segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

O PODER POPULAR

                               Desenho de Zé Paiva: Movimentos Populares e Solidariedade de Classe
Desenho de Zé Paiva: Movimentos Populares e Solidariedade de Classe



Aqui estão algumas definições de poder popular para continuar as discussões. Gilmar Mauro, militante do MST, tem uma forma interessante de definir o poder popular, como sendo este um novo poder:

“O Poder Popular, portanto, brota e se realiza com e pelo povo (enquanto classe social) num projeto de construção do socialismo. É a capacidade de pensar, propor e fazer o seu próprio destino e os destinos da comunidade, da região e de um País, respeitando- se as diferenças culturais e as individualidades. Individualidade aqui, não no sentido do individualismo burguês, mas das capacidades físico-psíquicas e da subjetividade dos indivíduos, já que todo processo de construção do Poder Popular, necessariamente terá que ser coletivo.

Criar o novo poder, ou seja, criar o poder popular, significa criar novas formas de relações humanas, novas relações societárias, novas relações políticas. Estas não podem começar apenas a partir da ‘tomada’ do aparelho de Estado, mas devem realizar-se no processo, na caminhada. [...] Se queremos liberdade, o nosso fazer tem que ser libertário.

Criar o Poder Popular significa construir novas relações cotidianamente nos processos de lutas, nas escolas, nas famílias, nas relações entre militantes, nas estruturas organizativas. Em todos os espaços devemos ir forjando e exercitando os valores e a cultura do poder popular. Os sujeitos não se realizam por uma concessão que lhes é dada. Mas por sua luta, pois através dela é que se conquista o direito e se adquire consciência do mesmo. A consciência do Poder Popular não será imposta de fora e nem de cima para baixo, mas de um processo que se dará a partir da ‘práxis’ inovadora, lutas/reflexã o, prática/consciê ncia, erros/acertos.

Na atualidade e, para não cair no idealismo, o Poder Popular, enquanto forma, deverá ser o de uma ‘democracia popular’, uma vez que ainda, experimentamos e aprendemos em meio às desigualdades. Se existem desigualdades deve haver democracia, respeitando- se as opiniões e os direitos das minorias (politicamente) , e que, ao mesmo tempo, se faça um permanente exercício de construção de hegemonia da classe trabalhadora, o mais horizontal possível. Todavia, não pode ser a democracia burguesa, balizada na falsa noção de igualdade, em que as possibilidades se diferenciam pelas posses de cada um. Deverá ser um exercício da democracia solidária, de participação direta e de construção da consciência de classe.”[10]

Fábio López também traz uma contribuição:

“No ‘modelo de poder popular’ não existe domínio. O chamamos assim, pois esta é a única forma de haver uma organização com poder, onde seus componentes não sejam meros instrumentos alienados da vontade de terceiros. Ou seja, o membro de uma organização autogestionária compõe o poder daquela organização voluntariamente: suas sugestões, vontades e força são elementos relevantes. [...]

A justificativa de chamarmos esta forma de poder como popular, consiste no fato de esta ser a única forma de organização onde seus componentes não são meros instrumentos alienados submetidos à vontade de terceiros. Isto significa que, para existir de fato um poder popular, as vontades e sugestões dos que compõem voluntariamente aquela força social têm de ser elementos relevantes no planejamento e na tomada de decisão da organização. Quando o denominamos ‘poder popular’, estávamos querendo realçar que esta é a única forma de o povo se organizar e ter poder sem cair nas mãos de um comandante, dominador, chefe, dono, déspota, príncipe, tirano, seja lá o nome que receba, aquele que impõe sua vontade a todos na organização.”[11]

Juan C. Mechoso, da FAU, contribui também:

“O poder popular exercido pelos trabalhadores e pelo povo com organismos por eles controlados, amplamente democráticos e participativos, serão os que assumirão tal controle, apropriando- se das funções tutelares, exercidas a partir da esfera estatal. Por isso uma estratégia de poder popular deve ter como premissa essencial a construção destes organismos e esta á uma tarefa política chave que desde já deveria ter um papel primordial na determinação do futuro revolucionário: se ele será socialista e libertário ou não. Por isso que a derrota do sistema capitalista e autoritário, da criação de um autêntico poder popular, está ocorrendo todos os dias, em relação a como se orienta e concretiza o trabalho político e social permanente.”[12]

Destas definições, podemos tentar amarrar algumas coisas. Primeiro, insistimos que resolver o problema do poder, em termos de relações sociais, não significa ser amigo do patrão. Estamos falando de uma sociedade de classes e de um processo que se dá na luta de classes e por isso, deve ter sempre perspectiva classista. Desta forma, como enfatizamos, um projeto de poder popular é aquele que busca aumentar permanentemente a força social do conjunto de oprimidos e, pedagogicamente, fazendo-o aplicar no conflito esta força lutando por conquistas de curto prazo e tendo um horizonte revolucionário e socialista. No momento em que os oprimidos conseguem sobrepor sua força à da classe dominante eles consolidam sua hegemonia e o poder popular de fato, já que entendemos que este poder só se realiza completamente em uma nova sociedade de igualdade e liberdade, ou seja, uma sociedade em que o domínio não exista e as associações e organizações sejam voluntárias, não-alienadas e que não haja mais exploração e dominação; uma sociedade em que haja liberdade individual, mas que esta se dê dentro da liberdade coletiva.

Isso implica necessariamente uma discussão de meios e fins, que também está presente na discussão de poder popular. Ou seja, se queremos construir uma sociedade em que a liberdade e a igualdade sejam seus pilares, teremos que escolher um caminho que conduza a este fim. E os anarquistas foram sempre muito felizes em reivindicar esta coerência entre meios e fins, defendendo que a estrada que pegarmos, determinará o lugar aonde chegaremos. Não adianta pegar uma estrada para o sul se queremos chegar ao norte. Assim, criar o poder popular, ou seja, criar um povo forte, que seja protagonista tanto de suas lutas como da sociedade futura, exige que o próprio povo tome seu destino em suas próprias mãos. Portanto, pensar em poder popular significa pensar em um modelo de organização popular, um estilo militante para as lutas que determinarão os objetivos finalistas. A forma destas lutas devem constituir o novo mundo dentro deste, e, no seio destas lutas, deve-se buscar retomar uma cultura própria das classes exploradas e um reforço de novas relações sociais, que vão contribuir para a construção do poder popular. Mas falar de como devem constituir-se as lutas, implica que discutamos um pouco mais a estratégia.


PODER POPULAR E ESTRATÉGIA

Deve-se pensar o poder popular em dois momentos distintos. Um, enquanto ele está sendo construído, nas lutas presentes e outro, quando está consolidando- se, no momento pós-revolucioná rio.

Pensar o poder popular no presente, implica pensar nas lutas dos movimentos populares. Portanto, construir poder popular hoje só pode significar duas coisas: criar movimentos populares ou integrar movimentos populares já existentes. Neste processo, é uma discussão tática e não estratégica se se deve fazer uma coisa ou outra. Em situações em que for possível atuar em movimentos já existentes, esta é a melhor alternativa, mas em casos de impossibilidade (pelo modelo de funcionamento do movimento, etc.) ou em casos de não haver movimentos, pode-se optar pela sua criação. Lembrando que em nossa concepção os movimentos devem ser sempre construídos em cima das necessidades (emprego, terra, trabalho, teto, luta contra a violência, etc.) e lutar pelas conquistas de curto prazo (reformas) que é o que mobiliza. A maneira de como se conquistarão estas reformas e de como será desenvolvida a luta determinará se o poder popular estará ou não sendo criado e apontando para uma nova sociedade assim como a concebemos. Vejamos quais são as características dos movimentos sociais que os farão apontar para um projeto de poder popular, de acordo com a FARJ:

“Eles são os mais fortes possível, com o maior número de pessoas e boa organização, estando voltados para a luta que elegeram como prioritária. [...] Os movimentos sociais não devem caber e encerrar-se dentro de uma ideologia, seja ela qual for. [...] Da mesma forma pensamos ser a questão da religião. [...] Outra característica importante aos movimentos sociais é a autonomia, que se dá fundamentalmente na relação com o Estado, os partidos políticos, os sindicatos burocratizados, a Igreja, entre outros. [...] Sua combatividade. Ao reivindicarmos que devem ser combativos, queremos dizer que os movimentos sociais devem estabelecer suas conquistas impondo sua força social e não depender de favores ou boas ações de quaisquer setores da sociedade, incluindo o Estado. [...] A ação direta, como forma de ação política que se opõe à democracia representativa. Os movimentos sociais não devem ter por objetivo a confiança em políticos que atuam dentro do Estado, para que representem seus interesses. [...] Eles estão sempre organizados fora do Estado, defendendo a devolução do poder político ao povo. [...] Democracia direta como método de tomada de decisões. A democracia direta acontece nos movimentos sociais quando todos os que neles estão envolvidos participam efetivamente do processo de tomada de decisões. [...] As decisões são tomadas de maneira igualitária (todos possuem a mesma voz e o mesmo poder de voto) em assembléias horizontais, onde os assuntos são discutidos e deliberados. [...] Neste modelo de movimento social, há uma importância para a conduta militante com ética e responsabilidade. [...] Os movimentos sociais constituem um espaço privilegiado para o desenvolvimento de cultura e educação popular. [...] Todos que estão mobilizados desenvolvem seu aprendizado e as novas formas, manifestações, linguagens, experiências e vivências traduzem o espírito da luta. [...] As conquistas de curto prazo, chamadas reformas, quando conquistadas pelos movimentos sociais, servirão como maneiras de diminuir o sofrimento daqueles que lutam e ao mesmo tempo os ensinarão as lições da organização e da luta. [...] A perspectiva revolucionária de longo prazo. Neste caso, a idéia é que os movimentos sociais, além de terem suas bandeiras específicas (terra, moradia, trabalho etc.) possam ter como objetivos a revolução e a construção de uma nova sociedade. Entendemos que as lutas de curto e médio prazo são complementares com esta perspectiva de longo prazo e não excludentes.”[13]

Portanto, estas características dos movimentos, estimuladas por um determinado estilo de trabalho que envolve um processo e um comportamento militante, apontam para a criação de poder popular. Ou seja, têm como objetivo, no seio da luta de classes, criar um povo forte capaz de protagonizar a transformação social.

Havendo uma revolução social o poder popular que viria sendo construído durante a luta terá de funcionar como um “período de transição”, da forma que defendeu o Dielo Truda na “Plataforma”, garantindo a destruição do Estado e sua substituição pela participação popular generalizada, ou seja, pela autogestão e o federalismo em sentido pleno. É nesta perspectiva que o coletivo Luta Libertária trata do tema:

“O Poder Popular é também socialista, já que todos terão a possibilidade de participar de todos os processos de decisão e de planejamento da sociedade através do mecanismo federativo, que permite a participação de todos e possui uma instância globalizante das decisões em que isso seja necessário. Ou seja, o poder será efetivamente socializado. [...] No que tange ao funcionamento do Poder Popular Socialista, os mecanismos são exatamente os mesmos que projetamos para o federalismo político na etapa comunista-anarquist a: participação de todos, decisões coletivas, revogabilidade de funções; igualdade no acesso a informações e poder de decisão, etc. Quanto à estrutura de organização o mesmo se dá: conselhos com tarefas deliberativas e federações de ramo com tarefas executivas.”[14]

Portanto, é neste sentido que o poder popular que veio sendo construído ao longo das lutas seja o mesmo que proporcione o desenvolvimento e o caminhar da sociedade futura, rumo à consolidação do socialismo libertário.

Nesta discussão de estratégia, surge uma série de outras questões que neste artigo não teremos condições de desenvolver, mas que merecem reflexão futura. São temas que caminham junto com a discussão de poder popular, que realmente é muito extensa. Poderíamos citar: a questão do sujeito revolucionário, sendo que na concepção de poder popular dos anarquistas, não se dá preferência a uma ou outra classe ou setor da classe, como os socialistas que priorizam o operariado urbano e industrial; o esquema de infra e superestrutura, já que para os anarquistas, apesar de o âmbito econômico ser absolutamente central, ele não é responsável por determinar todos os outros âmbitos da sociedade e, portanto, um projeto de poder popular deve levar em conta, além do âmbito econômico os âmbitos jurídico-político- militar e ideológico-cultural; a relação entre organização política e movimentos populares, já que, se sustentamos uma organização anarquista para funcionar como fermento/motor, devemos saber acertadamente como deverá se dar seu trabalho para proporcionar protagonismo aos movimentos e não a si mesma; a função da organização anarquista entre a criação e organização das lutas ou simplesmente fazer propaganda; as diferenças de teoria e de ideologia, apontando para uma reflexão de que, para nós, a ideologia está no campo das aspirações e dos desejos, muito mais do que no campo da ciência e que, por isso, há uma necessidade de se elaborar leituras com uma lente conceitual que, baseada na teoria e na ciência, e não na ideologia, nos permita ver as coisas com clareza; o papel das lutas antiimperialistas, anticolonialistas, contra a opressão de gênero e raça na construção do poder popular; finalmente, as alianças táticas e estratégicas e a necessidade de coerência das táticas com a estratégia. Muito mais poderia ser dito sobre estas ou outras questões.


FINALIZANDO E LEVANTANDO O DEBATE

Uma questão a ser tratada, neste caso, é como está a disputa deste conceito de poder popular por aqueles que o utilizam. Não há dúvidas de que a nossa corrente desenvolveu discussões e raciocínios bastante produtivos sobre o tema. No entanto, infelizmente, se ampliarmos um pouco a busca desta discussão veremos que hoje, poder popular, como conceito – assim como socialismo, democracia, liberdade, etc. – já não diz muito por si só. Outras muitas correntes, fora do campo do anarquismo, mas ainda no campo da esquerda, vêm reivindicando o poder popular como projetos a serem construídos dentro do âmbito governamental, nas relações com o Estado e com a burocracia; outras o reivindicam como um projeto popular que, no momento oportuno, deve dar lugar à vanguarda e fazem isso por meio de estruturas hierárquicas.

Por este motivo, quando estamos no trabalho social, em meio aos movimentos populares, falar que defendemos o poder popular já não significa muito. Precisamos sempre dar uma explicação e constantemente disputar um conceito que, ainda que outros o defendam, muitas vezes nesta explicação evidenciam-se diferenças inconciliáveis. Ao mesmo tempo isso pode ser um ponto positivo; tendo afinidades com o termo, haveria possibilidade de ir dando a ele o sentido que pretendemos.

Hoje, no Brasil, a FARJ, apesar de utilizar a mesma lógica conceitual explicitada neste debate, até o momento, prefere não utilizar o termo poder popular, para diferenciar- se destes outros setores. Entendeu, a priori, que não é um conceito que vale a pena ser disputado, mas somente isso. No entanto, outras organizações especifistas, além de utilizarem o conceito e o termo poder popular, colocam-no no centro de sua estratégia de transformação e de propaganda. Parece-me importante, neste momento, escutar argumentos de ambos os lados sobre a disputa ou não deste conceito, com os respectivos motivos. Isso será fundamental para o futuro. Devemos estar abertos para as argumentações pesando e avaliando com critério, os prós e contras desta reivindicação.

É necessário, finalmente, debater e discutir mais sobre as questões de fundo, que tentei, por cima, expor neste artigo. Certamente, um anarquismo especifista em nível nacional precisará aprimorar-se neste tema, que eu também julgo de extrema relevância. Por isso convido aos companheiros desta ou de outras correntes, anarquistas ou de outros setores da esquerda, a iniciarmos um debate sobre os temas aqui apresentados.

Concluindo, retomemos a frase do revolucionário Emiliano Zapata, utilizada como epígrafe deste texto, quando enfatizava que “um povo forte não precisa de líderes”. Nisso estamos de pleno acordo. Para um projeto de poder popular, nos termos que tentamos desenvolver neste artigo, chame-se ele como chamar, parece imprescindível criar um povo forte. Só assim ele poderá protagonizar a desejada transformação social.



Notas:

1. FARJ. Anarquismo Social e Organização. São Paulo/Rio de Janeiro: Faísca/FARJ, p. 198. Ler documento na íntegra em http://www.anarkism o.net/article/ 10861.

2. Bruno Lima Rocha. “A Interdependência Estrutural das Três Esferas”, 2009 (tese de doutorado). O que está nos colchetes foi adicionado por mim.

3. FAU. “La Organización Política es lo Decisivo”. In: Juan Carlos Mechoso. Acción Directa Anarquista: una historia de FAU. Montevideo: Recortes, s/d, p. 194. Há trechos deste documento que foram compilados por mim no artigo “A Organização Política Anarquista” (http://www.anarkism o.net/article/ 10387).

4. Victor Toro, dirigente do MIR, em uma entrevista publicada na revista Punto Final em 1973. Ver a entrevista na íntegra no final do artigo de José Antonio Gutierrez Danton “Os Libertários e as Lições do Golpe Militar no Chile” (http://www.anarkism o.net/article/ 10632).

5. José Antonio Gutierrez Danton. “Os Libertários e as Lições do Golpe Militar no Chile”.

6. FAU/FAG. “Wellington Gallarza e Malvina Tavares: material de trabalho para formação teórica conjunta”.

7. Fabio López López. Poder e Domínio: uma visão anarquista. Rio de Janeiro: Achiamé, 2001, pp. 61-62.

8. Mikhail Bakunin. “Necessidades da Organização”. In: Conceito de Liberdade. Porto: Rés Editorial, s/d, p. 136.

9. Fabio López López. Poder e Domínio, pp. 83-87.

10. Gilmar Mauro. “Construir o Poder Popular: o grande desafio do novo século”.

11. Fabio López López. Poder e Domínio, pp. 105; 121.

12. Juan Carlos Mechoso. “A Estratégia do Especifismo: entrevista a Felipe Corrêa”, 2009. Ainda inédita, mas será publicada em português e castelhano em breve.

13. FARJ. Anarquismo Social e Organização, pp. 111-122.

14. Luta Libertária. “Socialismo Libertário: um projeto em construção” (http://www.treinoon line.com. br/osl/documento s.asp).


* Este artigo coloca algumas das contribuições e discussões de um seminário interno da FARJ em relação à questão do poder popular, realizado em dezembro de 2009. Agradeço aos companheiros Rafael Viana e Gabriel Amorin pelas reflexões feitas em São Paulo e no Rio de Janeiro, e que contribuíram com este trabalho.

 

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