By Mike Davis
A maior parte da população urbana vive
hoje em imensos subúrbios sem infra-estrutura e serviços, os quais
escapam a qualquer conceituação tradicional. Os subúrbios das cidades
do terceiro mundo são o novo cenário geopolítico decisivo. Em poucos
anos, pela primeira vez na história da humanidade, a população urbana
superará em número a população rural. Entretanto, a maior parte dessas
pessoas não vive no que normalmente. entendemos por cidades, mas em
imensos subúrbios sem infra-estrutura e serviços, os quais escapam a
qualquer conceituação tradicional. Mike Davis[1], um dos pensadores
mais recomendados dos últimos anos aborda esta nova realidade em Planet
of slums (traduzido no Brasil como Planeta favela[2],), que é um desses
livros que podemos chamar de imprescindíveis.
Na sua descrição de uma nova “geografia
pós-urbana”, o senhor utiliza um vocabulário inovador: corredores
regionais, conurbações difusas, redes policêntricas, periurbanização…
Mike Davis – Trata-se de uma linguagem
em pleno processo de desenvolvimento e é nela que apenas reside o
consenso. Os debates mais interessantes têm surgido a partir do estudo
da urbanização no sul da China, Indonésia e no sudeste da Ásia e giram,
principalmente, em torno da natureza da periurbanização na periferia
das grandes cidades do terceiro mundo.
Com este termo refiro-me ao lugar no
qual encontram-se o campo e a cidade e a pergunta que se coloca é:
estamos diante de uma fase temporária de um processo complexo e
dinâmico ou esta natureza híbrida será mantida ao longo do tempo?
A nova realidade periurbana apresenta
uma mistura muito complexa de subúrbios pobres, deslocados do centro
das cidades e, no meio deles, pequenos enclaves de classe média,
freqüentemente de construção recente e com muros. Nessa periurbanização
encontramos também trabalhadores rurais atraídos pela manufatura de
baixa remuneração e moradores dos centros urbanos que se deslocam
diariamente para trabalhar na indústria agrícola. Curiosamente, este
fenômeno despertou também o interesse de analistas militares do
Pentágono, que consideram essas periferias labirínticas um dos grandes
desafios com o qual irá se deparar o futuro com tecnologias bélicas e
projetos imperialistas. Após uma época em que se centraram no estudo
dos métodos de gestão empresarial moderna – o just-in-time e o modelo
Wal Mart – esses militares parecem estar agora obcecados com a
arquitetura e o planejamento urbano. Os Estados Unidos desenvolveram
uma grande capacidade para destruir os sistemas urbanos clássicos, mas
não tiveram nenhum êxito nas “Sader Cities” do mundo. O caso de Faluyah
é sintomático: depois que a destroçaram com tanques de guerra e bombas
cluster, os mesmos insurgentes com os quais se quis acabar a reocuparam
quando acabou a ofensiva. Acredito que tanto à esquerda quanto à
direita concordam que os subúrbios das cidades do terceiro mundo são o
novo cenário geopolítico decisivo.
Qual é a representação cultural mais adequada para os subúrbios do terceiro mundo que o senhor descreve em planeta favela?
Mike Davis – Se Blade Runner foi um dia
o ícone do futuro urbano, o Blade Runner dos subúrbios é Black hawk
down [3]. Reconheço que não posso deixar de vê-lo: sua entrada em cena
e sua coreografia são incríveis. O filme representa com perfeição esta
nova fronteira da civilização: a “missão do homem branco” nos subúrbios
do terceiro mundo e seus exércitos ameaçadores com aspecto de
videogame, enfrentando-se com heróicos tecnoguerreiros e com os
cavaleiros da Força Delta. É claro que, do ponto de vista moral, é um
filme aterrador: é como um videogame no qual é impossível contar todos
os somalis que morrem. Além disso, a realidade é que os brancos não são
maioria entre os cavaleiros deslocados para o estrangeiro: são
americanos, sim, mas quase todos eles são também procedentes dos
subúrbios. O novo imperialismo, como o velho, tem essa vantagem: a
metrópole é tão violenta e aloja tanta pobreza concentrada que produz
excelente guerreiro para este tipo de campanha militar. Um professor
que tive escreveu um livro magnífico que mostrava, contra todo
prognóstico, que nas vitórias nas campanhas militares do Império
Britânico o fator decisivo não era a tecnologia armamentista, mas a
habilidade dos soldados britânicos no corpo-a-corpo com a baioneta, uma
habilidade que era conseqüência direta da brutalidade da vida cotidiana
nos bairros baixos ingleses.
Para além do giro em torno da violência e da insurgência, está surgindo algum sistema de autogoverno nos subúrbios?
Mike Davis – A organização nos
subúrbios é extraordinariamente diversa. Em uma mesma cidade
latino-americana, por exemplo, existem desde igrejas pentecostais, até
Sendero Luminoso, passando por organizações reformistas e ONGs
neoliberais. A popularidade de uns e outros coletivos varia muito
rapidamente e é muito difícil encontrar uma tendência geral. O que está
claro é que na última década os pobres – e refiro-me não apenas aos dos
bairros urbanos clássicos que já mostravam níveis altos de organização,
mas também aos novos pobres das periferias – têm se organizado em
grande escala, seja em uma cidade iraquiana como Sader City ou em
Buenos Aires. Os movimentos sociais organizados colocaram sobre a mesa
reivindicações de participação política e econômica sem precedentes,
que impulsionaram um avanço na democracia formal. Sem dúvida, em geral
os votos têm pouca relevância: os sistemas fiscais do terceiro mundo
são, com raras exceções, tão regressivos e corruptos, e dispõem de tão
poucos recursos, que é quase impossível colocar em marcha uma
redistribuição real. Ademais, inclusive naquelas cidades em que existe
maior grau de participação nas eleições, o poder real é transferido
para agências executivas, autoridades industriais e entidades de
desenvolvimento de todo tipo, sobre as quais os cidadãos não têm nenhum
controle, e que tendem a ser meros veículos locais dos investimentos do
Banco Mundial. A via democrática em direção ao controle das cidades –
e, sobretudo, dos recursos necessários para realizar as reformas
urbanas – segue sendo incrivelmente difícil?
Em quase todos os programas
governamentais ou estatais que procuram abordar a pobreza urbana, o
subúrbio pobre é compreendido como um simples subproduto da
superpopulação. Não tenho nenhuma confiança no conceito de
superpopulação. A questão fundamental não é se a população tem
aumentado muito, mas como fechar a equação de ter, por um lado, a
justiça social e o direito a um nível de vida decente e, por outro
lado, a sustentabilidade ambiental. Não há pessoas demais no mundo, o
que existe é, obviamente, um consumo excessivo de recursos não
renováveis. Claro que a solução deve passar pela própria cidade: as
cidades verdadeiramente urbanas são os sistemas mais eficientes,
ambientalmente falando, que criamos para a vida em comum. Oferecem
altos níveis de vida por meio do espaço e do luxo públicos, ou permitem
satisfazer necessidades que o modelo de consumo privado suburbano não
pode permitir-se. O problema básico da urbanização mundial atual é que
não tem nada a ver com o urbanismo clássico. O autêntico desafio é
conseguir que a cidade seja melhor como cidade. Planeta favela dá razão
aos sociólogos que assinalaram nos anos 50 e 60 os problemas da
suburbanização norte-americana: ocupação caótica do território,
incremento dos tempos de deslocamento do domicílio ao trabalho e dos
recursos associados a esse deslocamento, deterioração da qualidade do
ar e falta de equipamentos urbanos clássicos?
Mas não existem cidades excessivamente povoadas para um entorno escasso em recursos, no qual estão implantadas?
Mike Davis – A inviabilidade de uma
megacidade tem menos a ver com o número de pessoas que vivem nela do
que com seu modo de consumir: se são reutilizados e reciclados os
recursos e se compartilha o espaço público, então é viável. Tem que se
levar em conta que à pegada ecológica varia muitíssimo segundo os
grupos sociais. Na Califórnia, por exemplo, a ala direita dos
movimentos conservacionistas sustenta que há uma enorme onda de
imigrantes mexicanos que é responsável pelos congestionamentos e pela
poluição, o que é completamente absurdo: não existe população com menor
pegada ecológica ou que tenda a utilizar o espaço público de forma mais
intensa que os imigrantes da América Latina. Os verdadeiros problemas
são os brancos que passeiam em seus carrinhos de golfe pelos cento e
dez campos que existem em Coachella Valley. Em outras palavras, um
homem da minha idade, ocioso, pode estar usando dez, vinte ou trinta
vezes mais recursos que uma chicana que tenta seguir adiante com sua
família num apartamento do centro da cidade.
Não se pode deixar levar pelo pânico do
crescimento da população ou da chegada dos imigrantes; o que se deve
fazer é pensar como se podem fomentar as atitudes do urbanismo para
conseguir, por exemplo, que subúrbios como os de Los Angeles funcionem
como uma cidade no sentido clássico. Também se deve respeitar a
necessidade absoluta de conservar as zonas verdes e as reservas
ambientais sem as quais as cidades não podem funcionar. A tendência
atual em todo o mundo é que os pobres busquem acomodação em zonas
úmidas (de mananciais) de importância vital, que se instalem em espaços
abertos cruciais para o metabolismo da cidade. Aí está o exemplo de
Bombaim, onde os mais pobres assentaram-se em um Parque Nacional
adjacente e que, de vez em quando, são comidos pelos leopardos, ou de
São Paulo, onde se empregam enormes quantidades de substâncias químicas
para purificar a água para se livrar de uma batalha perdida contra a
poluição na cabeceira de suas fontes de abastecimento. Se, permite esse
tipo de crescimento, são perdidas zonas verdes e, os espaços abertos,
os aquíferos são bombeados até esgotá-los e se são contaminados os
rios, danifica-se fatalmente a ecologia da cidade.
Tradução: Marta Kanashiro
Fonte: Com Ciência (Revista Eletrônica de Jornalismo
Científico), SBPC, jun/2007.
Científico), SBPC, jun/2007.
Notas
[1] Planeta Favela, lançado no Brasil
no final de 2006, na obra Davis aborda o processo de favelização e
empobrecimento das cidades do terceiro mundo. Alvo de diversas
traduções, em especial de trechos que parecem ser os mais tocantes para
a questão das cidades no terceiro mundo, a entrevista recebeu, para ser
publicada na ComCiência, uma tradução livre da versão em espanhol
publicada pelo Instituto Argentino para o Desenvolvimento Econômico.
[2] Mike Davis – urbanista, historiador
e ativista político tem publicado uma série de trabalhos que se
tornaram referências no meio acadêmico, tais como Ecologia do medo,
Holocaustos coloniais, e Cidade de quartzo: escavando o futuro em Los
Angeles. Não apenas sua obra, mas também sua trajetória de vida é
marcada por experiências instigantes. Davis já foi caminhoneiro,
açougueiro e militante estudantil. Atualmente é professor no
Departamento de História da Universidade da Califórnia, em Irvine, e
editor da New Left Review. Ele também contribui para a publicação
britânica Socialist Review, do partido socialista dos trabalhadores da
Grã-Bretanha, e já atuou como ensaísta e jornalista em publicações como
The Nation e New Statesman.
[3] Black hawk down (Falcão negro em
perigo) é um filme dirigido por Ridley Scott em 2001, que retrata uma
força de elite americana enviada para capturar militares locais durante
a guerra civil da Somália (1993).
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