domingo, 12 de abril de 2009

Em ação pirotécnica, Anatel destrói ilegalmente 8 toneladas de equipamentos

Do Observatório do Direito à Comunicação - www.direitoacomunicacao.org.br


Bia Barbosa - para o Observatório do Direito à Comunicação*
10.04.2009

Na última quarta-feira (8), o escritório regional da Agência Nacional de Telecomunicação (Anatel) em São Paulo, com o suporte logístico e político da Prefeitura Municipal, destruiu cerca de oito toneladas de equipamentos apreendidos em operações de fiscalização de emissoras de rádio não autorizadas. Ao todo, 17 mil discos e CDs, 750 transmissores, 70 antenas e dezenas de computadores e aparelhos de som se transformaram em sucata no hangar da Vasp, no aeroporto de Congonhas.

Segundo a Anatel, todos os equipamentos encontravam-se sem homologação pelas autoridades responsáveis e provocavam interferências no controle de tráfego aéreo e nas transmissões de emissoras comerciais. Eles teriam sido apreendidos em cinco anos de operações da Agência no estado e correspondiam a dois mil processos concluídos pela Justiça, que teria autorizado sua destruição.

”Este é um ato simbólico do combate à ilegalidade em São Paulo. Aqui tem lei e ela será respeitada”, disse o prefeito Gilberto Kassab (DEM), que fez questão de subir no rolo-compressor e posar para os flashes da grande imprensa comercial, que prestigiou em massa o acontecimento. “É fundamental que o material seja destruído, para mostrar que não teremos tolerância com quem faz isso. Nosso objetivo é fechar todas as rádios piratas e ilegais, que trazem riscos à vida das pessoas. Se é clandestina, tem que ser eliminada”, sentenciou Kassab.


Além do prefeito e dos veículos comerciais tradicionais, o ato de destruição contou com a presença de policiais federais, militares, civis, de diversos secretários do governo municipal e da cúpula do escritório regional da Anatel em São Paulo. Para Everaldo Gomes Ferreira, gerente regional da agência, “uma rádio clandestina é um caminhão na contramão” do espectro.

Estas emissoras, acrescentou, aparentam ter um “fascínio pela ilegalidade”. “Temos que respeitar a lei e a lei não se respeita. Todas essas rádios nunca buscaram a legalização. Até onde sei – porque sou da Anatel e não do Ministério das Comunicações –, o Ministério faz exigências, tenta localizar os responsáveis, manda correspondência para mandar documentação e essas pessoas não são localizadas”, alegou.

Um relatório da subcomissão criada para avaliar os processos de outorga de concessões de rádio e TV da Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) da Câmara dos Deputados revelou, no entanto, que os processos para obtenção da autorização de operação para uma rádio comunitária podem levar até 3,6 anos. O governo federal já reconheceu o problema ao ter instalado dois grupos de trabalho, um em 2003 e outro em 2005, para tentar resolver o acúmulo de processos. Apesar de ambos terem produzido recomendações e relatórios finais, as medidas sugeridas nunca foram implantadas pelo Ministério das Comunicações e por outros órgãos do Executivo Federal.

Ilegalidade na destruição

A Anatel justificou a destruição dos equipamentos dizendo se tratarem de provas materiais de crimes. “É igual a uma arma”, disse Everaldo Ferreira. Garantiu que a agência tem como uma de suas prerrogativas a destruição de equipamentos e alegou que não faria sentido doar as 8 toneladas que ali estavam porque “hoje o custo de aquisição de materiais como estes é cada vez mais barato, sem contar que são de origem duvidosa”.

No entanto, segundo o juiz federal aposentado Paulo Fernando Silveira, consultado pelo Observatório do Direito à Comunicação, a absoluta maioria dos equipamentos apresentados na operação da Anatel e da Prefeitura de São Paulo não poderia ser inutilizada. Ao contrário da apreensão de drogas, por exemplo, os transmissores, antenas, computadores, mesas de som e CDs não são produtos proibidos pela lei, não sendo, portanto, passíveis de destruição. Ao serem adquiridos no mercado interno de forma lícita, são propriedade permanente daqueles que o compraram, mesmo que sejam considerados pela Justiça provas materiais de um crime.

“Mesmo um revólver, se estiver registrado no nome de alguém, deve ser devolvido pela Justiça após o término de um processo, independentemente se a pessoa foi condenada ou não, porque o bem não é ilícito. Se o processo terminou e ninguém requereu os bens, a União não se torna proprietária automaticamente. Teria que devolvê-los. Portanto, se a Anatel destruiu esses equipamentos, o fez ilegalmente e terá que indenizar essas pessoas. Mesmo se havia ordem judicial para isso, ela era abusiva e ilegal. Todos os proprietários devem entrar com ação de perdas e danos, porque o juiz mandou destruir algo que é seu, de sua propriedade”, afirma Silveira.

A Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária (Abraço) questiona a existência de decisão judicial para a destruição dos equipamentos. “Se há um processo judicial, quem provocou a Justiça a se pronunciar sobre isso? Talvez nem processo exista”, analisa Jerry Oliveira, diretor da associação em Campinas.

Para Paulo Silveira, o direito à comunicação está garantido na Constituição Federal como um direito individual e coletivo, e o Estado não pode, portanto, aboli-lo. “Sua função é apenas de gestor do espectro; é uma função administrativa. O dono do espectro é o povo, de modo que o exercício de um direito individual não pode ser considerado crime”, acredita o juiz federal. “A lei que criminaliza a radiodifusão não autorizada é que é inconstitucional – e não a conduta que é criminosa”, completa.

Descriminalização na pauta do Congresso


Neste momento, estão em tramitação no Congresso Nacional dois projetos de lei que descriminalizam o exercício não autorizado da radiodifusão comunitária. Ou seja, em vez de abordar a prática a partir de uma perspectiva penal, propõem fazê-lo mediante infrações administrativas.

“Se aprovarmos a lei da descriminalização e a anistia dos processados, esses atos judiciais se tornarão sem efeito. Como é então que as rádios vão ter acesso a esses equipamentos, que foram destruídos?”, questiona José Sóter, coordenador-geral da Abraço. “No mínimo, foi uma prevaricação da Anatel, que deveria ter ouvido todos os lados da questão antes de destruir os equipamentos”, afirma.


Ação orquestrada


Por pressão dos grandes radiodifusores, o projeto de lei que anistia as rádios comunitárias (que já havia sido aprovado na CCTCI e estava sob avaliação da Comissão de Constituição e Justiça) foi remetido pelo deputado Raul Julgmann (PPS-PE) à Comissão de Combate ao Crime Organizado. A manobra se coaduna com a operação da Anatel realizada esta semana, em São Paulo, que tratou a destruição dos equipamentos como uma ação de combate ao crime.

”Como eles mesmo disseram, foi um ato simbólico, orquestrado pelos setores que são contrários à descriminalização das emissoras comunitárias, para reforçar a idéia dos radiodifusores comerciais de que rádio comunitária derruba avião. Por outro lado, vivemos o processo de convocação da Conferência Nacional de Comunicação. Ao sinalizar que está defendendo o interesse dos meios comerciais, a Anatel atende à necessidade da grande mídia de ganhar a opinião pública para as teses que ela defende, e que serão tema da Conferência. Ou seja, uma atividade midiática e pirotécnica como essa responde a dois objetivos dos meios comerciais”, avalia Sóter.


Na tarde dessa quinta-feira (9), o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação divulgou nota pública condenando o vandalismo da Anatel em relação a um patrimônio coletivo e de inestimável valor social para as comunidades. Para o FNDC, a destruição de equipamentos de rádios comunitárias constitui um ato de prepotência, representa uma atitude deliberada contra a democratização da comunicação e deixas às claras os temores de setores empresariais frente à Conferência Nacional de Comunicação.

“A destruição dos equipamentos também representa uma cabal demonstração de ignorância sobre o papel fundamental da comunicação para a consolidação da democracia, o fortalecimento da sua pluralidade e dos laços culturais da nação brasileira”, diz a nota, que conclui cobrando da Anatel explicações ao povo brasileiro. Do contrário, entidades que lutam pela democratização da comunicação poderão fazê-lo através de uma ação judicial, que já está sendo avaliada nacionalmente.

* Colaborou Lucas Krauss

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