sábado, 22 de agosto de 2009

Nunca houve tantos escravos como na atualidade, diz pesquisador

Estimativas apontam que haja entre 12 milhões e 27 milhões de
escravos, conta o jornalista Benjamin Skinner. Brasil, um dos últimos
países a abolir formalmente a escravidão, é um dos mais proativos no
combate ao tráfico.

Na noite de 22 para 23 de agosto de 1791, a ilha de Santo Domingo
(hoje Haiti e República Dominicana) assistiu ao começo de uma
insurreição que teria um papel decisivo na abolição do tráfico
transatlântico de escravos. Hoje, o 23 de agosto é comemorado pela
Unesco como o Dia Internacional de Lembrança do Tráfico de Escravos e
sua Abolição.

Sobre este assunto, a Deutsche Welle entrevistou o jornalista
norte-americano Benjamin Skinner, autor do livro A Crime So Monstrous:
Face-To-Face with Modern-Day Slavery (Um crime tão monstruoso: face a
face com a escravidão hoje). O professor do Carr Center for Human
Rights Policy da Harvard Kennedy School adverte que escravos hoje são
muito mais baratos do que em qualquer outro momento da história da
humanidade.

Deutsche Welle: A escravidão é um fato do passado?

Benjamin Skinner: Com certeza, não. Embora existam mais de 300
tratados internacionais e mais de uma dúzia de convenções universais
exigindo o fim da escravidão e do comércio de escravos, este ainda é
um problema que desafia o mundo moderno. Pessoas e nações presumem que
a lei seja suficiente para erradicar o comércio, mas não é. A abolição
legal é um primeiro passo necessário, mas a abolição real requer a
aplicação rigorosa dessa lei para perseguir os traficantes e proteger
e reabilitar as vítimas.

Quantos escravos existem hoje no mundo?

Como a escravidão é ilegal em qualquer parte do mundo, os traficantes
escondem suas vítimas, temendo as autoridades. Em qualquer país,
escravos são uma população oculta. Mas as estimativas mais amplamente
aceitas apontam que haja entre 12,3 milhões e 27 milhões de escravos.

E em números relativos, em comparação com o passado?

Há mais escravos hoje do que em qualquer outro momento da história da
humanidade. Mas, por mais deprimentes que sejam os números absolutos,
podemos encontrar certo consolo no fato de a porcentagem de escravos
na população mundial ser hoje menor. Os três grandes movimentos
abolicionistas do passado de fato trouxeram progressos. Mas ainda há
muito a ser feito neste quarto e último.

O que caracteriza a condição de escravo?

Escravos são pessoas forçadas a prestar um serviço, mantidas
ilegalmente e ameaçadas com violência, sem pagamento e em esquema de
subsistência. São pessoas que não podem fugir de seu trabalho.

Que tipo de trabalho eles fazem hoje em dia?

São usados em todos os ramos da indústria, da agricultura e do setor
de serviços. A maioria é forçada a trabalhar para quitar uma dívida,
em muitos casos herdada de um ancestral. Todo ano, centenas de
milhares são forçados a cruzar fronteiras internacionais para executar
trabalhos domésticos ou manuais, também como pedintes, ou se tornam
vítimas de prostituição forçada. Crianças são obrigadas a lutar em
guerras civis brutais; homens e mulheres, espoliados e obrigados a
produzir componentes de produtos de consumo que você talvez tenha em
casa. A escravidão está em todo e em nenhum lugar.

Que motivos levam hoje à escravidão?

As circunstâncias de cada escravo são diferentes, claro, mas há temas
recorrentes. Em primeiro lugar, escravos tendem a vir de comunidades
profundamente empobrecidas e socialmente isoladas. Tendem a ser
jovens, do sexo feminino, com acesso restrito a educação e saúde, e
sem qualquer acesso ao crédito formal. Também costumam viver em áreas
onde o domínio da lei é fraco e criminosos podem tirar vantagem de sua
vulnerabilidade e isolamento para lucrar.

Que países e regiões possuem o maior número de escravos?

O sul da Ásia em geral – e a Índia, em particular – possui mais
escravos do que todo o resto do mundo junto. A abolição do trabalho
escravo na Índia, assim como a do sistema de castas, continua sendo
uma promessa não cumprida. Nos níveis estaduais e distritais, bem como
nos panchayats [sistema político indiano que agrupa quatro vilas em
volta de uma vila central], a boa intenção das leis nada significa
para os milhões de pessoas forçadas a trabalhar para pagar uma dívida
que, em muitos casos, foi feita gerações antes.

E na América Latina?

Há centenas de milhares, talvez milhões de escravos na América Latina.
O Haiti tem umas 300 mil crianças escravas. Ofereceram-me uma por 50
dólares numa rua de Porto Príncipe, a cinco horas de distância da
minha casa em Nova York. Dezenas de milhares são traficadas da América
Central e do México para localidades mais ao norte. Nos Estados
Unidos, a maior parte dos escravos é mexicana ou foi traficada através
do México.

Ironicamente, o Brasil, um dos últimos países a abolir formalmente a
escravidão, é hoje um dos mais proativos no combate ao tráfico.
Equipes móveis de inspeção do Ministério brasileiro do Trabalho
resgatam cerca de 5 mil escravos por ano. Mas infelizmente eles não
recebem aconselhamento ou proteção adequados, e dá para contar nos
dedos de uma mão quantos criminosos foram condenados. Ou seja, quase a
metade dos escravos resgatados volta ao regime escravo. Ainda há muito
a ser feito na região.

Qual o papel do Estado em países onde existe escravidão?

A escravidão existe onde os Estados são fracos ou corruptos, mas ela
também pode ser usada por regimes autoritários como forma de controlar
a população. Por exemplo, no Sudão, onde o governo do norte armou e
encorajou as milícias a escravizar durante uma guerra civil de 22
anos. Ou em Mianmar, onde o governo impõe o regime de corvéia à
população rural.

É sabido que, em certos países, é possível libertar um escravo pagando
por ele. Algumas organizações fazem isso. Você considera este um
caminho válido?

Certamente não. Por mais que comprar a liberdade de um escravo faça o
comprador se sentir bem, essa prática, na melhor das hipóteses, dá
margem à corrupção. Na pior delas, incentiva o comércio com a miséria
humana.

Quanto custa um escravo hoje?

Escravos hoje são mais baratos do que nunca. Presenciei negociações de
venda em quatro continentes e recebi ofertas de 45 dólares na África
do Sul até cerca de 2 mil dólares (na verdade, tratava-se da troca por
um carro usado) na Romênia. Com mais de 1,1 bilhão de pessoas
subsistindo com menos de um dólar por dia, a oferta de potenciais
escravos é praticamente ilimitada.

Quais são as consequências tardias da escravidão nas sociedades em que
ela existiu, como nos EUA e na América Latina?

Países que falham em lembrar que a escravidão é um compromisso vivo
estão condenados a viver em insegurança e desigualdade, e em meio a
atividades criminosas. Mas aqueles que se encarregarem da difícil
tarefa de eliminar a escravidão serão recompensados com sociedades
mais prósperas e pacíficas. O que me lembra as palavras de Maya
Angelou: "A história, por mais dolorosa, não pode ser 'desvivida'.
Mas, se enfrentada com coragem, não precisa ser revivida".


Autor: Pablo Kummetz

Revisão: Roselaine Wandscheer

© Deutsche Welle

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