Atualizado em 03 de dezembro de 2009 às 09:03 | Publicado em 03 de dezembro de 2009 às 08:41
Quando comecei a ler o já famoso texto de César
Benjamin: “Os filhos do Brasil”, publicado pelo jornal Folha de S.
Paulo em 27 de novembro, fiquei orgulhoso de ser da esquerda. E mais
ainda: de ter compartilhado com o autor do texto alguns momentos
emocionantes de nossa luta comum, como o final da marcha do MST para
Brasília, em 1997, quando me encontrei pessoalmente com ele, pela
primeira vez. Os parágrafos iniciais do texto são primorosos. Muito bem
escritos, compõem uma narrativa densa, sedutora, que vai criando no
leitor uma vontade de querer saber mais sobre uma história que nunca
foi contada direito: a história da ditadura militar, dos porões, das
torturas, das prisões, dos seres humanos condenados à ignomínia.
Benjamin soube retratar com grande humanidade os seus companheiros
temporários de cela. Resgatou-lhes a história, a identidade, a face
profundamente humana.
Mas aí, veio a facada, o golpe inesperado, a
decepção, a tristeza profunda. Benjamin relatou, no mesmo texto, uma
conversa supostamente mantida com Luís Inácio Lula da Silva, em São
Paulo, em 1994, durante a campanha à Presidência do Brasil. Lula teria
“confessado”, então, entre amigos, que, na prisão, tentou seduzir, sem
sucesso, um militante de uma organização de esquerda. Benjamin faz uma
comparação entre o assédio descrito por Lula e o temor que ele mesmo,
Benjamin, sentiu, quando preso, de ser “currado” por outros detentos.
Não entendi nada. Li de novo, reli, tentei buscar
alguma ironia oculta, algo que justificasse, no plano do próprio texto,
o absolutamente injustificável paralelo entre estupradores que pululam
nas prisões brasileiras – em geral, seres humanos reduzidos a condições
quase completamente animalescas pelo próprio sistema carcerário, e/ou
por uma vida anterior mergulhada na mais profunda miséria econômica,
ideológica e afetiva – e Lula, que não estuprou ninguém, mas que,
supostamente, comentou ter sentido o desejo de manter relações sexuais
com um companheiro de cela que não cedeu aos seus desejos. Não quis
acreditar que alguém dotado com os recursos intelectuais de Benjamin,
adquiridos ao longo de sua longa história de luta pela liberdade e pela
dignidade humana, pudesse cair em um pântano tão sórdido e profundo.
Mas não encontrei nada no texto de Benjamin que permitisse uma
interpretação positiva. Ou melhor: encontrei “o” nada: o vazio
absoluto; vazio de sentido, o vazio da total falta de perspectivas, o
vazio de um rancor desmedido.
(Antes de prosseguir, esclareço logo: não sou e
nunca fui “lulista”; não sou mais já fui petista; não simpatizo com a
maioria das medidas de governo adotadas por Lula, e por isso sou
totalmente favorável à crítica de esquerda ao seu governo. Mais
precisamente, creio que Lula pode e deve ser criticado por aquilo que
fez, mas acho muito estranho ele ser atacado por aquilo que NÃO
praticou.)
Vamos agora considerar, por um segundo, que Lula
realmente fez o que supostamente disse ter feito. Isto é, que em dado
momento tentou seduzir – seduzir, note bem, não estuprar -- o colega de
cela. E daí? O que se pode concluir disso? Qual seria, nesse caso, o
crime de Lula? O exercício, o desejo da homossexualidade? Estaremos,
então, diante de um texto homofóbico?
Ainda segundo o próprio Benjamin, como já
observado, Lula teria comentado o caso numa roda de amigos. Estamos,
então, diante de um gravíssimo precedente, aberto pelo próprio
Benjamin. De hoje em diante, todos teremos que suspeitar dos nossos
amigos, teremos que nos policiar para que nossas palavras não sejam,
eventualmente, atiradas contra nós por algum “traíra”, algum “dedo
duro”, algum “cagueta”, algum Judas, algum oportunista que resolva
tirar proveito de uma situação de cumplicidade. Revivemos, então, a era
da delação (Premiada? Que o prêmio, no caso, teria sido pago a
Benjamin?), a era da intriga, da fofoca, da futrica, da artimanha, da
safadeza. Que vergonha! (Isso tudo me faz lembrar a famosa oração de
Marco Antônio, no brilhante texto de Shakespeare: “Poderoso César,
terás então descido a tão baixo nível?”)
Benjamin utilizou a imprensa dos patrões para
atacar um expoente do movimento de esquerda do Brasil. Claro, claro,
claro: sempre se pode alegar que Lula não é de esquerda, como ele mesmo
já disse e como eu, pessoalmente, avalio. Mas há um abismo entre
considerações de caráter individual, feitas por indivíduos privados e
isolados, ou mesmo por grupos e seitas, e a realidade política
concreta, historicamente determinada pela luta de classes. No contexto
brasileiro, em que as alternativas concretas ao governo Lula (e à sua
imagem refratada Dilma Rousseff) são figuras sinistras como as de José
Serra e Aécio Neves, Lula surge como um expoente à esquerda do espectro
político, com algumas conseqüências importantes para a luta de classes
na América Latina: por exemplo, a condução exemplar do governo
brasileiro no caso de Honduras (embora feiamente chamuscada pelo
desastre no Haiti), a recusa em avalizar o acordo das bases militares
estadunidenses com a Colômbia e a denúncia permanente do bloqueio de
Cuba. Para não mencionar o fato de que a figura de Lula, malgré lui
même, inspira movimentos de resistência ao capital em todo o mundo.
Disso não se conclui, automaticamente, que a esquerda deva,
necessariamente, apoiar o governo Lula, ou mesmo apostar na eleição de
Dilma. Ao contrário, deve aproveitar as contradições, os paradoxos e as
ambigüidades para fortalecer o seu próprio campo. Mas Benjamin preferiu
fortalecer as correntes representadas pelo jornal dos campos Elíseos.
Não por acaso, a Folha de S. Paulo cedeu o espaço
todo pedido por Benjamin. Cederia mais, se necessário fosse. Benjamin
conhece a teoria marxista e sabe, com Gramsci, que a mídia dos patrões
é o verdadeiro organizador coletivo, é o grande partido do capital.
Triste é o fato de ele ter arregaçado as mangas para trabalhar por tal
partido. E pior: Benjamin sabe que o falso paralelo que tentou traçar
entre os predadores das prisões da ditadura e o prisioneiro Lula seria
muito mais verdadeiro se, no lugar de Lula, ele colocasse os donos dos
jornais para os quais hoje escreve.
Todo o encanto produzido pelos primeiros parágrafos
do texto de César Benjamin foi transformado em fel a partir do momento
em que se instaurou a delação, o oportunismo, o absurdo. Lula não
estuprou o seu companheiro de cela, mas Benjamin violentou, com alto
grau de sadomasoquismo, a própria consciência e uma história repleta de
glórias. Requiescate in pace
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