caminhos paralelos.

Esta nova organização nascerá dirigida diretamente pela Comissão Sexta do EZLN, se entrará nela só por convite expresso, e será particularmente restrita a que se cumpram os princípios zapatistas, impondo sempre a ética sobre as considerações pragmáticas. Com esta organização, a Comissão Sexta do EZLN traçará a forma e pintará a cor zapatista no bordado multicor da «outra campanha».46

- “Bom, agora sabemos de todas estas mudanças. Mas será que daria para fazer um primeiro balanço qualitativo deste esforço de preparar a «outra campanha» junto à sociedade civil?”

- “Dos debates que marcam os meses de agosto e setembro - diz Nádia ao piscar os olhos - começam a aparecer as dificuldades que prometem limitar um possível consenso inicial.

Se, de um lado, conflui para a «outra campanha» uma grande diversidade de esforços de organizações e indivíduos que aderem à Sexta Declaração, com uma multiplicidade de idéias e propostas oriundas de sua atuação nos campos definidos pelos movimentos que integram, de outro, há empecilhos que podem frear a proposta zapatista de criar um programa nacional de luta que supere qualitativa e quantitativamente as relações de solidariedade já estabelecidas.

Entre os pontos cruciais, encontramos a predominância de um discurso que exalta o valor do não-organizado, que interpreta o ir em baixo e à esquerda zapatista como uma forma de desprezar os esforços organizativos, que não reconhece a diversidade das forças participantes, suas visões e táticas de luta. Ao superestimar o espontaneismo, esta postura tende a negar qualquer expressão que implique num mínimo de coordenação vertical no interior da «outra campanha» e eleva as não poucas dificuldades de chegar a decisões de consenso ou de caráter majoritário.

Outro aspecto não menos preocupante é que muitas organizações, ao participar deste primeiro momento de articulação, perseguem uma oportunidade para evidenciar suas posições e suas lutas específicas. Ou seja, longe de procurar somar a própria identidade e os esforços despendidos em nível local num programa de alcance nacional, tratam de buscar um espaço para fazer com que os contatos a serem realizados pela «outra campanha» dêem visibilidade à razão de ser de suas ações específicas. Enfim, parte destes movimentos trata mais de surfar uma onda do que de somar forças para ajudar a produzi-la, ainda que suas bandeiras específicas possam não aparecer ao longo desta construção coletiva.

As discussões abertas realizadas em Chiapas evidenciam uma esquerda cuja prática política limita-se, em grande parte, ao trabalho de agitação, cuja inserção real é duvidosa e que age mais no sentido de exigir dos poderosos uma solução dos problemas do que para forjar uma estratégia de luta capaz de somar forças rumo à concretização de idéias que evidenciem as contradições da ordem dominante. Além dos limites de cada movimento, esta realidade traz à tona a falta de formação teórica e histórica de muitos militantes, o gosto pela mera especulação sem a busca de bases empíricas e sem levar em consideração a experiência prática dos demais. Não por acaso, justo nos encontros que procuram chegar a pontos de partida comuns entre os que aderem à Sexta Declaração não são poucas as manifestações de falta de respeito, de intolerância ou que tratam de subestimar a importância de determinadas organizações que querem participar dos debates abertos pela «outra campanha».

É difícil dizer se estas forças serão capazes de superar seus sectarismos, limites, diferenças e preconceitos. Seja como for, os zapatistas não se furtam ao diálogo aberto com todas elas e com todas as demais que irão se integrar à «outra campanha». Apesar dos pesares, é com elas e graças a elas que o EZLN vai dar início à viagem de sua delegação pelos estados da federação mexicana a partir de janeiro de 2006”.

- “Quer dizer então que nos esperam grandes manifestações como aquelas que o país conheceu durante a marcha da cor da terra em fevereiro e março de 2001?”.

- Nada disso! - rebate a coruja. O aspecto central do périplo da caravana zapatista nos primeiros meses de 2006 é justamente o de dialogar com o México da resistência, com as lutas e organizações que fazem o quotidiano dos que se rebelam contra as tramas das elites. Estamos falando, portanto, de centenas de reuniões, encontros e atos públicos com uma participação efetiva que varia de algumas dezenas a poucos milhares de pessoas e que têm o objetivo de construir um novo patamar de enfrentamento coletivo fora do âmbito institucional e em confronto aberto com o sistema capitalista. O fato dos primeiros passos da «outra campanha» serem dados durante o período caracterizado pela disputa da presidência da República visa aproveitar da efervescência política criada pelos debates e pronunciamentos dos candidatos para evidenciar contradições, sublinhar contrastes e reafirmar idéias ao redor das quais pretende-se construir o programa nacional de lutas.

Apesar das críticas vindas de todos os lados, a delegação zapatista demonstra que os 12 anos de luta aberta do EZLN têm conquistado o direito a fazer outra política sem renunciar a nada e sem oferecer nada em troca. Isso questiona profundamente tanto as mediações como os mecanismos de representação existentes ao mesmo tempo em que estimula a consolidação de sujeitos que se rebelam diante dela e, mais uma vez, busca somar as vontades e as rebeldias que se encontram dispersas e isoladas em todo o território nacional.

Ao driblar o bloqueio da mídia pela ação das organizações que aderem à «outra campanha» e de alguns meios de comunicação, a caravana zapatista dá continuidade à idéia de construir laços de solidariedade e planos de luta apresentada na criação dos Caracóis e nas Declarações anteriores. Por este caminho, reafirma com todas as letras que a transformação do país não passa por soluções milagrosas ou pela ação de pessoas carismáticas, mas sim pela luta de um novo e mais amplo movimento social a ser construído fora do âmbito institucional, em oposição a este e às próprias regras que sustentam o sistema capitalista.

Diante de tamanho desafio, o EZLN consegue mostrar a necessidade de ir além do primeiro, e necessário, patamar de rebeldia que, por si só, não proporciona as condições necessárias para a mudança almejada. Resta saber se este momento de contato inicial será suficiente para começar a consolidar um patamar de relações com a esquerda anticapitalista capaz de ampliar e dar nova qualidade ao conflito social que, apesar dos sofrimentos da população, até agora, tem sido controlado sem grandes sobressaltos pelos donos do poder”.

- “E...será que os de cima vão deixar acontecer tudo isso sem esboçar nenhuma reação...?”.

O rosto da ave assume uma expressão séria e compenetrada. E, apoiando o queixo na ponta da asa, diz:

- “Ao que tudo indica, a elite já costura no grande tabuleiro da guerra os passos que vão testar a capacidade de resistência da frente de forças reunida pelos rebeldes chiapanecos.

De um lado, tanto a direita como os militares sabem que medidas ostensivas contra os membros da delegação do EZLN durante a «outra campanha» seriam não só um flagrante desrespeito à lei que impede a prisão dos zapatistas quando estes saem desarmados para dialogar com membros do Congresso ou da sociedade, como comprovariam através dos fatos que, no México, não há espaço para a luta democrática, civil e pacífica proposta pela Sexta Declaração da Selva Lacandona. Ao deixar acontecer o périplo da caravana que acompanha o Subcomandante Marcos, a elite procura apresentá-lo como um elemento do debate e da disputa democrática das idéias proporcionados pela sua própria ordem. Ou seja, longe de impedir qualquer avanço democrático, as instituições abrem espaço para as críticas mais radicais no interior do sistema capitalista contradizendo assim parte das expressões que procuram desqualificá-lo.

Por outro lado, porém, além de acompanhar de perto e mapear com precisão os movimentos que apoiam abertamente os rumos traçados pelos zapatistas, as forças a serviço do Estado já ensaiam os próximos passos caso o programa nacional de lutas comece a se consolidar. No dia 3 de maio de 2006, ao desalojar vendedores ambulantes da cidade de Texcoco, num duro enfrentamento que se estende a San Salvador Atenco, os corpos policiais envolvidos não pretendem apenas romper a resistência popular da região, mas buscam realizar um primeiro teste de consistência da capacidade de mobilização coletiva que será oferecida pela «outra campanha» aos movimentos em luta.

O desalojamento dos trabalhadores informais e a violenta repressão que se abate sobre as cidades nos dias seguintes atingem duramente as lideranças e os integrantes da Frente dos Povos em Defesa da Terra (FPDT). A escolha de San Salvador Atenco e da Frente como campo de teste dos poderosos não é casual. Em meados de 2002, a luta dos moradores locais organizados na FPDT força o governo a retirar os decretos de expropriação das terras de cultivo coletivas que seriam destinadas à construção de um grande aeroporto. Os enfrentamentos que se sucedem obrigam o poder a abrir mão do seu projeto e transformam Atenco num símbolo nacional da resistência popular que, organizada na Frente dos Povos, começa a oferecer seu apoio aos demais movimentos sociais que optam por lutar contra as decisões arbitrárias do governo. Além disso, nos dias anteriores, a FPDT havia manifestado sua adesão à «outra campanha», mais uma razão, portanto, para tentar impor uma derrota capaz de semear o medo e o desânimo em meio à população local.

Diante dos acontecimentos e da dura repressão que atingem os dois municípios, os zapatistas convocam os militantes das organizações que aderem à Sexta Declaração a realizarem ações pacíficas em solidariedade aos companheiros envolvidos no conflito e a reivindicar a libertação dos mais de 200 militantes presos. Protestos e manifestações marcam presença em várias cidades do país e do exterior mas, com seus líderes atrás das grades, as expressões dos representantes da Frente não escondem o amargo sabor de uma derrota inesperada.

No cenário desenhado pela repressão policial, a duração e a efetividade da resposta dos de baixo, de um lado, vão começar a revelar até a que ponto é realmente possível manter o propósito de lutar pacificamente contra o sistema capitalista. De outro, os fatos de Atenco e Texcoco oferecem às elites uma avaliação precisa dos efeitos produzidos por esta intervenção que, além de aprimorar o uso da força e a infiltração dos corpos policiais no interior dos movimentos, procura desmoralizar os primeiros esforços que tentam dar origem ao plano nacional de lutas e colocar parte significativa da população contra as ações promovidas pelos manifestantes.

Paralelamente a isso, em Chiapas, entidades filiadas ao PRI questionam a posse das terras recuperadas pelos zapatistas durante o levante de 1º de janeiro de 1994 e agem no sentido de tentar se apoderar das mesmas. É o caso, por exemplo, da Organização para a Defesa dos Direitos Indígenas e Camponeses, fundada em maio de 1998, cujas ameaças e investidas contra quatro municípios autônomos têm crescido graças ao apoio das autoridades oficiais que lavram títulos de propriedade a favor de seus membros. Com estes atos, os governos não se limitam a elevar as provocações e ameaças como buscam enfraquecer os meios econômicos das bases de apoio zapatistas mas dão uma aparência legal a gestos realizados por indivíduos oriundos de grupos paramilitares.

Enfim, a guerra silenciosa promete avançar rumo a um enfrentamento mais aberto cujas formas estão sendo ensaiadas e cujo alcance será amplamente negociado com o futuro ocupante da Presidência da República”.

Enquanto as mãos escrevem as últimas palavras do relato, a coruja revira a sua bagagem até conseguir tirar um pequeno embrulho que coloca cuidadosamente sobre a mesa.

Devorados pela curiosidade, os olhos se debatem entre o papel e o tecido que abriga carinhosamente a estranha encomenda. Nádia solta cada nó com cuidado e atenção. Mas, por minha surpresa, tudo não passa de um pouquinho de terra.

- “É... terra?!?”, pergunto sem esconder a decepção.

- “É”, responde a coruja como se estivesse falando de uma pérola de grande valor.

- “E... por que razão você trouxe ela até aqui?!?”

- “Porque estas poucas gramas de solo são parte do bem mais precioso dos indígenas zapatistas. Regada com o suor e o sangue derramado em suas lutas, esta terra foi fecundada por sua dignidade rebelde, pela resistência e o incessante caminhar de quem procura construir um mundo onde haja tudo para todos. Ao levá-la pelo mundo, velhos “não” aos projetos dos poderosos se fortalecem, novos são semeados, o presente de resignação é questionado e a indiferença encontra menos espaço para proliferar”.

Em silêncio, a ave coloca a mochila nas costas e, poucos instantes depois, alça seu vôo silencioso sobre a cidade.

A chuva parou. O sol pinta no céu um maravilhoso arco-íris. Os olhos percorrem cada palmo desta longa ponte que se projeta em direção ao futuro. Em suas cores, parecem caminhar todas as pessoas que, em qualquer lugar do mundo, enfrentam de cabeça erguida o que parecia impossível de ser desafiado. Ninguém sabe se seus esforços serão coroados de sucesso, mas, desde já, seus passos iluminam, questionam e convidam a trilhar as veredas do presente com a constância de quem, dia após dia, afia suas ferramentas para abrir novos caminhos.



Bibliografia.

Além do acompanhamento diário da situação do México e do desenrolar dos acontecimentos no Estado de Chiapas através da edição eletrônica do jornal La Jornada, foram consultados os textos que seguem:

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A primeira edição deste livro foi publicada em abril de 2005 pela Ed. Expressão Popular; a segunda, em junho de 2006.

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