Por: Keila Grinberg
Publicado em 15/03/2010 | Atualizado em 15/03/2010
Escravos nascidos no Brasil retratados pelo pintor francês Johann
Moritz Rugendas (1802–1858) no livro 'Viagem pitoresca através do
Brasil', de 1835.
O Brasil é negro. Até aqui, nenhuma novidade. O país o é desde pelo
menos o século 17, quando o número de africanos escravizados trazidos
da África para o Brasil ultrapassou a marca do milhão. A novidade é que
o Brasil, hoje, em 2010, é oficialmente um país majoritariamente
habitado por negros e pardos, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Foi assim que o historiador Luiz Felipe de Alencastro, professor titular da cátedra de História do Brasil da Universidade de Paris IV Sorbonne e autor de O trato dos viventes (Companhia das Letras), iniciou na semana passada a leitura de seu Parecer sobre a arguição de descumprimento de preceito fundamental, ADPF/186, apresentada ao Supremo Tribunal Federal, representando a Fundação Palmares.
O título não explica, mas o assunto não sai dos jornais: cotas raciais para negros e pardos nas universidades. Em especial, aqui se discutia o caso da Universidade de Brasília (UnB), cuja política de cotas raciais foi questionada pelo Partido Democratas (DEM), que argumenta ser inconstitucional o critério racial para seleção de candidatos para ingresso naquela universidade.
Nunca a história esteve tão no centro do debate público, e nunca houve tanto consenso sobre a necessidade de se aprofundar o conhecimento sobre a escravidão brasileira, principalmente durante o século XIX, quando, já independente, o país optou por manter a escravidão.
Nas palavras de Alencastro:
Veja abaixo um vídeo com a fala do professor
De acordo com a Constituição de 1824, a primeira do Brasil independente, sim. Não foram instituídos critérios raciais definidores da cidadania brasileira, pelo menos em seu nível básico, o dos direitos civis. Ou seja: libertos e seus descendentes eram considerados cidadãos com quase todas as prerrogativas dos demais cidadãos brasileiros, inclusive com direito de voto como eleitores de primeiro grau.
Para alguns, instituir hoje critérios raciais de diferenciação entre os cidadãos é criar fronteiras onde, ao menos na letra da lei, elas nunca existiram. Para outros, o fosso entre a sociedade formal – onde direitos de cidadania eram extensivos a libertos e seus descendentes – e a sociedade real – na qual esses direitos dificilmente eram colocados em prática –, só reforça a necessidade de, hoje, estabelecer critérios formais e objetivos para possibilitar que a sociedade mude na prática.
É o velho paradoxo da igualdade, como recentemente lembrou Gilmar Mendes, presidente do Supremo Tribunal Federal, ao conclamar a sociedade e a Suprema Corte para uma discussão mais aprofundada sobre o assunto:
Mulato, destaque nas lutas pela independência na Bahia, autodidata, Rebouças dividiu sua vida entre o exercício da advocacia e a política. Especialista em direito civil, devotou boa parte de sua trajetória parlamentar à defesa dos princípios liberais da cidadania brasileira.
Ele não se cansava de repetir o parágrafo 14 do artigo 179 da Constituição de 1824, segundo o qual “Todo o cidadão pode ser admittido aos Cargos Publicos Civis, Politicos, ou Militares, sem outra differença, que não seja dos seus talentos, e virtudes”, que lhe servia também de argumento para uma de suas frases favoritas: “todo pardo ou preto pode ser general.”
Na década de 1830, Rebouças ficou marcado como um político radical, por ser contra a introdução de outros critérios que não a cor na classificação dos cidadãos brasileiros. À medida que o cenário político do Império se tornava mais conservador, sua reeleição foi ficando cada vez mais difícil. Até que, em 1848, teve que abandonar a política, derrotado por uma visão de mundo que, embora concebesse a igualdade civil entre os cidadãos brasileiros, negava-a na prática.
Atenção aqui: Rebouças não foi derrotado por defender os princípios da cidadania brasileira expressos na Constituição. Ele caiu no ostracismo por lembrar o tempo todo que, entre esses cidadãos dos quais falava a Constituição, estavam necessariamente também negros e mulatos, livres e libertos. E ele era um deles.
Tomara que chegue logo o dia em que a cor não importará para a qualificação do cidadão. Aí as cotas, de qualquer tipo, não serão mesmo mais necessárias, os Rebouças de hoje serão conhecidos pelo que falam, e não pela cor de suas peles.
Keila Grinberg
Departamento de História
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
Foi assim que o historiador Luiz Felipe de Alencastro, professor titular da cátedra de História do Brasil da Universidade de Paris IV Sorbonne e autor de O trato dos viventes (Companhia das Letras), iniciou na semana passada a leitura de seu Parecer sobre a arguição de descumprimento de preceito fundamental, ADPF/186, apresentada ao Supremo Tribunal Federal, representando a Fundação Palmares.
O título não explica, mas o assunto não sai dos jornais: cotas raciais para negros e pardos nas universidades. Em especial, aqui se discutia o caso da Universidade de Brasília (UnB), cuja política de cotas raciais foi questionada pelo Partido Democratas (DEM), que argumenta ser inconstitucional o critério racial para seleção de candidatos para ingresso naquela universidade.
Nunca houve tanto consenso sobre a necessidade de se aprofundar o conhecimento sobre a escravidão brasileira
A questão das cotas raciais é mais do que polêmica, e não será daqui
que sairá a solução para o problema. Mas é o caso de realçar a fala de
Alencastro naquilo que ela traz de consensual entre favoráveis e
contrários à adoção do sistema de cotas raciais nas universidades
brasileiras: a importância do conhecimento sobre a escravidão
brasileira.Nunca a história esteve tão no centro do debate público, e nunca houve tanto consenso sobre a necessidade de se aprofundar o conhecimento sobre a escravidão brasileira, principalmente durante o século XIX, quando, já independente, o país optou por manter a escravidão.
Nas palavras de Alencastro:
“Na realidade, nenhum país americano praticou a escravidão em tão larga escala como o Brasil. Do total de cerca de 11 milhões de africanos deportados e chegados vivos nas Américas, 44% (perto de 5 milhões) vieram para o território brasileiro num período de três séculos (1550-1856). O outro grande país escravista do continente, os Estados Unidos, praticou o tráfico negreiro por pouco mais de um século (entre 1675 e 1808) e recebeu uma proporção muito menor – perto de 560.000 africanos, ou seja, 5,5% do total do tráfico transatlântico. No final das contas, o Brasil se apresenta como o agregado político americano que captou o maior número de africanos e que manteve durante mais tempo a escravidão.”
Veja abaixo um vídeo com a fala do professor
Alencastro no STF (a partir do 49º minuto).
Cidadania de negros e mulatos
Além de ser o país que mais recebeu africanos e que por mais tempo manteve a escravidão, o Brasil também foi o país com maior número de libertos e negros livres no século 19. Ou seja: além de sermos o país com mais escravos, éramos também o país das Américas com maior número de negros e mulatos livres e libertos. Isso justamente quando o Brasil, recém independente, precisava definir quem eram seus cidadãos. Como considerar os libertos e negros livres? Escravos não eram. Seriam cidadãos?De acordo com a Constituição de 1824, a primeira do Brasil independente, sim. Não foram instituídos critérios raciais definidores da cidadania brasileira, pelo menos em seu nível básico, o dos direitos civis. Ou seja: libertos e seus descendentes eram considerados cidadãos com quase todas as prerrogativas dos demais cidadãos brasileiros, inclusive com direito de voto como eleitores de primeiro grau.
A ausência histórica de critérios raciais definidores da cidadania é um empecilho para a adoção de cotas?
O que nos leva de volta a uma das questões propostas por Alencastro
e também discutidas por vários intelectuais, tanto favoráveis quanto
oponentes às cotas: o fato de não ter havido critérios raciais
definidores da cidadania brasileira, nem no Império nem na República, é
ou não um empecilho para a adoção, hoje, das cotas raciais?Para alguns, instituir hoje critérios raciais de diferenciação entre os cidadãos é criar fronteiras onde, ao menos na letra da lei, elas nunca existiram. Para outros, o fosso entre a sociedade formal – onde direitos de cidadania eram extensivos a libertos e seus descendentes – e a sociedade real – na qual esses direitos dificilmente eram colocados em prática –, só reforça a necessidade de, hoje, estabelecer critérios formais e objetivos para possibilitar que a sociedade mude na prática.
É o velho paradoxo da igualdade, como recentemente lembrou Gilmar Mendes, presidente do Supremo Tribunal Federal, ao conclamar a sociedade e a Suprema Corte para uma discussão mais aprofundada sobre o assunto:
“(...) toda igualdade de direito tem por consequência uma desigualdade de fato, e toda desigualdade de fato tem como pressuposto uma desigualdade de direito (...). Assim, o mandamento constitucional de reconhecimento e proteção igual das diferenças impõe um tratamento desigual por parte da lei. O paradoxo da igualdade, portanto, suscita problemas dos mais complexos para o exame da constitucionalidade das ações afirmativas em sociedades plurais”.
A contribuição de Rebouças
- O intelectual baiano Antonio Pereira Rebouças (1798-1880), que lutou pela independência na Bahia e dividiu sua vida entre o exercício da advocacia e a política (reprodução).
Mulato, destaque nas lutas pela independência na Bahia, autodidata, Rebouças dividiu sua vida entre o exercício da advocacia e a política. Especialista em direito civil, devotou boa parte de sua trajetória parlamentar à defesa dos princípios liberais da cidadania brasileira.
Ele não se cansava de repetir o parágrafo 14 do artigo 179 da Constituição de 1824, segundo o qual “Todo o cidadão pode ser admittido aos Cargos Publicos Civis, Politicos, ou Militares, sem outra differença, que não seja dos seus talentos, e virtudes”, que lhe servia também de argumento para uma de suas frases favoritas: “todo pardo ou preto pode ser general.”
Rebouças combatia qualquer distinção entre os cidadãos que não fosse baseada nos talentos e nas virtudes
Rebouças defendia a “igualdade entre as cores” e a ausência de
qualquer distinção entre os cidadãos que não fosse baseada nos talentos
e nas virtudes. Liberal até a raiz dos cabelos, ele se recusava a
admitir critérios que lembrassem os velhos tempos do Antigo Regime –
como, por exemplo, o fato de que libertos não poderiam ser oficiais da
Guarda Nacional simplesmente porque, um dia, haviam sido escravos. Para
ele, era "inconstitucional, inadmissível, injusto e absurdo" que ter
nascido livre fosse condição para o exercício do oficialato da Guarda
Nacional.Na década de 1830, Rebouças ficou marcado como um político radical, por ser contra a introdução de outros critérios que não a cor na classificação dos cidadãos brasileiros. À medida que o cenário político do Império se tornava mais conservador, sua reeleição foi ficando cada vez mais difícil. Até que, em 1848, teve que abandonar a política, derrotado por uma visão de mundo que, embora concebesse a igualdade civil entre os cidadãos brasileiros, negava-a na prática.
Atenção aqui: Rebouças não foi derrotado por defender os princípios da cidadania brasileira expressos na Constituição. Ele caiu no ostracismo por lembrar o tempo todo que, entre esses cidadãos dos quais falava a Constituição, estavam necessariamente também negros e mulatos, livres e libertos. E ele era um deles.
Igualdade formal e real
Não deixa de ser curioso observar o quanto mudou a sociedade brasileira desde então: opondo-se a uma sociedade que naturalizava as diferenças, como era a sociedade colonial brasileira, Rebouças defendia radicalmente a igualdade formal entre os cidadãos. Ela seria, para ele, a única maneira de garantir o avanço rumo à igualdade real.
Que os Rebouças de hoje sejam conhecidos pelo que falam, e não pela cor de suas peles
Hoje, tantos anos depois da instauração da igualdade formal entre os
cidadãos, a defesa é justamente a da introdução de mecanismos formais
de diferenciação entre os cidadãos, já que a instauração pura e simples
dos princípios liberais não contribuiu para acabar com a desigualdade
entre as cores.Tomara que chegue logo o dia em que a cor não importará para a qualificação do cidadão. Aí as cotas, de qualquer tipo, não serão mesmo mais necessárias, os Rebouças de hoje serão conhecidos pelo que falam, e não pela cor de suas peles.
Keila Grinberg
Departamento de História
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
--
João Damasio
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Fones: (62) 91438923 / (64) 3694-1159
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