domingo, 7 de junho de 2009

José Pedro Goulart: a internet e o ilegal legal

A internet arrombou a festa dos donos da bola, dos herdeiros biliardários que tomavam tequila ouro com o saldo do que não criaram. Bem feito. Contudo, embora isso tenha causado um movimento nas placas tectônicas do acomodamento geral, ainda resta a questão dos direitos dos que "não" estão escondidos no limbo virtual.

por José Pedro Goulart*



Eu estava assistindo ao Gilberto Gil no grande espetáculo que ele fez em Porto Alegre recentemente. O Gil, um cara que desde cedo pressentiu que a internet iria significar uma revolução nos hábitos das pessoas, na música e especialmente no controle (e descontrole) do mercado e dos direitos autorais. Gil, inclusive, incentiva que gravem, fotografem ele no palco, sabendo que tudo irá se espalhar. "Incentiva" é a palavra, já que "permitir" não seria uma boa: na internet não há controle, quisesse o Gil ou não.


E foi durante a música A Paz que me pus a refletir. Gil cantava "...uma bomba sobre o Japão fez nascer o Japão da paz", um paradoxo. E então lembrei daquela imagem, do gigantesco cogumelo de fumaça; e ainda de outra que era da bomba saindo da barriga do Enola Gay. Eis o que eu pensei: a quem pertencem aquelas imagens? São de propriedade do governo dos EUA? Do exército? De quem?


Em seguida, me veio uma outra questão - e se alguém quisesse usar essa imagem numa obra artística, num filme por exemplo, teria que pagar por ela? Se for assim, a imagem daquela bomba nuclear, impressa na minha memória com todo o seu conteúdo errático, tem proprietário. De maneira que um pedaço da minha memória não me pertence. (Há algum tempo eu quis usar sequências do homem na lua. Tive que fazer uma pedido à NASA. Que só as liberou mediante uma série de exigências. Mas, para ir até a lua, ninguém da Agencia Espacial Americana consultou a mim ou alguém que eu conheça.)


Tem mais, passei uma vida ouvindo música, sendo influenciado por isso, mas não posso utilizar qualquer canção em um filme sem que tenha de pagar por elas. Eis o ponto, o cara gravou um disco, escreveu um livro, pintou, bordou? Ótimo - que a coisa se espalhe. Se era arte, que se reproduza e se eternize. Mas não. Se eu quiser usar Let It Be num filme vou ter que pagar ao Michael Jackson ou sei lá quem está com o domínio. Direitos? É justo? E o meu direito à liberdade de expressão? Os Beatles fizeram a minha inocente cabeça, assim como o Bob Dylan, os Stones ou o Fagner. Passei tardes, dramaticamente iluminadas, escutando Pink Floyd sem saber que isso era uma via de uma só mão. (Você sabia que para cantar o Parabéns a Você na festa do seu filhinho, o grupo AOL, proprietário dos direitos, deveria receber um pagamento? Hein? Seu contraventor?)


Pois bem, a internet arrombou a festa dos donos da bola, dos herdeiros biliardários que tomavam tequila ouro com o saldo do que não criaram. Bem feito. Contudo, embora isso tenha causado um movimento nas placas tectônicas do acomodamento geral, ainda resta a questão dos direitos dos que "não" estão escondidos no limbo virtual.


De modo que deixo aqui meu manifesto pela "livre liberdade de expressão". Se arte é, ou foi; que seja. Enquanto isso, salve o free download, salve a bomba que está arrasando o quarteirão das injustas propriedades artísticas. Quem sabe isso não melhora as coisas? Uma bomba sobre o Japão fez nascer o Japão da paz.


*José Pedro Goulart é cineasta e jornalista.
Artigo publicado originalmente no site Terra Magazine

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