segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

CRIAR UM POVO FORTE

Contribuições para a discussão sobre Poder Popular

Felipe Corrêa


“Um povo forte não precisa de líderes.”
Emiliano Zapata


A ESTRATÉGIA DE TRANSFORMAÇÃO SOCIAL

Para iniciar uma discussão sobre o poder popular, é relevante retomar a concepção que temos de estratégia de transformação social, já que é nossa prática política, como anarquistas, que poderá apontar para esta transformação. Diz o programa da FARJ, em relação a esta estratégia de transformação social:

“Conceber nossa estratégia de transformação social é o que estamos tentando realizar neste texto. Primeiramente, refletindo sobre a primeira questão, e mapeando o capitalismo e o Estado, que dão corpo à sociedade de dominação e exploração, depois, refletindo sobre a segunda questão, tratando de conceber nossos objetivos finalistas de revolução social e socialismo libertário. Finalmente, refletindo sobre a terceira questão e propondo uma transformação social que se dê a partir dos movimentos sociais, constituídos em organização popular, em interação permanente com a organização específica anarquista. Tudo isso, considerando prioritariamente os interesses das classes exploradas. Assim, por trás da concepção de todo este material teórico, está um raciocínio estratégico.”[1]

Portanto a estratégia que concebemos baseia-se nos movimentos populares (movimentos de massas), em sua organização, acúmulo de força, aplicação de violência visando chegar à revolução e ao socialismo libertário. Processo que se dá conjuntamente com a organização específica anarquista que, funcionando como fermento/motor, atua conjuntamente com o nível de massas e proporciona as condições de transformação. Estes dois níveis (dos movimentos populares e da organização anarquista) poderiam ainda ser complementados por um terceiro, o da tendência, que agrega um setor afim dos movimentos populares. Poderíamos então dizer que o caminho para a construção desta transformação social possui relação com a nossa concepção de círculos concêntricos.

“O conceito fundamental da organização política libertária são os círculos concêntricos. Este conceito é simples e implica separar as formas de atuação e os níveis de compromisso. O político-especí fico corresponde ao ideológico e é para os militantes politicamente organizados [a organização específica anarquista]. Como esta organização não é de massas, portanto não tem filiação aberta. Compreende-se que o nível político-social e social devem ser massivas e abertas a todos os militantes populares. O político-social é para um setor afim, que compartilhe um estilo de trabalho, mas não necessariamente adepto no sentido ideológico-doutriná rio [a tendência]. Já o social propriamente dito é para o conjunto das classes oprimidas, para a noção generalizável de povo como um todo. Corresponde às instâncias gerais da luta de classes e popular, proporcionando a organização do tecido social-produtivo, que é o pilar e o terreno do projeto de Poder Popular [os movimentos populares].”[2]

Assim, uma discussão sobre o poder popular deve levar em conta algumas premissas. Primeiramente, que o capitalismo é uma sociedade de classes e que, portanto, a luta de classes é um aspecto central. Em segundo lugar, que as mobilizações das classes exploradas, as lutas populares de massas, são imprescindíveis e que, baseando-se no conjunto de necessidade, vontade e organização, expõem as contradições deste sistema de classes. Finalmente, a discussão de poder popular deve implicar uma crença de que a transformação deve basear-se no protagonismo destes movimentos, ou seja, no protagonismo do povo organizado, o que diferencia esta estratégia de outras que concebem a transformação feita pelo partido de vanguarda, ou pela ação de minorias descoladas da base (como no caso do insurreicionalismo anarquista – propaganda pelo fato – ou do foquismo, por exemplo).


A QUESTÃO DA POLÍTICA

A política tem de ser compreendida para além do Estado. Ainda que diversos setores tenham relacionado estritamente a política com o Estado, entendemos que, diferentemente, ela se trata de algo além, dando conta das relações de força na sociedade – o que a liga completamente à questão do poder – e também da gestão dos assuntos sociais – o que envolve a questão das decisões, e, portanto, da política. Neste caso, as relações políticas da sociedade envolveriam as diversas forças em jogo e, para uma análise da sociedade contemporânea, não há como não entender o principal jogo de forças a luta de classes, em que um conjunto de classes exploradas (trabalhadores urbanos, rurais, camponeses, setores precarizados etc.) está em permanente conflito com uma classe dominante (proprietários urbanos e rurais, gestores etc.), que tem no Estado um de seus aliados.

Retomando nossa estratégia em relação a este conflito, temos por objetivo aumentar a força social das classes exploradas e organizá-las para que sua força seja aplicada no conflito, ou seja, criar poder popular.

Ao contrário do que reforçam setores autoritários, para nós, os movimentos de massa não possuem somente a capacidade da luta econômica de curto prazo; entendemos que é possível, na organização econômica em torno das necessidades, desenvolver uma luta que contenha elementos políticos e capacitar estes movimentos para serem os protagonistas da construção de uma nova sociedade.


PODER POPULAR NA AMÉRICA LATINA

Pelas informações que conseguimos levantar, parece-nos que o conceito de poder popular é relativamente novo, ainda que se possa identificar seu conteúdo nos clássicos como Proudhon ou Bakunin, a partir desta análise das forças sociais em conflito.

Na América Latina, conseguimos identificar duas fontes principais na utilização deste termo que o utilizam desde os anos 1960. Primeiramente pela Federação Anarquista Uruguaia (FAU) que reivindicava ser necessário criar um povo forte desde os anos 1960 e que, em 1970 afirmava em “A Organização Política é o Decisivo”:

“O problema do poder, decisivo em uma transformação social profunda, só pode ser resolvido a nível político, através da luta política. E esta requer uma forma específica de organização: a organização política revolucionária. Só através de sua ação, enraizada nas massas, é possível se conseguir a destruição do aparato estatal burguês e sua substituição por mecanismos de poder popular. Certamente, as formas de poder, o Estado, localizam-se em um nível preciso da atual estrutura social. Embora tenham, obviamente, relações de interdependência com os níveis restantes da realidade social (econômico, ideológico, jurídico, militar, etc.) não podem ser reduzidos, simplesmente a eles. Em termos concretos, isto significa que a atividade política não pode ser reduzida à luta econômica, à prática sindical [...].”[3]

O Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR) chileno enfatizava, nos anos 1970:

“Concebemos o poder popular como um poder independente do governo atual [...], como um poder autônomo que unifica o conjunto dos setores sociais (operários, estudantes, camponeses, empregados, pequenos comerciantes) de uma determinada comuna, tomando esta como a organização celular de toda cidade ou região. [...] A tarefa da classe operária é destruir o Estado capitalista e para isto deve desenvolver o poder popular, que progressivamente deverá enfrentar o poder dos patrões. [...] O poder popular não se cria por vontade de ninguém. Nasce e se fortalece ao calor da luta. [...] [Deve-se levar em conta o] problema de acumular forças. Um período pré-revolucioná rio implica uma forma particular de somar forças, através da unidade de todas as camadas do povo [...] em organismos de poder popular. Estes irão forjando uma aliança de classe maciça ao largo dos enfrentamentos sociais, e daí modificando a situação para uma situação revolucionária que permita para a classe operária tomar o poder.”[4]

No entanto, nesta época, da mesma forma que hoje, os setores que reivindicavam o poder popular queriam dizer, por este termo, coisas distintas. Vejamos:

“Acreditamos que a idéia do Poder Popular, tão em voga nos anos 60 e em começo dos 70, é fiel reflexo da persistência de uma tradição libertária subterrânea no seio da esquerda. No entanto, deve-se recordar que o termo ‘Poder Popular’ recebia distintas interpretações: enquanto para os partidários mais conservadores da Unidade Popular, Poder Popular queria dizer unicamente bases de apoio do governo, pois não concebiam um processo por fora do governo, nem contra o Estado (talvez por não conhecessem um movimento que tivesse ido para além das meras reformas), para setores operários e populares de base, e para a cultura mirista, Poder Popular queria dizer a organização direta do povo, em oposição ao Estado e o Poder Burguês. Qual era o sentido que se dava, se era tático ou estratégico, também é outra discussão. Muitos setores que assim compreendiam o Poder Popular, atribuíam a ele um papel único na luta contra o Estado, mas acreditavam que este deveria assumir posição subordinada quando o partido de vanguarda conquistasse o poder. Mas para setores de base do mirismo, e ligados a experiências de construção popular nos Comandos Comunais e nos Cordões Industriais, estes deviam ser as próprias bases da futura sociedade.”[5]

Nota-se, desta maneira que, desde o início, poder popular era um conceito em disputa, assim como socialismo ou mesmo anarquismo. Para a FAU, o poder popular deveria ser construído no seio dos movimentos populares, estimulado pela organização política anarquista. Outro elemento importante que aparece, e que será muito enfatizado pela FAU anos depois, é a contestação do esquema de infra e super-estrutura, negando que a transformação econômica resolva todo o problema do poder presente em outras instâncias. Para o MIR, o poder popular constrói-se na luta das classes exploradas, independente do governo, com objetivo de acumular força para derrubar Estado e capital, dando o todo poder ao povo. Identificamos em ambas as posições a idéia, também presente no sindicalismo revolucionário, de que é no seio da sociedade presente, em meio às lutas, que se forja o embrião da sociedade futura.


O CONCEITO DE PODER

Muitos anarquistas no passado motivaram-se em afirmar que os anarquistas seriam contra o poder, relacionando muitas vezes poder ao Estado ou à dominação. No entanto, para diversos anarquistas da nossa corrente, que realizaram elaborações teóricas à luz de autores que trataram deste tema posteriormente, o poder está ligado à questão das forças sociais em jogo e pode ser bom ou ruim, dependendo de como se julga. Vejamos novamente duas boas definições que aproximam o que se poderia entender por poder. Em um documento conjunto sobre o tema, a Federação Anarquista Gaúcha (FAG) e a FAU afirmam:

“Está claro que isto nos leva ao tratamento de outro conceito: o de poder. Ferramenta imprescindível. Os estudos que parecem mais rigorosos nos indicam algumas questões fundamentais, a saber: que o poder circula por todo o corpo social, pelas diferentes esferas estruturadas. Vale dizer por todas as relações sociais. Teríamos assim poder no econômico, jurídico-político- militar, ideológico-cultural. Teríamos poder em todos os níveis da sociedade. Nas escalas menores o poder adquire importância também a luz da formação de embriões de nova civilização, no tramado de diferentes formas de auto-organização ou autogestão.”[6]

Fábio López, no livro Poder e Domínio: uma visão anarquista, que discutiu, a meu ver, de maneira muito acertada a questão, conceitua poder da seguinte forma:

“Uma força social tem determinada capacidade de realização. Capacidade de realização pode ser entendida, como a possibilidade de produzir de determinada força social, quando colocada em ação pelo agente que a detém. [...] Quando um agente tem a capacidade de realizar ou produzir determinado efeito, se diz que ele tem poder. Não é nada disto, o agente pode ter a capacidade de realizar até uma relação de poder, contudo, nem tudo que o agente realiza é poder. [...] Nosso trabalho se restringe ao poder como relação social. Então só entendemos por poder aquilo que atinge os agentes sociais. O poder, também, não pode ser entendido apenas como sinônimo de repressão: o poder constrói, o poder cria, o poder articula e estrutura toda a sociedade. Sempre em favor de quem o detém. Contudo, isto não é necessariamente antipopular. [...] Poder não pode ser mero sinônimo de força social, pois para ter poder é necessário fazer uso de sua força e ela ter efeito – ou ao menos poder fazer uso desta força (quando lhe convier) e isto ser o suficiente para conseguir o efeito. [...] Poder é a imposição da vontade de um agente através da força social que consegue mobilizar para sobrepujar a força mobilizada por aqueles que se opõem.”[7]

Vejamos então os elementos que nos trazem FAU, FAG e Fábio López. Primeiramente, uma informação relevante, de que poder circula por todas as relações sociais sejam elas entre classes, entre grupos ou mesmo entre duas pessoas que possuem alguma relação. Desta maneira, o caso não é de acabar com o poder, visto que o poder está ligado ao conflito e os conflitos são infinitos, portanto, o poder pode modificar-se, mas nunca deixar de existir. Assim, podemos entender que não há vácuo político e se uma das partes envolvidas em um conflito não tem poder, podemos afirmar que a outra tem.

Portanto, ao tratarmos da luta de classes, o caso não é discutir como acabar com as relações de poder, mas como conceber um modelo libertário e em acordo com aquilo que pregamos tanto para a característica das lutas, ou para o estilo militante, como para a sociedade que desejamos construir.

Outra questão de relevância: uma coisa é capacidade de realização, quando alguém pode vir a produzir uma força social, outra coisa é quando há uma força social implicada no conflito e outra, ainda, quando esta força social supera as outras forças em jogo, o que constitui o poder. Tomemos estes conceitos aplicando-os rapidamente em nossa sociedade: as classes sociais, ou mesmo todos os indivíduos, possuem capacidade de realização. Tomemos o exemplo das classes exploradas: elas possuem esta capacidade, ou seja, uma força elementar e potencial, mas precisam ser colocadas em prática para constituir uma força social real, como enfatizou Bakunin:

“É verdade que há [no povo] uma grande força elementar, uma força sem dúvida nenhuma superior à do governo, e à das classes dirigentes tomadas em conjunto; mas sem organização uma força elementar não é uma força real. É nesta incontestável vantagem da força organizada sobre a força elementar do povo que se baseia a força do Estado. Por isso, o problema não é saber se eles [o povo] se podem sublevar, mas se são capazes de construir uma organização que lhes dê os meios de chegar a um fim vitorioso – não por uma vitória fortuita, mas por um triunfo prolongado e derradeiro.”[8]

Quando, como coloca Bakunin, o povo organiza-se, colocando sua força no conflito de classes, e constrói uma organização capaz de gerar os meios para garantir os desejados fins – ou seja, a revolução social e o socialismo libertário – ele sobrepõe as forças da classe dominante. Utilizando os conceitos de FAU, FAG e Fábio López, poderíamos dizer que, no momento que o povo consegue aplicar sua força social no conflito e vencer a revolução, ele consolida, de fato, um poder que, por ser realizado pelas classes exploradas, poderia ser chamado de poder popular.

Mas se os anarquistas não são contra o poder, contra o quê então eles lutam? Aqui cabe outro conceito importante, que se diferencia do de poder, que é o de domínio.

“Domínio (ou dominação) é dispor da força social de outrem (do dominado), e, conseqüentemente, de seu tempo, para realizar seus objetivos (do dominador) – que não são os objetivos do agente subjugado. [...] O domínio não pode ser o mesmo que poder. [...] No domínio encontramos exatamente os mesmos elementos, mas a diferença entre ambos é que, na relação de poder, o objeto controlado pelo poderoso é distinto do subjugado. Já na relação de domínio, o objeto controlado é a própria força social do subjugado. Na relação de domínio, a força social do subjugado não é mais comandada pelo próprio, mas por seu dominador. [...] Para considerarmos que o agente está dominado, este agente terá de usar sua força social para a realização dos objetivos do dominador.”[9]

No caso do domínio, a diferença é que a força social daqueles que foram subjugados no conflito, é usada em favor daquele que domina, sendo os objetivos dos dominados diferentes dos objetivos do dominador, ainda que esta dominação possa ser ou não consentida. Aplicando o conceito no conflito de classes do capitalismo, podemos afirmar que a sociedade capitalista é uma sociedade em que existe domínio pois o proprietário, por exemplo, por meio da propriedade privada dos meios de produção, domina os trabalhadores, obrigando-os a vender sua força de trabalho, que é utilizada para os objetivos do proprietário – a obtenção de lucro, dentre outras maneiras, pela obtenção da mais-valia. O domínio nunca é popular e não pode ser defendido por aqueles que querem construir uma sociedade de liberdade e igualdade, portanto, podemos afirmar que não é contra o poder que lutam os anarquistas, mas contra o domínio.

Muitos anarquistas defendem que construir poder – o que é caracterizado pela mobilização dos setores de base de baixo para cima – e portanto um poder popular – é, na realidade, o caminho da transformação. Vejamos mais detalhadamente do conceito de poder popular.

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